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Full text of "BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa Qualitativa Com Texto Imagem E Som"

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Martin W. Bauer e 
George Gaskell 



PESQUISA 
QUALITATIVA 
COM TEXTO, 
IMAGEM E 
SOM 

Um manual prático 

Aà EDITORA 
▼ VOZES 



T EDIÇÃO 



Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 



Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som : um manual 

prático / Martin W. Bauer, George Gaskell (editores) ; tradução 
de Pedrinho A. Guareschi. - Petrópolis , RJ : Vozes, 2002. 

Título original: Qualitative Researching with Text, Image 
and Sound : a Practical Handbook. 

ISBN 85.326.2727-7 

1 . Ciências sociais - Metodologia 2. Ciências sociais - Pesquisa 
3. Ciências sociais - Pesquisa - Metodologia 4. Pesquisa avaliativa 
(Programas de ação social) 5. Pesquisa qualitativa I. Bauer, Martin 
W., II. Gaskell, George. 

02-2085 CDD-001.42 

índices para catálogo sistemático: 

1. Pesquisa qualitativa : Metodologia 001.42 




Martin W. Bauer e George Gaskell (ed.) 



Pesquisa qualitativa com 

TEXTO, IMAGEM E SOM 

Um manual prático 

CARO LEITOR NÀC 
RISQUE O LIVRO 



Tradução de Pedrinho A. Guareschi 



2 a Edição 



FACULDADE DE ENGENHARIA 
DE GUARATINGUETÁ 



BIBLIOTECA 






2 17 16 



Òt EDITORA 
▼ VOZES 



Petrópolis 

2003 




n*ta- 

Valor-. *5 o ■ 3. l l . 

C/D/T: Lá 

Edição inglesa publicada por Sage Publications de Londres, 
Thousand Oaks e Nova Delhi, 

© Martin W. Bauer and George Gaskell 2000 

Título original em inglês: Qualitative Researching With Text, 
Image and Sound 

Direitos de publicação em língua portuguesa: 
Editora Vozes Ltda. 

Rua Frei Luís, 100 
25689-900 Petrópolis, RJ 
Internet: http://vmw.vozes.com.br 
Brasil 



Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra 
poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou 
quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e 
gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados 
sem permissão escrita da Editora. 



Revisão dos capítulos 13,15 e glossário: Denise Amon 
Editoração e org. literária: Luciana Bassous Pinheiro 



ISBN 85.326.2727-7 






Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. 




Sumário 



Apresentação, 7 
Sobre os autores, 1 1 
Introdução, 15 

1. Qualidade, quantidade e interesses do conhecimento - 
Evitando confusões (Martin W. Bauer, George Gaskell & 
Nicholas C. Allum), 17 

Parte I — Construindo um corpus de pesquisa, 37 

2. A construção do corpus : um princípio para a coleta de dados 
qualitativos (Martin Bauer & Bas Aarts), 39 

3. Entrevistas individuais e grupais (George Gaskell), 64 

4. Entrevista narrativa (Sandra Jovchelovitch 8c Martin W. 
Bauer), 90 

5. Entrevista episódica (Uwe Flick), 1 14 

6. Vídeo, filme e fotografias como documentos de pesquisa 
(Peter Loizos), 137 

7. Bemetologia: para uma contínua (auto-)observação e 
avaliação da personalidade (Gerhard Fassnacht), 156 

Parte II - Enfoques analíticos para texto, imagem e som, 187 

8. Análise de conteúdo clássica: uma revisão (Martin 
W. Bauer), 189 

9. Análise argumenta tiva (Miltos Liakopoulos), 218 

10. Análise de discurso (Rosalind Gill), 244 

11. Análise da conversação e da fala (Greg Myers), 271 

12. Análise retórica (Joan Leach), 293 

13. Análise semiótica de imagens paradas (Gemma Penn), 319 



14. Análise de imagens em movimento (Diana Rose), 343 

15. Análise de ruído e música como dados sociais (Martin W. 
Bauer), 365 

Parte III - O auxílio do computador, 391 

1 6. Análise com auxílio de computador: codificação e 
indexação (Udo Kelle), 393 

17. Palavras-chave em contexto: análise estatística de textos 
(Nicole Kronberger 8c Wolfgang Wagner), 416 

Parte IV — Questões de boa prática, 443 

18. Falácias na interpretação de dados históricos e sociais 
(Robert W.D. Boyce), 445 

19. Para uma prestação de contas pública: além da amostra, 
da fidedignidade e da validade (George Gaskell 8c Martin 
W. Bauer), 470 

Glossário, 491 



Apresentação 



r J ste e l ' m llvro de q ue necessitávamos e que até certo nonto m e 
eaa^os. Necessitávamos, poxs o número de pesquLadoS) Zè 
Ê^mente trabalham com métodos qualitativos é enorme. L P L 
ta a ponta, no Brasil e na América Latina, pode-se já afirmar que a 
maior parte das investigações nas ciências humanas e sociais empre- 
ga, ao menos como uma dimensão importante, métodos qualitativos 
de diferentes tipos. Não tínhamos um referencial claro, coerente, se- 
guro, abrangente e, por assim dizer, amadurecido, para servir de 
parâmetro. Finalmente, ele está aqui. Merecíamos, pois, um pouco 
como conseqüência do que acabamos de dizer. O esforço investigati- 
vo que está sendo empregado em nossas diferentes instituições me- 
rece que se volva o olhar para esses grupos de trabalho e lhes ofereça 
um apoio seguro, aprofundado, que sirva como retribuição do esfor- 
ço empenhado, por um lado, e como um impulso para maiores e 
mais aprofundados empreendimentos, por outro. Este livro chegou, 
portanto, em boa hora. 

Gostaria de mencionar algumas das muitas razões pelas quais 
este livro é bem-vindo. 



Em primeiro lugar, ele vem preencher um vácuo que nos afligia 
dentro da própria pesquisa qualitativa. Há grande número de inves- 
tigadores trabalhando neste campo, mas sem um ponto de apoio e 
um referencial mais ou menos comum. Investíamos muito tempo 
em discussões sobre uma ou outra técnica, mas sem uma referência 
que nos mostrasse o espectro global, de tal modo que pudéssemos 
especificar com clareza de que método falávamos, como o podería- 
mos conceituar, qual semelhança e diferença entre os diversos méto- 
dos, quais as vantagens e limitações de cada um. Deste modo, após 
dois capítulos iniciais, que nos apresentam uma excelente discussão 
epistemológica sobre a relação entre pesquisa qualitativa e quantita- 
tiva, os diversos autores desfilam diante de nós aquilo mesmo que 
todo pesquisador já se perguntou e, se não, irá se perguntar: Qual a 



— 7 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



melhor maneira de enfrentar meu objeto? Entrevista em grupo ou 
individual? - cap. 3. O que é entrevista narrativa? - cap. 4. O que é 
entrevista episódica? - cap. 5. Como analisar imagens em vídeos, fil- 
mes, fotografias, documentos? - cap. 6. Quero pesquisar grande nú- 
mero de observações por largo espaço de tempo? - cap. 7. O que é 
uma análise de conteúdo clássica? - cap. 8. O que é uma análise ar- 
gumentativa? - cap. 9. O que é uma análise de discurso, entre as 57 
existentes? - cap. 10. Como se faz uma análise da conversação e da 
fala?-cap. 1 1. O que é e como fazer uma análise retórica? -cap. 12. 
O que é e como fazer uma análise semiótica? - cap. 13. Como fazer 
uma análise com imagens em movimento, como na TV? - cap. 14. 
Como fazer uma análise dos ruídos ou de músicas? - cap. 15. Tudo 
isto para depois, em dois capítulos, mostrar bem criticamente até 
onde nos podem ajudar programas de computador para análise de 
informações qualitativas. Finalmente, os dois últimos capítulos, para 
que não fique nenhuma dúvida, ajudam-nos a fazer uma reflexão 
crítica sobre a importância e a responsabilidade de quem faz pesqui- 
sa qualitativa, mostrando como, a partir do conhecimento acumula- 
do da pesquisa quantitativa, não se precisa ficar devendo nada a tais 
conquistas, se soubermos trabalhar com cuidado e método. E se isto 
tudo não bastasse, um glossário fecha o volume com a definição dos 
termos mais importantes discutidos no livro. 

Mas não é tudo. Há um ponto fundamental que gostaria de res- 
saltar: percebe-se, de imediato, que os autores dos capítulos são pes- 
soas que já labutaram no campo específico do método que apresen- 
tam e que possuem uma pratica reconhecida. Todos eles, além de te- 
rem feito pesquisa dentro do tema, possuem produções reconheci- 
das e atualizadas e são especialistas no assunto. São uma fonte segu- 
ra, experimentada, sadia, de onde podemos beber com segurança. 
Cremos ser isto essencial, pois assim nos dão uma visão global do 
campo, mostram as vantagens e os problemas de cada método, 
como alguém que já experimentou na pratica estas dificuldades. E 
fazem isto muito bem. É assim que, ao menos um terço dos capítulos, 
quando não mais, traz um exemplo concreto, prático, de uma pes- 
quisa que emprega o tipo de método sobre o qual disserta. 

Se fosse mostrar mais uma razão da importância do livro, diria 
que ele não é extremado ou fundamentalista. Aceita o desafio den- 
tro do campo da investigação social, procurando estabelecer um diá- 
logo com a tradição geral da pesquisa. Não rompe com o conheci- 
mento adquirido, mas procura avançar, mostrando como é possível 



— 8 — 



Apresentação 



progredir na tarefa investigativa, trazendo novas luzes e novos enfo- 
ques, sem necessariamente estabelecer dicotomias irreconciliáveis. 
Reconhecendo as diferenças necessárias, traz avanços significativos, 
mostrando a possibilidade de um diálogo fecundo e construtivo com 
outras dimensões metodológicas. 

Tenho a impressão que temos agora um referencial para poder- 
mos julgar se uma investigação dentro da dimensão qualitativa é 
uma boa prática de pesquisa. Antes, os examinadores, tanto das dis- 
sertações de mestrado e teses de doutorado, como os revisores de ar- 
tigos para revistas científicas, ficavam um tanto perplexos no mo- 
mento de fazer uma avaliação crítica do valor dos referidos traba- 
os. Se não por outro motivo, este já justificaria a importância e a 
necessidade do presente volume que você tem em mãos. 

Finalmente, julgo que o livro nos traz uma contribuição muito 
útil e prática no sentido de dar início à padronização de uma lingua- 
gem em métodos de pesquisa qualitativa, possibilitando assim que o 
diálogo entre os colegas avance de maneira suave e profunda. Uma 
agenda para este diálogo deveria incluir, entre outras, a discussão 
dos critérios de boa qualidade em pesquisa qualitativa e a necessida- 
de de oferecer uma prestação de contas pública à comunidade cien- 
tífica sobre a produção em pesquisa qualitativa. 

Fazer uma tradução que seja fiel e compreensível não é fácil. 
Ainda mais numa área como esta. Necessitei criar, adaptar e aportu- 
guesar alguns termos, mas apenas no intuito de poder ser mais claro 
e inteligível. Sou grato aos estatísticos, matemáticos, lingüistas, se- 
miólogos, comunicadores e a outros a quem recorri para poder to- 
mar uma decisão prudente entre a criatividade e a repetição. Anteci- 
po-me, pois, nas escusas por muitas falhas que certamente você en- 
contrará. E bem mais erros e falhas haveria não fosse o carinho e 
agudez inteligente da doutoranda Denise Amon, da PUCRS, que 
corrigiu e aperfeiçoou os capítulos 13, 15 e o glossário, e contribuiu 
com muitos outros comentários. Muito obrigado a ela e a todos que 
puderem mandar sugestões de correções para uma segunda e outras 
edições que certamente se seguirão. 

Pedrinho A. Guareschi 
PUCRS 



— 9 — 




Sobre os autores 



BasAarts é professor de Língua Inglesa Moderna e diretor do Survey 
of English Usage at University College London. Seu principal in- 
teresse em pesquisa é a sintaxe do inglês atual. Suas publicações 
incluem Small Clauses in English: the Nonverbal Types (1992, Mou- 
ton de Gruyter), The Verb in Contemporary English; Theory and Des- 
cription (1995, editado com C.F. Meyer, Cambridge University 
Press) e English Syntax and Argumentation (1997, Macmilan). 

Nicolas C. Allum é um research officer no Methodology Institute, 
London School of Economics and Political Science. Ele está atual- 
mente investigando percepções públicas da biotecnologia com 
George Gaskell e Martin Bauer. Sua pesquisa de doutorado se 
concentra na percepção de risco, confiança e julgamento moral 
com respeito a tecnologias controvertidas. Outros interesses são 
comportamento dos votantes, análise textual com auxílio de com- 
putador, e filosofias da ciência e probabilidade. Publicações re- 
centes incluem Worlds Apart: The Reception of Genetically Modi- 
fied Foods in Europe and the US, Science, 16 de julho de 1999; eA 
Social Representations Approach to the Analysis ofThree Textual Corpo- 
ra using ALCESTE, dissertação de mestrado, LSE, 1998. 

Martin W. Bauer estudou Psicologia e História na Universidade de 
Bern, e tem seu PhD pela London School of Economics. E profes- 
sor de Psicologia Social e Metodologia da Pesquisa na LSE e é rese- 
arch fellow do Science Museum, Londres. Pesquisa ciência e tecno- 
logia nas percepções sociais e reportagens da mídia, e as funções da 
resistência na transformação organizacional e societal. Recentes 
publicações incluem Towards a Paradigm for Research on Social 
Representations, Journal for the Theory of Social Behavior (vol. 29, 
1999), The Medicalisation of Science News - from the Rocket-Scal- 
pel to the Gene-Meteorite Complex, Social Science Information (vol. 
37, 1998); Resistance to New Technology: Nuclear Power, Information 
Technology, Biotechnology (1997, Cambridge University Press). 



1 1 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Robert Boyce ensina História Internacional na London School of Eco- 
nomics onde se especializa na política das relações econômicas in- 
ternacionais. Entre suas recentes publicações estão estudos sobre 
a crise econômica no período entre guerras, relações dos bancos 
centrais, o desenvolvimento da comunicação de alta velocidade, 
as origens econômicas da II Guerra Mundial, a indústria inglesa 
de bebidas dentro da Europa e política monetária francesa. 

Uwe Flick é sociólogo e psicólogo, professor de Pesquisa Empírica 
em Nutrição na Alice-Salomon University of Applied Sciences 
Berlim, Alemanha, e Pnvatdozent em Psicologia na Technicaí 
University of Berlim, Alemanha. Seus interesses em pesquisa in- 
uem conhecimento cotidiano, representações sociais, metodolo- 
gia qualitativa, saude individual e pública e mudança tecnológica 

Z;- a ; 0 ^ ana “ S Publicações incluem An Introduction to 
Qualitative Research (J999, Sage) e Psychology ofthe Social (editado 
com U. Flick, 1998, Cambridge University Press). 



Gerard Fass?iacht é Privatdozent no departamento de Psicologia, 
University of Bern, Suíça. Seus interesses em pesquisa incluem 
personalidade (em específico desenvolvimento social), etologia 
humana, observação, diagnóstico, metodologia da pesquisa e filo- 
sofia da ciência. Recentes publicações incluem Systematische Verhal- 
tensbeobacthung (3 a edição totalmente revisada, 1995, Reinhardt); 
e Theory and Practice of Observing Behavior (1982, Academic Press). 

George Gaskell é professor de Psicologia Social e diretor do Methodo- 
logy Institute at the London School of Economics. Ensina na área 
de delineamento de pesquisa, levantamentos e questionários, in- 
vestigação qualitativa, atitudes e representações sociais e psicolo- 
gia econômica. Recentes projetos de pesquisa incluem aspectos 
cognitivos da metodologia da pesquisa e um estudo comparativo 
internacional das percepções públicas da moderna biotecnologia. 
É editor de Societal Psychology (1990, Sage), com H. Himmelweit, e 
Biotechnology in the Public Sphere (1998, Science Museum Press), 
com John Durant e Martin Bauer. 



Rosalind GUI é psicóloga social e leciona Gender Theory na LSE. É espe- 
cialista em mídia e novas tecnologias e autora de Gender-Technology Re- 
latimi (com Keith Grint, 1995, Taylor & Francis) e Gender and the Me- 
dia: Representations, Audiences and Cultural Politics (2000, Polity Press). 

Sandra Jovchelovitch é professora de Psicologia Social na LSE. Traba- 
lhou extensamente com comunidades locais e publicou ampla- 



— 12 — 



Sobre os autores 



mente no campo das representações sociais. Sua pesquisa atual é 
sobre como transformações nas esferas públicas modelam a pro- 
dução e a racionalidade das representações sociais. 

Udo Kelle é professor de Métodos em Pesquisa Social na University of 
Vechta. Seus principais interesses de pesquisa cobrem os campos 
da metodologia da pesquisa quantitativa e qualitativa, teoria da 
decisão e sociologia das trajetórias de vida. Presentemente traba- 
lha com conceitos para integrar métodos qualitativos e quantitati- 
vos em pesquisa social. É editor de Computer-aided Qualitative Data 
Analysis: Methods, Theory and Practice (1995, Sage). 

Nicole Kronberger é mestre em psicologia pela Universidade de Vie- 
na. Seu foco de pesquisa é em problemas psicossociais de morali- 
dade, compreensão pública da ciência e análise qualitativa. Re- 
centes publicações incluem Sivarzes Loch, Geistige Làmung und Dorn- 
ròschenschlaft: Em Metaphernanalytischer Beitrag zur Erfassung von 
Alltagsworstellung von Depression ( Black Hole, Mental Paralysis and 
Deep Sleep: a Methaphor Analysis of Lay Co7iceptio7is of Depression) e 
Psychotherapie U7id Soziahvisse7ischaft (1999) 1 (2), 85-104. 

Joan Leach é professora em Ciência da Comunicação no Imperial Col- 
lege of Science, Technology & Medicine. Ela recebeu bacharelado 
em Literatura Inglesa e bacharelado em Biologia da University of 
Illinois at Urbana-Champaign. Recebeu seu mestrado em Comuni- 
cação e seu PhD como um Andrew Mellon Doctoral Fellow na retó- 
rica da ciência da University of Pittsburg. E editora da revista qua- 
drimensal Social Epistemology , e publicou sobre ética do discurso, a 
história e o papel dos comunicadores na ciência e medicina, e as re- 
presentações da ciência na mídia durante a crise BSE. Ensina no 
curso de graduação em Ciência da Comunicação e no curso de mes- 
trado em ciência da comunicação no Imperial College. 

Milos Liakopoulos completou seu PhD na LSE sobre a controvérsia 
com relação aos alimentos geneticamente modificados na Ingla- 
terra. Sua pesquisa é sobre atitudes públicas com respeito à biotec- 
nologia e sobre a cobertura da mídia sobre biotecnologia. 

Peter Loizos teve uma primeira atividade como produtor de filmes e 
documentários antes de entrar para a Antropologia Social, que en- 
sina na LSE desde 1969. E o autor e co-editor de The Greek Gift: Poli- 
tics in a Cypriot Village; The Heart Groivn Bitter: A Chro7iicle of Cypriot 
War Refiigees ; Ge7ider a7id Kinship in Modem Greece (com E. Papataxi- 
archis); Choosing Research Methods: Data Collectio7i for Development 



— 13 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Workers (com Gryan Pratt); Innovation in Ethnographic Film: From 
Innocence to Self-consciousness; Conceiving Persons: Ethnographies of 
Procreation (com P. Heady), e mais de 50 trabalhos, relatórios capí- 
tulos e artigos numa gama de temas, incluindo transferência de 
propriedade e classe; desenvolvimento político e clientelismo; con- 
íhto etmco; participação em projetos de desenvolvimento DFID 
(Nepal e Nigéria), adaptação dos refíigiados à privação e conserva 

mmes°d a eSr ‘ *" ”***”■ e ™ “e 4-sen.açâo de 

& &L p n r ^;ru“; \ sr** e m 0 - 

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Worlds: Brands, Media, Audiences Í19QQ A , .” iaiS recente e Ad 

Dft 2 1 f mÍCa da 7 ÍniSO em gmpOS f° ca ‘ s ° O •rabãl^st": 

p tuJo foi financiado em parte por uma bolsa do Economic and 
bocial Research Council (Inglaterra). 



Gemma Penn concluiu seu PhD em 1998 no Departamento de Psico- 
logia Social da LSE, onde também lecionou por dois anos. Atual- 
mente está trabalhando como consultora autônoma em pesquisa 
social e estatística. Seus interesses em pesquisa incluem publicida- 
de e promoção de vendas, psicologia social da saúde, com ênfase 
particular no fumar e na medicalização e satisfação dos pacientes 
com o atendimento de saúde. 



Diana Rose estudou nas Universidades de Aberdeen e London e tem 
seu PhD dessa última. Escreveu amplamente em sociolingüística 
métodos qualitativos, representações sociais, análises de televisão 
e saúde mental. Lecionou psicologia social e estudos femininos e 
atualmente é pesquisadora sênior na equipe do User-Focused 
Momtoring no The Sainsbury Centre for Mental Health em Lon- 
dres. Diana Rose é supervisora do sistema de saúde mental. 

Wolfgang Wagner é professor no departamento de Psicologia Social e 
Econômica da University of Linz, Áustria. Seus interesses em pes- 
quisa passam pelo pensamento cultural e social cotidiano, teoria da 
i epi esentação social, cognição distribuída e partilhada, processos 
de grupo, e pioblemas de transferência e aplicação da teoria na 
prática profissional. Suas principais publicações incluem Alltagsdis- 
kurs: die Theorie Sozialer Repràsentationen (Everyday Discourse: The 
Theory of Social Representations, 1994, Gõttingen: Hogrefe). 



— 14 — 



Introdução 



JlçÇ s * e ^ V1 ° ^ em uma história de uns cinco anos. Iniciou no Institu- 
|° Q e ^ et pdologia da London School of Economics (LSE), criado 
ÊSEâ'^ lun i r os estudantes de pesquisa com um amplo treinamento 

em métodos de pesquisa quantitativa e qualitativa. Somos responsá- 
veis pelo desenvolvimento de cursos e apoio à pesquisa qualitativa. 
Àquela época, um número crescente de estudantes e pesquisadores 
dedicavam-se, com muita satisfação, a estudos qualitativos, e os edi- 
tores, com ainda maior satisfação, forneceram um número crescente 
de livros, que estimularam uma estranha guerra de palavras entre 
métodos quantitativos e qualitativos. A idéia de que esses métodos se 
constituem em enfoques mutuamente exclusivos, dentro da pesqui- 
sa social, possui uma longa história, materializada nas séries muito 
úteis de livros verdes e azuis, publicadas pela editora Sage. 

Através de nossos esforços, tentamos evitar três posturas co- 
muns. Primeiramente, relutamos equiparar a pesquisa qualitativa a 
um conhecimento interessado em “dar poder”, ou “dar voz aos opri- 
midos”. Embora estes possam ser entusiasmos louváveis, no contex- 
to de grande parte da prática de pesquisa qualitativa, eles são, no 
mínimo, ingênuos e possivelmente mal encaminhados. Em segundo 
lugar, consideramos que o espectro de dados acessíveis à pesquisa 
social vai além das palavras pronunciadas nas entrevistas. Desde o 
início, incluímos outras formas de texto, bem como imagens e mate- 
riais sonoros, na nossa discussão sobre fontes de dados. Em terceiro 
lugar, consideramos as batalhas epistemológicas entre pesquisado- 
res qualitativos e quantitativos, entre uma diversidade de grupos 
de discussão interna e grupos externos, como polêmicas, verborrá- 
gicas e improdutivas. Por conseguinte, concentramos nosso esfor- 
ço no esclarecimento dos procedimentos, na prestação de contas 
pública e na boa prática em pesquisas empíricas. Esta filosofia, que 
poderia ser identificada de maneira ampla como socioconstrutivista, 
guiou nossa escolha de colaboradores para este livro, de forma que 
possuíssem uma postura teórica dentro destes parâmetros. Alguns 



— 15 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



dos autores pertencem à LSE e têm contribuído para o programa 
de ensino de metodologia por diversos anos. Encontramos outros 
excelentes pesquisadores que aceitaram o convite de contribuir 
com o que poderia ser chamado de “enfoque da LSE” em pesquisa 
qualitativa: privilegiar os procedimentos e a boa prática, e evitar 
contusões epistemológicas. 



Ap° s uma introdução às questões centrais da quantidade, quali- 
tro partes " d ° conheclmento - ° li '™ está estruturado em qua- 



tes «poTdVdtZ‘ e te d xm emeS mandras de col «ar dados e diferen- 
argumemo aqui é que a cònsmSo ° Principal 

reemite uma cCetl siste™átic7de° £% 

amostragem estatística. A parte II introduz oito diferentes enfoques 
analíticos cobrindo, novamente, texto, imagem e materiais sonoros. 
Cada enfoque apresenta sua nomenclatura específica, é contextuali- 
zado brevemente, apresenta um exemplo e desenvolve passo a passo 
os procedimentos, concluindo com uma discussão sobre o que cons- 
titui uma boa prática. 



A pai te III introduz dois tipos de uso do computador para auxí- 
lio à análise de dados - indexação e codificação, também conhecidos 
como CAQDAS e análise de co-ocorrência KWIC - como exemplos 
do considerável trabalho no desenvolvimento de software nessa 
area. A parte IV enfoca problemas de interpretação, do ponto de vis- 
ta do historiador, que procura compreender os atores no passado, 
mas cujos problemas são semelhantes aos do pesquisador sociaf 
Onze falácias de interpretação dão uma indicação do que pode estar 
acontecendo de errado em toda tentativa de interpretar o “outro”, 
em determinada situação. Finalmente, nós apresentamos nossas re- 
comendações sobre critérios de qualidade para pesquisa qualitativa. 
Sublinhamos seis critérios que são diferentes, mas funcionalmente 
equivalentes, em termos de prestação de contas pública, aos critérios 
tradicionais de amostragem representativa, fidedignidade e valida- 
de. Critérios para avaliar a pesquisa qualitativa são indispensáveis, 
mas se aplicam critérios diferentes na definição de uma boa prática. 

Expi essamos nossa gratidão aos colegas do Instituto e aos estu- 
dantes do curso de mestrado em Métodos de Pesquisa Social, por 
seu encoiajamento e sua crítica construtiva, à medida em que este li- 
vro ia tomando forma, e obrigado a Jane Gregory por sua edição cui- 
dadosa do manuscrito. 



— 16 



1 

Qualidade, quantidade e interesses 
do conhecimento 

Evitando confusões 



Martin W. Bauer, George Gaskell & 

Nicho/as C\ AUum 



Palavras-chave : análise de dados; a lei do instrumento; geração 
de dados; modos e meios de representação; a situação ideal de 
pesquisa; delineamento da pesquisa; interesses do conhecimento. 



Imagine um jogo de futebol. Dois jogadores adversários correm 
atrás da bola e, de repente, um deles cai, rolando pelo chão. Metade 
dos espectadores assobiam e gritam, e a outra metade respira alivia- 
da, pois o possível perigo foi superado. 

Podemos analisar esta situação social competitiva da seguinte 
maneira. Primeiro, existem os atores: os jogadores de futebol, 1 1 de 
cada lado, altamente treinados, habilidosos e articulados em seus 
papéis, com o propósito de ganhar o jogo; e os árbitros, isto é, o juiz 
e os bandeirinhas. Este é o “campo da ação”. 

Temos depois os espectadores. Os assistentes, em sua maioria, 
são leais torcedores de um time ou outro. São poucos os que não se 
identificam com um ou outro dos times. Haverá, contudo, um ou 
dois espectadores que não conhecem o futebol, e são apenas curio- 
sos. As arquibancadas dos espectadores são o “campo de observação 
ingênua” - ingênua no sentido de que os espectadores estão sim- 
plesmente assistindo aos acontecimentos no campo e são como que 
parte do próprio jogo, que eles experienciam como se eles próprios 
estivessemjogando. Devido a sua lealdade a um dos times, pensam e 
sentem dentro de uma perspectiva partidária. Quando um dos joga- 



— 17 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



dores cai, isto é interpretado pelos torcedores do seu time como 
uma falta, enquanto que para os fãs do outro time não passa de um 
erro pessoal e teatral. 



Finalmente, há a posição daqueles que descrevem a situação 
como nós o fazemos aqui. Temos uma curiosidade sobre a natureza 
tribal do acontecimento, do campo de ação e dos espectadores que 
estão sendo observados. Em termos ideais, tal descrição requer uma 
analise fria i da situaçao, que não tenha envolvimento com nenhum 

raT se" 7 enVolvÍmento direto Pode ser com o futebol em " 
nn H k P roblemas atuais e futuros. A isto nós chamamos de “cam 
po de observação sistemática” Anart-ir rUci-n ■ - f Qe cam_ 

cionar três formas de evidência: o que está ^conKcendo 

ITT d0S , e T tad0reS> C 3 inSt,tU ' tã0 d ° fcteboTcomoTn 

iam° do esporte, dos negócios ligados aos divertimentos ou ao co- 
mércio. Evitar um envolvimento direto exige precauções: a) uma 
consciência treinada das conseqüências que derivam do envolvi- 
mento pessoal; e b) um compromisso em avaliar as observações de 
alguém metodicamente e em público. 



Tais observações com diferentes graus de imparcialidade são a 
problemática da pesquisa social. Por analogia, podemos facilmente 
estender este “tipo ideal” de análise daquilo que podemos chamar 
uma “situação total de pesquisa” (Cranach et ai, 1982: 50), a outras 
atividades sociais, tais como votar, trabalhar, fazer compras e com- 
por música, para mencionar apenas algemas. Podemos estudar o 
campo de ação, e perguntar que acontecimentos estão no campo (o 
objeto de estudo); podemos experimentar subjetivamente tal acon- 
tecimento - o que está acontecendo, como nos sentimos, e quais os 
motivos para tal acontecimento. Esta observação ingênua é seme- 
lhante à perspectiva dos atores e dos auto-observadores. Finalmen- 
te, nós nos concentramos na relação sujeito/objeto que brota da com- 
paiação da perspectiva do autor e da perspectiva do observador, 
dentro de um contexto mais amplo e pergunta como os aconteci- 
mentos se relacionam às pessoas que os experienciam. 

Uma cobertura adequada dos acontecimentos sociais exige mui- 
tos métodos e dados: um pluralismo metodológico se origina como 
uma necessidade metodológica. A investigação da ação empírica 
exige a) a observação sistemática dos acontecimentos; inferir os sen- 
tidos desses acontecimentos das (auto-)observações dos atores e dos 
espectadores exige b) técnicas de entrevista; e a interpretação dos 



— 18 — 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



vestígios materiais que foram deixados pelos atores e espectadores 
exige c) uma análise sistemática. 

O delineamento da pesquisa: geração de dados, redução e análise 

É útil distinguir entre quatro dimensões na investigação social. 
Estas dimensões descrevem o processo de pesquisa em termos de 
combinações de elementos através das quatro dimensões. Primeiro, 
há o delineamento da pesquisa de acordo com seus princípios estraté- 
gicos, tais como o levantamento por amostragem, a observação parti- 
cipante, os estudos de caso, os experimentos e quase-experimentos. 
Segundo, há os métodos de coleta de dados, tais como a entrevista, a 
observação e a busca de documentos. Terceiro, há os tratamentos 
analíticos dos dados, tais como a análise de conteúdo, a análise retóri- 
ca, a análise de discurso e a análise estatística. Finalmente, os interes- 
ses do conhecimento referem-se à classificação de Habermas sobre o 
controle, a construção de consenso e a emancipação dos sujeitos do 
estudo. Estas quatro dimensões são mostradas na Tabela 1.1. 



Tabela 1.1 -As quatro dimensões do processo de pesquisa 



Princípios do 
delineamento 


Geração de dados 


Análise dos dados 


Interesses do 
conhecimento 


Estudo de caso 


Entrevista individual 


Formal 




Estudo comparativo 


Questionário 


Modelagem 

estatística 




Levantamento por 
Amostragem 


Grupos focais 


Análise estrutural 


Controle e predição 


Levantamento por 
Painel 


Filme 


Informal 


Construção de 
consenso 


Experimento 


Registros 

áudio-visuais 


Análise de conteúdo 


Emancipação e 
"empoderamento" 


Observação 

Participante 


Observação 

sistemática 

Coleta de 
documentos 


Codificação 

Indexação 




Etnografia 


Registro de sons 


Análise semiótica 
Análise retórica 
Análise de discurso 





— 19 — 







Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Muita confusão metodológica e muitas afirmações falsas surgem 
da compreensão equivocada ao se fazer a distinção entre qualitati- 
vo/quantitativo na coleta e análise de dados, com princípios do deli- 
neamento da pesquisa e interesses do conhecimento. É muito possí- 
vel conceber um delineamento experimental, empregando entrevis- 
tas em profundidade para conseguir os dados. Do mesmo modo, um 
delineamento de estudo de caso pode incorporar um questionário 
de pesquisa para levantamento, junto com técnicas observacionais 

^ m0 £° r ., eXe ” pl ° eStUdar Uma cor P ora Ção comercial que passa por 
culdades Um levantamento de grande escala de um grupo de 

va , “üita a d P o: o e od nClUÍr qUeS ‘ ÔeS ^ para a " ali 4ualitaü 
. e os resultados podem servir a interesses emandpatórios do trru 

po minoritário. Ou podemos pensar em um levantamento aleaS 
de uma populaçao, coletando os dados através de entrevistas com 
grupos focais. Contudo, como mostra o último exemplo, certas com- 
binações de princípios de delineamentos, com métodos de coleta de 
dados, ocorrem com menos freqüência, devido às implicações liga- 
das aos recursos. Defendemos a idéia de que todas as quatro dimen- 
sões devem ser vistas como escolhas relativamente independentes 
no processo de pesquisa e que a escolha qualitativa ou quantitativa é 
primariamente uma decisão sobre a geração de dados e os métodos 
de análise, e só secundariamente uma escolha sobre o delineamento 
da pesquisa ou de interesses do conhecimento. 



Embora nossos exemplos tenham incluído a pesquisa de levanta- 
mento, nesse livro nós trabalhamos principalmente com geração de 
dados e procedimentos de análise dentro da prática da pesquisa qua- 
litativa, isto é, pesquisa não-numérica. 



Modos e meios de representação: tipos de dados 

Duas distinções sobre dados podem ser úteis nesse livro. O mun- 
do, como o conhecemos e o experienciamos, isto é, o mundo repre- 
sentado e não o mundo em si mesmo, é constituído através de pro- 
cessos de comunicação (Berger & Luckmann, 1979; Luckmann, 
1 995). A pesquisa social, portanto, apóia-se em dados sociais - dados 
sobre o mundo social — que são o resultado, e são construídos nos 
processos de comunicação. 

Neste livro, distinguimos dois modos de dados sociais: comuni- 
cação informal e comunicação formal. Além disso, distinguimos três 
meios, através dos quais os dados podem ser construídos: texto, ima- 



— 20 — 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



gem e materiais sonoros (ver Tabela 1.2). A comunicação informal 
possui algumas poucas regras explícitas: as pessoas podem falar, de- 
senhar ou cantar do modo que queiram. O fato de haver poucas re- 
gras explícitas não significa que não existam regras, e pode aconte- 
cer que o foco central da pesquisa social seja desvelar a ordem oculta 
do mundo informal da vida cotidiana (ver Myers, cap. 1 1, neste vo- 
lume, sobre análise da conversação). Na pesquisa social, estamos in- 
teressados na maneira como as pessoas espontaneamente se expres- 
sam e falam sobre o que é importante para elas e como elas pensam 
sobre suas ações e as dos outros. Dados informais são gerados menos 
conforme as regras de competência, tais como capacidade de escre- 
ver um texto, pintar ou compor uma música, e mais do impulso do 
momento, OU sob a influência do pesquisador. O problema sixrg^e 
quando os entrevistados dizem o que pensam que o entrevistador 
gostaria de ouvir. Devemos reconhecer falsas falas, que podem dizer 
mais sobre o pesquisador e sobre o processo de pesquisa, do que so- 
bre o tema pesquisado. 



Tabela 1 .2 - Moc/os e me/os 



Meio-modo Informal Formal 

Texto Entrevistas Jornais, 

Programas de rádio 

Imagem Desenhos de crianças Quadros 

Rabiscos feitos ao telefonar Fotografias 

Sons Cantos espontâneos Escritos musicais 

Cenários sonoros Rituais sonoros 

Relatos "distorcidos" Ruídos estratégicos Afirmações falsas sobre 

^falsos" ou encenados uma representação 



Por outro lado, existem ações comunicativas que são altamente 
formais, no sentido de que a competência exige um conhecimento 
especializado. As pessoas necessitam de treino para escrever arti- 
gos de jornal, para produzir desenhos para um comercial, ou para 
criar um arranjo para uma banda popular ou para uma orquestra 
sinfônica. Uma pessoa competente pode ter estudado as regras do 
comércio, muitas vezes para modificá-las a seu proveito, o que se 
chama de inovação. A comunicação formal segue as regras do co- 
mércio. O fato de o pesquisador usar os produtos resultantes, tais 
como um artigo de jornal, para a pesquisa social, provavelmente 
não influencia o ato da comunicação: não faz diferença o que o jor- 
nalista escreveu. Nesse sentido, os dados baseados nos registros 



— 21 — 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



não tiazem problema. Um problema diferente surge, contudo, 
quando os comunicadores dizem representar um grupo social que, 
na realidade, não representam. O cientista social deve reconhecer 
essas falsas pretensões de representação. 



Os dados formais reconstroem as maneiras pelas quais a realida- 
de social é representada por um grupo social. Um jornal representa 
até certo ponto o mundo para um grupo de pessoas, caso contrário 
elas nao o comprariam. Nesse contexto, o jornal se torna um indica- 
dor desta visão de mundo. O mesmo pode ser verdade para dese 
nhos que as pessoas consideram interessantes e desejáveb ou nari 
uma musica que é apreciada como aeradáv^l o ^ ’ P ara 

podõí^ 

sente e, as vezes, predizer futuras trajetórias é o objetivf de toda pes- 
quisa social Neste livro nós nos concentramos quase que exclusiva- 
mente no primeiro ponto: a categorização do problema. 



A filosofia deste livro pressupõe que não há “um modo ótimo" de 
fazer pesquisa social: não há razões convincentes para nos tornar- 
mos pollsters (pessoas que conduzem pesquisas de opinião), nem de- 
vemos nos tornar todos focusers (pessoas que realizam pesquisas com 
giupos focais). O objetivo deste livro é superar a “lei do instrumen- 
to (Duncker, 1995), segundo a qual uma criança que só conhece o 
martelo pensa que tudo deve ser tratado a marteladas. Por analogia, 
nem o questionário de levantamento, nem o grupo focal se consti- 
tuem no caminho régio para a pesquisa social. Este caminho pode, 
contudo, ser encontrado através de uma consciência adequada dos 
diferentes métodos, de uma avaliação de suas vantagens e limitações 
e de uma compreensão de seu uso em diferentes situações sociais, di- 
fei entes tipos de informações e diferentes problemas sociais. 



Estamos de acordo agora que a realidade social pode ser repre- 
sentada de maneii as infoi mais ou formais de comunicar e que o meio 
de comunicação pode ser composto de textos, imagens ou materiais 
sonoios. Na pesquisa social nós consideramos todos eles como impor- 
tantes, de um modo ou de outro. É isto que tentaremos esclarecer. 



Pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa 

Tem havido muita discussão sobre as diferenças entre pesquisa 
quantitativa e qualitativa. A pesquisa quantitativa lida com números, 
usa modelos estatísticos para explicar os dados, e é considerada pes- 

— 22 — 



I 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



quisa hard. O protótipo mais conhecido é a pesquisa de levantamen- 
‘ to de opinião. Em contraste, a pesquisa qualitativa evita números, 
lida com interpretações das realidades sociais, e é considerada pes- 
quisa soft. O protótipo mais conhecido é, provavelmente, a entrevis- 
ta em profundidade. Estas diferenças são mostradas na Tabela 1.3. 
Muitos esforços foram despendidos na tentativa de justapor pesqui- 
sa quantitativa e qualitativa como paradigmas competitivos de pes- 
quisa social, ao ponto de haver pessoas que construíram carreiras 
dentro de uma ou de outra, muitas vezes polemizando sobre a supe- 
rioridade da quantitativa sobre a qualitativa, ou vice-versa. Os edito- 
res foram rápidos em demarcar um mercado e criaram coleções de 
livros e revistas com a finalidade de perpetuar tal discussão. 



Tabela 1 .3 - 


Diferenças entre pesquisa quantitativa e 


qualitativa 




Estratégias 

Quantitativas 


Qualitativas 


Dados 


Números 


Textos 


Análise 


Estatística 


Interpretação 


Protótipo 


Pesquisas de opinião 


Entrevista em profundidade 


Qualidade 


Hard 


Soft 



É correto afirmar que a maior parte da pesquisa quantitativa está 
centrada ao redor do levantamento de dados (survey) e de questioná- 
rios, apoiada pelo SPSS ( Statistical Package for Social Sciences) e pelo 
SAS ( Statistics for Social Sciences) como programas padrões de análise 
estatística. Tal prática estabeleceu padrões de treinamento metodo- 
lógico nas universidades, a tal ponto que o termo metodologia pas- 
sou a significar estatística em muitos campos da ciência social. Para- 
lelamente, desenvolveu-se um amplo setor de negócios, oferecendo 
pesquisa social quantitativa para uma infinidade de propósitos. Mas 
o entusiasmo recente pela pesquisa qualitativa conseguiu mudar, 
com sucesso, a simples equiparação da pesquisa social com a meto- 
dologia quantitativa; e foi reaberto um espaço para uma visão menos 
dogmática a respeito de assuntos metodológicos — uma atitude que 
era comum entre os pioneiros da pesquisa social (veja, por exemplo, 
Lazarsfeld, 1968). 

Em nossos esforços, tanto em pesquisar, como em ensinar pes- 
quisa social, estamos tentando um modo de superar tal polêmica es- 
téril, entre duas tradições de pesquisa social aparentemente compe- 



la — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



titivas. Estamos procurando este objetivo apoiados em vários pressu- 
postos, como os que se seguem. 



Não há quantificação sem qualificação 



A mensuração dos fatos sociais depende da categorização do 

mundo social. As atividades sociais devem ser distinguidas antes que 

qualquer frequência ou percentual possa ser atribuído a qualquer 

distinção. E necessário ter uma noção das distinções qualitaZas en- 

egonas sociais, antes que se possa medir quantas pessoas Der 
tencem a uma ou outra catep-orin . 4 , pessoas per- 

pode-se começar a cZtar 
verdade para os fatos sociais. 



Não há análise estatística sem interpretação 

Pensamos que é incorreto assumir que a pesquisa qualitativa 
possui o monopólio da interpretação, com o pressuposto paralelo 
de que a pesquisa quantitativa chega a suas conclusões quase que au- 
tomaticamente. Nós mesmos nunca realizamos nenhuma pesquisa 
numérica sem enfrentar problemas de interpretação. Os dados não 
falam por si mesmos, mesmo que sejam processados cuidadosamen- 
te, com modelos estatísticos sofisticados. Na verdade, quanto mais 
complexo o modelo, mais difícil é a interpretação dos resultados. 
Escudar-se atrás do “círculo hermenêutico” de interpretação, de 
acordo com o qual a melhor compreensão provém do fato de sê sa- 
ber mais sobre o campo de investigação, é para os pesquisadores 
qualitativos um lance retórico, mas um lance bastante ilusório. O 
que a discussão sobre a pesquisa qualitativa tem conseguido foi des- 
mistificar a sofisticação estatística como o único caminho para se 
conseguir resultados significativos. O prestígio ligado aos dados nu- 
méiicos possui tal poder de persuasão que, em alguns contextos, a 
má qualidade dos dados é mascarada e compensada por uma sofisti- 
cação numérica. A estatística, como um recurso retórico, contudo, 
preocupa-se com o problema relativo ao tipo de informações quê 
são analisadas: se colocarmos informações irrelevantes, teremos es- 
tatísticas irrelevantes. No nosso ponto de vista, a grande conquista 
da discussão sobre métodos qualitativos é que ela, no que se refere à 
pesquisa e ao treinamento, deslocou a atenção da análise em direção 
a questões referentes à qualidade e à coleta dos dados. 



— 24 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



Parece que a distinção entre pesquisa numérica e não-numérica é, 
muitas vezes, confundida com outra discussão, isto é, a distinção entre 
formalização e não formalização da pesquisa (ver Tabela 1.4). A polê- 
mica sobre estes tipos de pesquisa é muitas vezes ligada ao problema 
da formalidade, e baseada na socialização metodológica do pesquisa- 
dor. O formalismo implica abstrações do contexto concreto da pes- 
quisa, introduzindo assim uma distância entre a observação e os da- 
dos. Explicando melhor, o formalismo é uma abstração para propósi- 
tos gerais, útil para o tratamento de muitos tipos de dados, contanto 
que determinadas condições sejam satisfeitas, tais como independên- 
cia das mensurações, igual variância, etc. A natureza abstrata do for- 
malismo implica uma especialização tal que pode conduzir a um de- 
sinteresse total para com a realidade social representada pelos dados. 
Muitas vezes é esse “distanciamento emocional”, e não tanto os núme- 
ros em si, que leva pesquisadores com outras convicções a não se sen- 
tirem bem com a pesquisa quantitativa. Como mostraremos a seguir, 
contudo, isso tem a ver com o fato de se lidar com um método de pes- 
quisa específico, mas pode ser discutido com mais proveito no contex- 
to mais amplo dos interesses do conhecimento. A pesquisa numérica 
possui um amplo repertório de formalidades estatísticas a seu dispor, 
enquanto que um repertório equivalente na pesquisa qualitativa não 
está ainda bem desenvolvido - apesar do fato de que seu antecessor, 
muitas vezes invocado, o estruturalismo, fosse muito forte em forma- 
lismos (veja, por exemplo, Abell, 1987). 



Tabela 1 .4 - A formalização e a não formalização da pesquisa 





Quantitativa 


Qualitativa 


Não formalização 


Freqüêncías descritivas 


Citações, descrições, anedo- 
tas 


Formalização 


Modelagem estatística, por 
ex. um livro de introdução 


Modelagem 
teórico-gráfica, por ex. 
Abell (1987) 



Pluralismo metodológico dentro do processo de pesquisa : além da lei do 
instrumento 

Uma conseqüência infeliz da prática de se centrar em dados nu- 
méricos no treinamento em pesquisa foi uma interrupção prematu- 
ra na fase de coleta de dados no processo de pesquisa. Com muitas 
pessoas competentes no tratamento de dados numéricos, o processo 
de coleta de dados é rapidamente reduzido às rotinas mecânicas do 



— 25 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



delineamento do questionário e da amostra do levantamento, como 
se esta fosse a única maneira de se fazer pesquisa social. Não há dúvi- 
da que muito se conseguiu devido ao refinamento destes procedi- 
mentos, ao passar dos anos, e ostatus do levantamento (survey), como 
o mais importante método de pesquisa social é justificado devido a 
isso. Nada justifica, contudo, sua condição como o único instrumen- 
to de pesquisa social. Estamos aqui no perigo de sucumbir à “lei do 
instrumento”: dê um martelo a uma criança, e todas as coisas no 
mundo devem ser marteladas. 

O que é necessário é uma visão mais holística do processo de pes- 
quisa social, para que ele possa incluir a definição e a revisão de um 
problema, sua teorização, a coleta de dados, a análise dos dados e a 
apresentação dos resultados. Dentro deste processo, diferentes me- 
todologias tem Contribuições diversas a oferecer. Necessitamos de 
uma noção mais clara das vantagens e desvantagens funcionais das 
diferentes correntes de métodos, e dos diferentes métodos dentro 
de uma corrente. 

A ordenação do tempo 

Um modo de descrever a funcionalidade dos diferentes métodos 
é ordená-los em um desenho que implique uma linha de tempo. 
Tradicionalmente, a pesquisa qualitativa foi considerada apenas no 
estágio exploratório do processo de pesquisa (pré-desenho), com a 
finalidade de explorar distinções qualitativas, a fim de se desenvol- 
ver mensurações, ou para que se tivesse certa sensibilidade com o 
campo de pesquisa. Formulações mais recentes consideram a pes- 
quisa qualitativa como igualmente importante depois do levanta- 
mento, para guiar a análise dos dados levantados, ou para funda- 
mentar a interpretação com observações mais detalhadas (pós-deli- 
neamento). Delineamentos mais amplos consideram duas correntes 
paralelas de pesquisa, tanto simultaneamente, como em seqüências 
oscilantes (delineamento paralelo; delineamento antes-e-depois). 
Finalmente, a pesquisa qualitativa pode ser agora considerada como 
sendo uma estratégia de pesquisa independente, sem qualquer co- 
nexão funcional com o levantamento ou com outra pesquisa quanti- 
tativa (independente). A pesquisa qualitativa é vista como um em- 
preendimento autônomo de pesquisa, no contexto de um programa 
de pesquisa com uma série de diferentes projetos. 

A função independente da pesquisa qualitativa possui uma limi- 
tação que nós tentamos enfrentar neste livro. Embora seja possível 



— 26 — 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



considerar a pesquisa numérica e a não numérica como empreendi- 
mentos autônomos, o problema com a pesquisa qualitativa é que 
ela é um “pesadelo didático”. Se comparados com a tradição de 
pesquisa numérica, baseada na amostragem, no questionário e na 
análise estatística, os pesquisadores qualitativos, e os que preten- 
dem tornar-se pesquisadores qualitativos, encontram pouca clareza 
e orientação na literatura para seus procedimentos. Embora isto es- 
teja mudando lentamente, à medida que a massa crítica de pesquisa- 
dores desta linha está aumentando, a maioria da literatura está ain- 
da preocupada em demarcar o território legítimo deste procedi- 
mento metodológico autônomo. Esta retórica legitimadora levou a 
uma hipertrofia epistemológica, originando definições de posicio- 
namentos e contraposicionamentos dentro de um campo competiti- 
vo, COm mais obscurantismo ejargões do que com esclarecimento e, 
ao final de contas, foi de pouca serventia quando se trata de saber o 
que fazer quando se faz pesquisa qualitativa. Até o presente momen- 
to, temos muito apoio para nos “sentirmos bem ’, face à crítica tradi- 
cional, mas há pouca auto-observação crítica. 

Discurso independente dos “ padrões de boa prática 

A vantagem didática e prática da pesquisa numérica é sua clareza 
de procedimentos e seu elaborado discurso de qualidade no pioces- 
so de investigação. Um discurso de qualidade serve a vários propósi- 
tos numa investigação: a) para estabelecer uma base para autocríti- 
ca; b) para demarcar uma prática boa de uma ruim, servindo como 
padrões para a revisão dos pares; c) para ganhar credibilidade no 
contexto da credibilidade pública; d) para servir como um instiu- 
mento didático no treinamento dos estudantes. Sem querer imitar 
literalmente a pesquisa quantitativa, a pesquisa qualitativa necessita 
desenvolver equivalerites funcionais. A fim de reforçar a autonomia e a 
credibilidade da pesquisa qualitativa, necessitamos procedimentos e 
padrões claros para identificar uma boa prática e uma prática ruim, 
tanto através de exemplos, como de critérios abstratos. Este livro 
traz uma contribuição nesta direção. 

Elementos retóricos da pesquisa social 

Historicamente, a ciência e a retórica tiveram uma relação difícil. 
A retórica foi vista pelos pioneiros da ciência como uma foi ma de em- 
belezamento verbal que necessitava ser evitado se alguém quisesse al- 
cançar a verdade do problema: veja o lema da Sociedade Real de 



— 27 - 



PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Londres, nullius in verbis (nada nas palavras). Este ideal científico da 
descrição e explicação da natureza, sem recorrer a meios retóricos, 
está sendo cada vez mais desafiado pela visão realista do que está 
acontecendo na comunicação no meio dos cientistas e entre cientistas 
e outros setores do público (Gross, 1990). O “deve” da ciência está 
obscurecendo o “é” da ciência. Um elemento essencial da atividade 
científica é “comunicar”, e isto implica persuadir os ouvintes que al- 
gumas coisas são importantes e outras não. A persuasão nos leva à es- 
fera tradicional da retórica como “a arte de persuadir”. Por conse- 
guinte, nós consideramos a pesquisa social científica como uma forma 
de retórica com meios e normas específicas de engajamento. 

A análise retórica incorpora os “três mosqueteiros” da persua- 
são: o logos, o pathos e o ethos (veja Leach, cap. 12 neste volume). O lo- 
gos se refere à lógica do puro argumento, e os tipos de argumentos 
empregados. O pathos se refere aos tipos de apelo e reconhecimento 
dado à audiência, levando em consideração a psicologia social das 
emoções. O ethos abrange as referências implícitas e explícitas na si- 
tuação de quem fala, que estabelece sua legitimidade e credibilidade 
no falar o que está sendo dito. Deveríamos, portanto, pressupor que 
toda apresentação de resultados de uma pesquisa é um conjunto dos 
três elementos básicos da persuasão, na medida em que os pesquisa- 
dores querem convencer seus pares, os políticos, as agências de fi- 
nanciamento, ou mesmo seus sujeitos de estudo, da autenticidade e 
importância de seus achados. No contexto de se comunicar os resul- 
tados da pesquisa, o ideal científico de uma retórica de pura raciona- 
lidade argumentativa, sem pathos ou ethos, é uma ilusão. 

Esta perspectiva apresenta várias implicações úteis para nosso pro- 
blema da pesquisa qualitativa. Primeiro, sentimo-nos livres para con- 
siderar a metodologia da pesquisa social como o meio retórico, atra- 
vés do qual as ciências sociais podem reforçar sua forma específica de 
persuasão. O surgimento e a trajetória histórica desta forma de retóri- 
ca na esfera pública da sociedade moderna são, em si mesmos, pro- 
blemas históricos e sociológicos. Em segundo lugar, libertamo-nos do 
obscurecimento epistemológico que pesa sobre as discussões dos mé- 
todos, e podemos nos concentrar em desenvolver comunicações ve- 
rossímeis, dentro das regras do jogo científico. Em terceiro lugar, po- 
demos tratar a pesquisa quantitativa e qualitativa de modo igual, a 
partir destes pressupostos. Em quarto lugar, a retórica se desenvolve 
no contexto do falar e do escrever públicos, o que nos lembra que o 
método e o procedimento constituem uma forma de responsabilida- 



— 28 — 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



de pública para a pesquisa que necessita ser exercida à altura. E final- 
mente, o ideal científico não é perdido, mas é preservado, a partir de 
uma motivação coletiva para se construir e conservar esta forma espe- 
cífica de persuasão científica - isto é, manter uma retórica em favor do 
logos, reduzindo o ethos e o pathos na comunicação. As regras do méto- 
do e os procedimentos para se conseguir apresentar evidência em pú- 
blico nos protegem da supervalorização da autoridade (ethos), e de 
apenas satisfazer ao público - dizendo-lhe o que quer ouvir (pathos ). 
Não dar ouvidos nem à autoridade, nem ao público, continua sendo 
um valor central de qualquer pesquisa que mereça tal nome. Isto é 
apenas relevante em contraste com outras formas de retórica da vida 
pública, que diferem em sua combinação de logos, ethos e pathos. Os 
mundos da política, da arte e da literatura, os meios de comunicação e 
os tribunais, encorajam e cultivam formas de persuasão que são dife- 
rentes da forma como ela é empregada na ciência. Atente-se que “di- 
ferentes da ciência” não significa “irrelevantes”: notícias, julgamentos 
legais e boatos são formas importantes de comunicação embora difi- 
ram, em sua combinação de logos, pathos e ethos, do que normalmente 
é considerado uma comunicação científica. 

Deste modo, consideramos os métodos e procedimentos de cole- 
ta e de apresentação de evidência como essenciais para a pesquisa 
social científica. Eles definem o grau específico de retórica que de- 
marca as atividades científicas de outras atividades públicas, e colo- 
cam com clareza a pesquisa dentro da esfera pública, sujeitando-a às 
exigências de credibilidade. Os métodos e os procedimentos são o 
meio científico de prestação de contas pública com respeito à evi- 
dência. Temos, contudo, de pressupor uma esfera pública que tenha 
liberdade de permitir uma busca da evidência sem censura, o que 
não pode ser assumido como algo dado (Habermas, 1989). 

Interesses do conhecimento e métodos 

Métodos quantitativos e qualitativos são mais que apenas diferen- 
ças entre estratégias de pesquisa e procedimentos de coleta de da- 
dos. Esses enfoques representam, fundamentalmente, diferentes re- 
ferenciais epistemológicos para teorizar a natureza do conhecimen- 
to, a realidade social e os procedimentos para se compreender esses 
fenômenos (Filstead, 1979: 45). 

Esta afirmação exemplifica o ponto de vista de que enfoques 
quantitativos e qualitativos com referência à pesquisa social repre- 
sentam posições epistemológicas profundamente diferentes. Eles 



— 29 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



são, dentro de tal concepção, modos de investigação mutuamente 
exclusivos. Outra afirmação, contudo, que muitas vezes é feita, refe- 
re-se à significância crítica, radical ou emancipatória, implicada na 
escolha do método feita pelo pesquisador. A pesquisa qualitativa é, 
muitas vezes, vista como uma maneira de dar poder ou dar voz às 
pessoas, em vez de tratá-las como objetos, cujo comportamento deve 
ser quantificado e estatisticamente modelado. Essa dicotomia é inú- 
til, como já vimos. 

Um modo alternativo de pensar sobre os objetivos da pesquisa 
social e sua relação com a metodologia é levar em conta a filosofia de 
Jürgen Habermas, apresentada em Knowledge and Human Interests 
(Conheamento e Interesses Humanos, 1987). Habermas identifica 
tres interesses do conhecimento”, que devem ser compreendidos, a 
rim de dar sentido à pratica da ciência social e de suas consequências 
na sociedade. Mas ele ressalta que não são as orientações intencio- 
nais e epistemologicamente conscientes dos cientistas que fornecem 
a chave para tal compreensão. Ao contrário, ele concebe os interes- 
ses do conhecimento como tradições “antropologicamente sedi- 
mentadas” (Habermas, 1974: 8). Os interesses constitutivos do co- 
nhecimento aos quais Habermas se refere são, de fato, as “condições 
que são necessárias a fim de que sujeitos capazes de falar e agir pos- 
sam ter uma experiência que possa fundamentar uma objetividade” 
(1974: 9). Tentando tornar isso claro, nós descartamos a idéia de 
que interesses, no sentido de Habermas, possam ser colocados “a 
serviço” de qualquer enfoque metodológico; ao contrário, eles exis- 
tem, em primeiro lugar, como condições necessárias para a possibi- 
lidade da prática de pesquisa, independentemente de que métodos 
específicos sejam empregados: 

O fato de negarmos a reflexão é positivismo (1987: VII). 

Em Knowledge and Human Interests, Habermas quer reconstruir a 
“pré-história” do positivismo, para mostrar como a epistemologia, 
como uma crítica do conhecimento, foi sendo progressivamente mi- 
nada. Desde Kant, argumenta Habermas, “constrói-se o próprio ca- 
minho sobre estágios abandonados de reflexão” (1987: VII). A partir 
do predomínio do positivismo, a filosofia não pode mais compreen- 
der a ciência; pois é a própria ciência que constitui a única forma de 
conhecimento que o positivismo admite como crítica. A investigação 
kantiana sobre as condições de um conhecimento possível foi substi- 
tuída por uma filosofia da ciência que “se restringe à regulação pseu- 



— 30 — 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



donormativa da pesquisa estabelecida” (1987: 4), como o falsificacio- 
nismo de Popper. Habermas tenta reabilitar uma dimensão episte- 
mológica dentro da filosofia da ciência, “auto-reflexão crítica”, atra- 
vés da qual a ciência pode se tornar capaz de autocompreensão 
(não-cientística). E, ao fazer isso, argumenta Habermas, a ciência, e 
particularmente a ciência social, é capaz de revelar as condições que 
possam impedir uma prática de pesquisa crítica e emancipatória. 

Podemos agora voltar à tipologia específica de interesses que 
Habermas emprega. Através de uma interpretação de Marx, Peirce, 
Gadamer e Dilthey, Habermas identifica três interesses constitutivos 
do conhecimento que estão na base das ciências “empírico-analíti- 
cas , historico-hermenêuticas” e “críticas”. As ciências empírico-ana- 
llücas têm como sua base um interesse no controle técnico. A luta 
perpétua para controlar o mundo natural, necessária para a repro- 
dução de nós mesmos como seres humanos, leva-nos a formular re- 
gras que guiam nossa ação com propósito racional. Em outras pala- 
vras, o imperativo racional para a aquisição do conhecimento cientí- 
fico sempre foi o de conseguir controle sobre as condições materiais 
em que nos encontramos e com isso aumentar nossa saúde e segu- 
rança física e espiritual. Devido ao fato de nosso interesse pela natu- 
reza ser fundamentalmente o de controlar suas condições, “este sis- 
tema de ação condiciona, com necessidade transcendental, nosso 
conhecimento da natureza ao interesse no possível controle técnico 
sobre os processos naturais” (McCarthy, 1978: 62). As ciências empí- 
rico-analíticas procuram produzir conhecimento nomológico. A pre- 
dição e a explicação possuem, portanto, uma relação de simetria. 
Leis universais fundamentadas empiricamente são combinadas com 
um conjunto de condições iniciais, que resultam em um conjunto de 
covariâncias (previsíveis) de acontecimentos observáveis. Este é um 
modelo que pode ser visto em muita pesquisa social quantitativa. 

As ciências histórico-hermenêuticas, diz Habermas, surgem atra- 
vés de um interesse prático no estabelecimento de consenso. Para 
que a ciência (e, na verdade, qualquer outra prática social) aconteça, 
é imperativo que haja compreensão intersubjetiva fidedigna, estabe- 
lecida na prática da linguagem comum. A compreensão hermenêu- 
tica ( Verstehen ) tem como finalidade restaurar canais rompidos de 
comunicação. Isto se dá em duas dimensões: a primeira, no elo entre 
a própria experiência de vida de alguém e a tradição à qual ele per- 
tence; e a segunda se dá na esfera da comunicação entre diferentes 
indivíduos, grupos e tradições. A falta de comunicação é uma carac- 



— 31 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



terística perpétua e onipresente do mundo social, e se constitui num 
problema social óbvio. A preocupação em restabelecer o entendi- 
mento mútuo torna-se então, de igual modo, um problema perpé- 
tuo e onipresente. As ciências histórico-hermenêuticas procederam 
de práticas em questões públicas - na política e na organização de 
comunidades e de trabalho para produção - onde a vida individual e 
a organização social são impossíveis sem alguma estabilidade do sen- 
tido intersubjetivo. Estas são, pois, as condições que exigem o desen- 
volvimento das ciências culturais ou sociais. Habermas contrasta a fi- 
nalidade das ciências empírico-analíticas com as ciências culturais 
( Geistesiuissenchaften ) : 

As primeiras têm como finalidade substituir regras de comporta- 
mento que fracassaram na realidade com regras técnicas testadas, 
enquanto que as segundas procuram interpretar expressões da 
vida que não podem ser compreendidas e que bloqueiam a recipro- 
cidade das expectativas comportamentais ( 1987 : 175 ). 

O cientista cultural necessita aprender a falar a língua que ele in- 
terpreta, mas deve necessariamente aproximar-se de tal interpreta- 
ção de um ponto histórico específico. E ao fazer isto, é impossível 
não levar em consideração a totalidade de interpretação que já está 
presente: o pesquisador entra no que poderia se chamar de “círculo 
hermenêutico”. O ponto a que tudo isso conduz, para Habermas, é 
ao estabelecimento de consenso entre os atores. Este consenso é ne- 
cessariamente fluido e dinâmico, pois ele é conseguido através de 
uma interpretação que evoluiu, e continua a evoluir, historicamente. 
Essa orientação consensual para se apreender a realidade social 
constitui o “interesse prático” das ciências hermenêuticas - cuja fi- 
nalidade (não dita) é estabelecer as normas comuns que tomam a 
atividade social possível. 

A esta altura, pode-se ver claramente como a clivagem quantita- 
tivo/qualitativo pode ser caracterizada como a que separa técnicas 
de “controle”, por um lado, e de “compreensão”, por outro. Mas 
isto, na verdade, não confronta a afirmativa mais forte feita, muitas 
vezes, em favor da pesquisa qualitativa, de que ela é intrinsecamente 
uma forma de pesquisa mais crítica e potencialmente emancipató- 
ria. Um objetivo importante do pesquisador qualitativo é que ele se 
torna capaz de ver “através dos olhos daqueles que estão sendo pes- 
quisados” (Bryman, 1988: 61). Tal tipo de enfoque defende que é 
necessário compreender as interpretações que os atores sociais pos- 
suem do mundo, pois são estes que motivam o comportamento que 



— 32 — 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



cria o próprio mundo social. Embora isso seja certamente verdadei- 
ro, não se conclui que o resultado seja necessariamente uma produ- 
ção crítica. Na verdade, pode-se imaginar uma situação em que tal 
"entendimento”, da maneira como é construído, sirva de fundamen- 
to para o estabelecimento de mecanismos de controle social. 

Uma crítica bem-sucedida é a que explica os fenômenos sob in- 
vestigação com mais sucesso do que as teorias aceitas até o momen- 
to. E ao fazer isto, ela deve desafiar pressupostos que até o momento 
tinham sido aceitos acnticamente. Corremos o risco, ao assumirmos 
um enfoque fenomenológico, socioconstrucionista ou qualquer ou- 
tro enfoque qualitativo, de substituirmos acriticamente nossos pró- 
prios pressupostos, pelos de nossos informantes. Deste modo, por 
arte de um “empiricismo por proximidade”, a pesquisa qualitativa 
pode repetir os erros considerados, em geral, como sendo associa- 
dos a um positivismo acrítico. 

A esta altura Habermas é, mais uma vez, útil. Os interesses eman- 
dpatórios daquilo que Habermas (1987: 310) chama de ciências “crí- 
ticas”, não excluem um modo de investigação empírico-analítica: mas 
de igual modo eles vão mais além que o entendimento hermenêutico. 
Atese de Habermas é a de que os interesses emancipatórios fornecem 
o referencial para se avançar além do conhecimento nomológico e da 
I r erstehen, e nos permitem “determinar quando afirmações teóricas 
atingem regularidades invariantes da ação social como tal, e quando 
elas expressam relações ideologicamente congeladas de dependência 
que podem, em princípio, ser transformadas” (1987: 310). É através 
de um processo auto-reflexivo que as ciências críticas podem chegar a 
identificar estruturas condicionadoras de poder que, acriticamente, 
se mostram como “naturais” mas são, de fato, o resultado de uma 
“comunicação sistematicamente distorcida e de uma repressão sutil- 
mente legitimada” (1987: 371). 

Habermas vê o período do Iluminismo como a idade de ouro da 
ciência “crítica”, da astronomia até a filosofia. Mas o que distingue 
este período não é simplesmente o fato de que ele marcou o começo 
do “método científico”, mas que a aplicação da razão, como corpori- 
ficada no método, foi inerentemente emancipatória, devido ao de- 
safio que ela colocou à legitimação da Igreja e da hierarquia social 
existente. A afirmativa de Habermas é, pois, que a razão (o que nós 
comumente entendemos hoje por racionalismo) em si mesma é ine- 
rente a um interesse de conhecimento emancipatório e que a aplica- 
ção da razão é fundamentalmente um empreendimento crítico. Não 



— 33 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



se deveria, porém, tentar compreender esta postura como uma pres- 
crição normativa a ser assumida pelos cientistas sociais “radicais”, ao 
invés disto, ela é um caminho para se teorizar como, e por que, uma 
boa ciência, de qualquer espécie, pode ser uma atividade libertadora 
para a humanidade. 

Zygmunt Bauman, escrevendo na mesma linha de idéias que Ha- 
bermas dentro da tradição da teoria crítica, apresenta uma sugestão 
prática para a operacionalização de um enfoque de pesquisa crítica — 
“autenticação”: 

0 potencial emancipatório do conhecimento é posto à prova — e na 
verdade pode ser concretizado - somente a partir do diálogo, quan- 
do os objetos das afirmações teóricas se transformam em partici- 
pantes ativos no processo incipiente de autenticação (1976: 106). 

A autenticação de uma teoria crítica, deste ponto de vista, so- 
mente pode ser conseguida através da aceitação de sua importância 
pclOS QUC constituem seus objetos. Por exemplo, uma pesquisa qua- 
litativa que pressuponha a devolução dos resultados aos participan- 
tes do estudo pode conseguir, na verdade, tal resultado. E claro, che- 
ga-se aos limites de tal enfoque, quando os objetos da pesquisa são 
pessoas que já ocupam posições de poder ou de elite - como os polí- 
ticos, gerentes e profissionais. Em tais casos, os informantes podem 
ter interesses pessoais a defender e podem, por isso, procurar dis- 
torcer seus reais pontos de vista com respeito às interpretações críti- 
cas feitas pelos pesquisadores. 

Mas a crítica não precisa ser, exclusivamente, o campo do enfo- 
que qualitativo. Estudos vitorianos sobre pobreza, tais como Po- 
verty: a Study ofTown Life (1902), de Rowntree, atingiram um status 
crítico, podemos dizer, ao desvelar a extensão da pobreza em esca- 
la quantitativa: 

A classe trabalhadora recebe até 24 por cento menos de comida do 
quanto, conforme provado por peritos especializados , é necessário 
para a manutenção da eficiência física (1902: 303). 

E um fato que pode muito bem causar grandes sofrimentos, que 
nesse país de abundante riqueza duran te um tempo de prosperida- 
de sem igual, mais que um quarto da população esteja vivendo na 
pobreza (1902: 304). 

O trabalho quantitativo de Rowntree consistia em uma simples 
estatística descritiva; mas ela se mostrou poderosa devido a sua habi- 
lidade em expor condições ocultas de pobreza e privação. Apresen- 



34 — 



1 . Qualidade, quantidade e interesses... 



tações de dados numéricos chamam, freqüentemente, a atenção no 
discurso dos meios de comunicação; eles são recursos retóricos. E 
isso se constitui em um modo pelo qual, para citar Bauman, a teori- 
zação social “brota da escrivaninha do pesquisador e navega pelas 
águas infinitas da reflexão popular” (1976: 107). 

Parece claro, então, que se deve também levar em consideração a 
recepção dos resultados da pesquisa pelo público pretendido (ou 
talvez não pretendido), como parte da “situação total da pesquisa”. 
Os achados de pesquisas realizadas com grupos focais sobre o consu- 
mo de álcool, por exemplo, possuem uma significação diversa, de- 
pendendo do fato de eles serem publicados na imprensa popular 
como parte de uma campanha de saúde pública, com o fim de aju- 
dar alcoohcos, ou se forem usados para dar informações às estraté- 
gias de marketing de uma grande cervejaria. Neste caso, a recepção 
dos achados por quem e para que propósito é um ponto crucial. A 
recente controvérsia sobre o Censo dos Estados Unidos do ano 2000 
é um exemplo onde os estatísticos, que estavam pleiteando empre- 
gar uma metodologia sofisticada de amostragem de estágios múlti- 
plos, queriam corrigir a subestimação de minorias étnicas, inerente 
ao método constitucionalmente consagrado de “contagem comple- 
ta^ (Wright, 1998). A tempestade política que se seguiu é um exem- 
plo onde uma reflexão pública generalizada sobre assuntos sociais 
relevantes foi desencadeada devido às claras implicações de uma 
metodologia de pesquisa quantitativa clássica. 

A implicação, então, da tipologia de interesses do conhecimento 
de Habermas é que nós podemos considerar que o potencial crítico 
de diferentes metodologias de pesquisa, sui generis, não é importan- 
te no que se refere às discussões apresentadas nos capítulos que se 
seguem. A prontidão dos pesquisadores em questionar seus pró- 
prios pressupostos e as interpretações subseqüentes de acordo com 
os dados, juntamente com o modo como os resultados são recebidos 
e por quem são recebidos, são fatores muito mais importantes para a 
possibilidade de uma ação emancipatória do que a escolha da técni- 
ca empregada. 

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BAUMAN, Z. (1976). Towards a Criticai Sociology: an Essay on Conimon 
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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



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— 36 — 



Parte I 

Construindo um corpus 
de pesquisa 






2 

A CONSTRUÇÃO DO CORPUS: UM PRINCÍPIO PARA A 
COLETA DE DADOS QUALITATIVOS 

Martin W. Bauer & Bas Aarts 



Palavras-chave : corpus-, distorção da amostragem (não cobertu- 
ra, percentual de resposta); paradoxo corpus teórico; homogenei- 
dade; referencial de amostra; população; estratégia de amostra- 
gem; relevância; saturação; representações (variação interna); es- 
tratos e funções (variação externa); amostra representativa; sin- 
cronicidade. 



Toda pesquisa social empírica seleciona evidência para argu- 
mentar e necessita justificar a seleção que é a base de investigação, 
descrição, demonstração, prova ou refutação de uma afirmação es- 
pecífica. A orientação mais elaborada para selecionar a evidência 
nas ciências sociais é a “amostragem estatística aleatória” (ver Kish, 
1965). A competência da amostra representativa é inconteste. Em 
muitas áreas de pesquisa textual e qualitativa, contudo, a amostra re- 
presentativa não se aplica. Como selecionar pessoas para uma pes- 
quisa com grupos focais? Temos intenção, de fato, de representar 
uma população através de quatro ou cinco discussões com grupos fo- 
cais? Infelizmente, até agora não se deu a tal assunto suficiente aten- 
ção. Na prática, os pesquisadores muitas vezes tentam justificar o ra- 
cional de uma amostragem que parece distorcida, como se fosse a es- 
colha de uma falsa analogia. Neste capítulo, nós propomos a “cons- 
trução de um corpus ”, como um princípio alternativo de coleta de da- 
dos. Empregamos definições consistentes para nossos conceitos bá- 
sicos: “amostragem” significa amostragem estatística aleatória; “cons- 
trução de corpus” significa escolha sistemática de algum racional al- 
ternativo, que será explicado a seguir. Amostragem e construção de 
corpus são dois procedimentos de seleção diversos. Do mesmo modo 



— 39 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



que amostragem representativa, nós trilhamos o caminho interme- 
diário entre a contagem de uma população e a conveniente seleção. 
A seleção não sistemática viola o princípio de prestação de contas 
pública da pesquisa; a construção de um corpus, porém, garante a 
eficiência que se ganha na seleção de algum material para caracteri- 
zar o todo. Deste modo, a construção de um corpus e a amostragem 
representativa são funcionalmente equivalentes, embora sejam es- 
truturalmente diferentes. Empregando este tipo de linguagem, con- 
seguimos uma formulação positiva para a seleção qualitativa, em vez 
de defini-la como uma forma inferior de amostragem. Em resumo, 
nós defendemos que a construção de um corpus tipifica atributos des- 
conhecidos, enquanto que a amostragem estatística aleatória descreve 
a distribuição de atributos já conhecidos no espaço social. Ambos os 
racionais devem ser cuidadosamente distinguidos para se evitar con- 
fusões sobre pesquisa qualitativa e falsas inferências a partir dela. 

Desenvolvemos esta argumentação em três etapas. Primeiro, re- 
visamos brevemente os conceitos centrais da amostragem represen- 
tativa e fazemos alusão a problemas que surgem de populações que 
não podem ser conhecidas. Em segundo lugar, discutimos a constru- 
ção de um corpus no campo em que ele foi desenvolvido: a lingüísti- 
ca. Finalmente, abstraímos regras desta prática, como orientações 
para a seleção de informações na pesquisa social qualitativa. 



Amostragem representativa na pesquisa social 

A prática de fazer inventários sobre a população possui uma lon- 
ga história: governos quiseram saber que tipo de habitantes eles go- 
vernam a fim de orientar sua política. A curta história da amostra- 
gem aleatória começou no fim do século dezenove, em um clima de 
opiniões conflitantes entre pesquisadores: alguns acreditavam em 
uma contagem completa, alguns na amostragem, e outros em estu- 
dos de caso singulares. Apenas uma aliança não santa entre pesqui- 
sadores de estudo de caso e pesquisadores que lidavam com amos- 
tragens aleatórias pôde dar fim à dominação dos que defendiam a 
contagem completa (0’Muircheartaigh, 1977). 

A amostragem garante eficiência na pesquisa ao fornecer uma 
base lógica para o estudo de apenas partes de uma população sem 
que se percam as informações - seja esta população uma população 
de objetos, animais, seres humanos, acontecimentos, ações, situa- 



— 40 — 




2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



ções, grupos ou organizações. Como pode o estudo de uma parte 
fornecer um referencial seguro do todo? A chave para decifrar este 
enigma é representatividade. A amostra representa a população se a 
distribuição de algum critério é idêntica tanto na população como 
na amostra. Os parâmetros de uma população são calculados através 
das estimativas observadas na amostra. Quanto maior a amostra, 
menor é a margem de erro destas estimativas, embora o próprio 
processo de amostragem possa trazer outros erros. Em princípio, é 
necessário provar que os critérios da amostra e as variáveis focais de 
fato se correlacionem. Na prática, contudo, presume-se em geral 
que se a amostra representa a população a partir de um determina- 
do número de critérios, então ela representará também a população 
naqueles critérios nos quais alguém esteja interessado: o pesquisa- 
dor pode entrevistar 2000 ingleses, cuidadosamente selecionados 
conforme idade, sexo e classe social, e ele terá segurança para carac- 
terizar as opiniões da nação, digamos, sobre modificação genética 
de alimentos, dentro de uma margem conhecida de erro. Isto é pos- 
sível seguindo-se o racional da amostragem, o que trará enorme eco- 
nomia de tempo e esforço. 

A amostragem refere-se a um conjunto de técnicas para se conse- 
guir representatividade. A exigência-chave é o referencial de amos- 
tragem que operacionaliza a população. Ele se compõe de uma lista 
específica de unidades que são levadas em conta na seleção. Cada 
item da lista representa apenas um membro da população, e cada 
item possui uma probabilidade igual de ser selecionado. Um refe- 
rencial de amostragem pode se constituir de números de telefones, 
endereços e códigos postais, listas de eleitores ou listas de compa- 
nhias. Por exemplo, a lista de estudantes que estão prestando exame 
em uma universidade é um referencial de amostragem para a popu- 
lação estudantil deste ano específico. A qualidade do referencial de 
amostragem é medida pelo quanto ela não consegue abranger todos 
os elementos que devem ser pesquisados (não cobertura). A maioria 
das definições que levam em conta as tensões internas da população 
são mais amplas que sua operacionalização em uma possível lista: 
por exemplo, a população de uma nação inclui seus prisioneiros e os 
portadores de doença psíquica, enquanto que a lista de eleitores irá 
excluí-los. Os números dos telefones dão margem a situações a des- 
coberto, pois algumas residências não possuem telefone, enquanto 
que outras possuem diversos. A não cobertura total é a primeira dis- 
torção da amostra. 



— 41 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



O referencial de amostragem é uma precondição para se poder 
aplicar uma estratégia de amostragem. Gerando 100 números aleató- 
rios entre 1 e 5000, e selecionando os itens da lista que corresponde a 
esses 100 números aleatórios, cria-se uma simples amostra aleatória 
de 100 dentro de 5000. Tomemos como um exemplo mais elaborado 
uma amostra de múltiplos estágios para o estudo de opiniões sobre 
alimento geneticamente modificado. O pesquisador pode selecionar 
uma amostra de 50 áreas a partir dos códigos postais do correio, es- 
tratificadas conforme características socioeconômicas, tais como a mé- 
dia da renda e a residência urbana ou rural. O pressuposto é que a 
renda e a residência urbana ou rural irão influenciar nas opiniões. No 
segundo estágio, ele seleciona aleatoriamente, em cada uma das 50 
áreas, 40 residências, a partir da divisão feita pelo código postal, onde 
finalmente o pesquisador irá entrevistar um membro da família, com 
idade acima de 15 anos, cuja data de nascimento esteja mais próxima 
da data da entrevista. Teremos uma cota de amostra se, no passo final, 
as unidades forem selecionadas não aleatoriamente, mas pedindo-se 
ao entrevistador que ele encontre uma cota: a cota poderia ser 20 mu- 
lheres e 20 homens, porque nós sabemos que homens e mulheres es- 
tão igualmente distribuídos na população. 

Dos 2000 entrevistados selecionados, alguns poderão não ser en- 
contrados. Esta falta de resposta apresenta uma segunda distorção 
na amostragem. No caso de uma amostra aleatória, saberemos quan- 
tos não foram atingidos; mas no caso da cota de amostragem, não sa- 
beremos, o que torna esse tipo uma amostra não aleatória e, para 
muitos pesquisadores, um procedimento duvidoso. Uma amostra- 
gem representativa conseguirá a melhor descrição possível de uma 
população, apesar de se pesquisar apenas parte dela. Contudo, ela 
depende da possibilidade de um referencial de amostragem, de 
uma lista ou uma combinação de listas dos membros de uma popula- 
ção, ou do conhecimento da distribuição de características essenciais 
na população. Sem listas ou distribuições conhecidas, o procedi- 
mento não pode ser executado. 

Vamos discutir alguns casos onde o pressuposto de uniformida- 
de de uma população é problemático. Algumas discussões sobre re- 
presentatividade defenderam três dimensões: indivíduos, ações e si- 
tuações (ver, por exemplo, JahodaeíaZ., 1951). Indivíduos agem em 
situações, e, para generalizar os resultados de uma pesquisa com in- 
divíduos agindo em situações, todas estas três dimensões devem ser 
controladas. Uma amostragem, contudo, que se concentra nos indi- 



— 42 — 




2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



víduos, conseguirá dar conta com segurança apenas deles. Tentati- 
vas rotineiras de amostragem não se preocupam nem com as ações, 
nem com as situações. Poucas ações humanas (trabalhar, comprar, 
votar, jogar, pensar, decidir) foram objeto de intenso estudo psico- 
lógico que levasse a generalizações sobre a ação humana, sem se fun- 
damentar em amostragens. Do mesmo modo, não foram feitas ten- 
tativas para construir amostras a partir das situações onde as pessoas 
agem. Por que não? É que nem as ações, nem as situações, parecem 
ter uma população que possa ser definida. Teríamos de estudar po- 
pulações desconhecidas. Votar, trabalhar e comprar são atividades im- 
portantes; contudo, não é evidente até que ponto sua estrutura e 
função representam toda a atividade humana. A maioria dos cientis- 
tas sociais considera os resultados que se mostram consistentes em 
algumas situações diferentes, como réplicas, e por isso, seguros. Ao 
fazer isso, eles garantem uma generalização para os atores, mas vio- 
lentam uma indução que possa se aplicar a ações e situações; a amos- 
tragem não se aplica nem para ações, nem para situações (Dawes, 
1977). A ciência social parece dormir tranqüilamente com esta práti- 
ca contraditória. 

Vejamos casos de populações que não podem ser conhecidas. 
Um prêmio de muitos milhares de libras esterlinas foi recentemente 
oferecido, em uma conferência pública, para quem fosse capaz de 
apresentar um referencial de amostragem para conversações e inte- 
rações humanas. O conferencista estava seguro que ninguém seria 
capaz de responder ao desafio. Observe o conteúdo da fala, a conca- 
tenação das palavras, em um pequeno número de palavras, de acor- 
do com uma gramática. Em qualquer momento, o número de frases 
possíveis é infinito, porque o espaço de combinação das palavras é 
um recurso infinito. Falas, conversações e interações humanas são 
sistemas abertos, cujos elementos são as palavras e os movimentos, 
em um conjunto infinito de seqüências possíveis. Para sistemas aber- 
tos, a população é, em princípio, impossível de ser conhecida. Seus 
elementos podem ser no máximo tipificados, mas não listados. 

A lógica da amostragem representativa é útil para muita pesqui- 
sa social, mas ela não se presta para todas as situações de pesquisa. 
Há o perigo de nós estendermos indevidamente os procedimentos 
da amostragem representativa a estudos em que ela é inadequada. 
Criticamos certas formas de coleta de dados como desvios da “popu- 
lação padrão”. Contudo, mesmo no reino da probabilidade, a “lei 
dos pequenos números” impera. Os seres humanos tendem (com 



— 43 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



exceção dos estatísticos, é claro) a superestimar a representatividade 
das observações cotidianas (Tversky 8c Kahnemann, 1974; Gigeren- 
zer et al., 1989: 219s). A lição é clara: prestemos mais atenção à 
amostragem. Nossos esforços, contudo, podem estar mal orienta- 
dos: a busca por representatividade pode canalizar escassos recursos 
no que diz respeito a estratégias de seleção que são inadequadas 
para o problema em questão. 

A noção de corpus 

Iremos discutir agora o que o lingüista oferece na construção de 
seu corpus. A linguagem é um sistema aberto. Não podemos esperar 
uma lista de todas as frases das quais se poderá selecionar aleatoria- 
mente. A comunidade dos lingüistas rejeitou recentemente a moção 
de que os corpora da linguagem sejam representativos do uso da lin- 
guagem (Johansson, 1995: 246). 

A palavra corpus (latim; plural corpora) significa simplesmente 
corpo. Nas ciências históricas, ela se refere a uma coleção de textos. 
Pode ser definida como “um corpo de uma coleção completa de es- 
critos ou coisas parecidas; o conjunto completo de literatura sobre 
algum assunto... vários trabalhos da mesma natureza, coletados e or- 
ganizados” ( Oxford English Dictionary, 1989); ou como “uma coleção 
de textos, especialmente se for completa e independente” (McArthur, 
1992). Exemplos, colecionados principalmente durante o século de- 
zenove, são o Corpus Doctrinae, um conjunto de tratados teológicos 
da história eclesiástica alemã; o Corpus Inscriptorum Semiticorum, uma 
coleção completa dos antigos textos judaicos na Academia Francesa; 
ou o Corpus Inscriptorum Graecorum, dos textos gregos antigos na 
Academia de Berlim. Estas coleções procuram ser completas e tema- 
ticamente unificadas, além de servir para pesquisa. 

Outra definição de corpus é “uma coleção finita de materiais, de- 
terminada de antemão pelo analista, com (inevitável) arbitrarieda- 
de, e com a qual ele irá trabalhar” (Barthes, 1967: 96). Barthes, ao 
analisar textos, imagens, música e outros materiais como significan- 
tes da vida social, estende a noção de corpus de um texto para qual- 
quer outro material. Em seu opúsculo sobre os princípios da semió- 
tica ele reduz as considerações sobre seleção a poucas páginas. Sele- 
ção parece menos importante que análise, mas não pode ser separa- 
da dela. A arbitrariedade é menos uma questão de conveniência e, 
em princípio, mais inevitável. Os materiais devem ser homogêneos, 



— 44 — 



2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



por isso não se deve misturar texto e imagens em um mesmo corpus. 
Uma boa análise permanece dentro do corpus e procura dar conta de 
toda a diferença que está contida nele. Em resumo, embora signifi- 
cados mais antigos de “corpo de um texto” impliquem a coleção 
completa de textos, de acordo com algum tema comum, mais recen- 
temente o sentido acentua a natureza proposital da seleção, e não 
apenas de textos, mas também de qualquer material com funções 
simbólicas. Esta seleção é, até certo ponto, inevitavelmente arbitrá- 
ria: a análise compreensiva tem prioridade sobre o exame minucio- 
so da seleção. O corpus lingüístico, contudo, oferece uma discussão 
mais sistemática. 

O que são corpora de linguagem? 

Corpora, no sentido lingüístico, são coleções de dados de lingua- 
gem que servem para vários tipos de pesquisa. O termo está ligado a 
desenvolvimentos de estudos de linguagem em computador (Jo- 
hansson, 1995; Biber etal., 1998). Um corpus lingüístico é “um mate- 
rial escrito ou falado sobre o qual se fundamenta uma análise lin- 
güística” ( Oxford English Dictionary, 1989), ou “textos, falas e outros ti- 
pos considerados mais ou menos representativos de uma linguagem 
e geralmente armazenados como um banco de dados eletrônico” 
(McArthur, 1992). Os corpora são estruturados a partir de vários pa- 
râmetros, tais como o canal (falado ou escrito, escrito para ser fala- 
do, etc.), temática (arte, família, religião, educação, etc.), função 
(persuadir, expressar, informar, etc.). Combinações destas subcate- 
gorias podem formar uma tipologia hierárquica de registros, como 
veremos. Os primeiros corpora de linguagem eram geralmente do 
üpo escrito e colecionados manualmente. 

Uma vez construídos, os corpora podem ser usados como banco 
de dados para pesquisa lingüística. Quando os primeiros corpora fo- 
ram construídos, o tratamento dos dados tinha também de ser feito 
manualmente. Assim, por exemplo, um pesquisador que estivesse 
interessado em trabalhar com verbos de percepção em inglês (ver- 
bos como ver, ouvir, etc.), teria de pesquisar o corpus manualmente, 
a fim de encontrar estes verbos. Mais tarde estes corpora foram com- 
putadorizados: o primeiro foi o Brown Corpus, construído na década 
de 1960 na Brown University, em Providence, Rhode Island. Hoje 
em dia, todos os corpora são computadorizados e permitem pesqui- 
sas automatizadas. 



— 45 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Os primeiros corpora computadorizados surgiram em uma era im- 
portante na história da lingüística, isto é, no início da era chomskya- 
na. O livro de Chomsky Syntactic Structures (1957) é a publicação semi- 
nal deste período. Chomsky defendia que todos os seres humanos 
possuem uma capacidade lingüística inata, que ele chamou de gramá- 
tica universal. Desde os inícios da lingüística chomskyana, houve uma 
ênfase sobre a maneira como os lingüistas podem proceder na cons- 
trução de representações abstratas de cada um, e de todo conheci- 
mento de linguagem daquele que fala. Devido ao fato de a teoria ser 
toda sobre representações abstratas, este campo da lingüística é carac- 
terizado por um distanciamento do empiricismo, e por uma confian- 
ça no conhecimento interno da linguagem que nós possuímos como 
falantes inatos. Chomsky fez uma distinção entre o que ele chamou de 
competência ( competence ), que é o conhecimento inato que os falantes 
têm da linguagem, e desempenho (performance ), a maneira como eles 
fazem uso de seu conhecimento inato. Mais recentemente ele intro- 
duziu o termo I-language (linguagem internalizada) e E-language 
(linguagem externalizada). A teoria de Chomsky é uma teoria da 
competência (uma teoria da I-language), e não do desempenho (teo- 
ria da E-language). No modelo chomskyano, toda linguagem particu- 
lar constitui um epifenômeno, com o termo linguagem ficando agora 
exclusivamente para significar a I-language. 

Os primeiros seguidores de Chomsky atacavam muito a lingüís- 
tica de orientação empírica. Nelson Francis, o compilador do Brown 
Corpus, foi questionado em uma palestra por Robert Lees, um se- 
guidor de Chomsky, no que ele estava trabalhando. Francis res- 
pondeu que estava compilando um corpus do inglês escrito e falado 
dos Estados Unidos. Isto foi visto com animosidade por Lees, que 
afirmou ser uma completa e total perda de tempo. O ponto de vista 
de Lees, e o de muitos chomskyanos daquele tempo, era o de que 
seria apenas suficiente refletir um pouco, para se conseguir exem- 
plos pessoais de fenômenos lingüísticos particulares em inglês. Os 
lingüistas chomskyanos sempre insistiram que os únicos dados in- 
teressantes para o estudo da linguagem eram dados introspectivos, 
isto é, dados que eram construídos na base do conhecimento de 
uma linguagem de um falante nativo. A aversão a dados empíricos 
persistiu até hoje. O próprio Chomsky, quando foi recentemente 
perguntado por um de nós sobre o que pensava do corpus lingüístico 
moderno, respondeu simplesmente: “não existe”. A coleção de da- 
dos de um corpus é visto por Chomsky como sendo igual a uma cole- 
ção de borboletas. 



— 46 — 



2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



Os lingüistas que trabalham com corpus, por sua vez, afirmam que 
os corpora podem ser utilmente empregados por lingüistas que não 
são falantes nativos, e podem conter exemplos que seriam difíceis de 
imaginar, porque eles são raros. Eles pensam que a lingüística deva 
estar interessada em dados concretos da linguagem, isto é, dados de 
desempenho, e não em dados prontos, dados de competência artifici- 
al. É claro que a questão sobre que tipo de dados devem ser usados 
não era o único ponto de divergência. Os lingüistas que lidam com 
corpus sãp, em sua maioria, indutivistas, enquanto que os chomskya- 
nos são dedutivistas. A controvérsia é, pois, também metodológica. 

O que é uma lingüística corpus, e como os corpora podem ser usados na 
pesquisa lingüística ? 

O campo da lingüística é vasto e inclui subdisciplinas tais como a 
psicolingüística, a neurolingüística, lingüística forense, sociolingüís- 
tica, lingüística formal ou teórica, semântica e assim por diante. Há 
pessoas que falam agora também em corpus lingüística. Poder-se-ia 
perguntar se a corpus lingüística deve ser vista do mesmo modo 
como os outros ramos da lingüística. Falando estritamente, a corpus 
lingüística não é de fato um ramo da lingüística como tal: ela é uma 
metodologia lingüística, que pode ser usada em todos os ramos da 
lingüística. Assim, por exemplo, alguém que lida com sintática, pode 
recorrer a um corpus para estudar estruturas gramaticais particula- 
res, enquanto que um sociolingüista pode querer estudar conversa- 
ções telefônicas num corpus, para ver se as pessoas falam ao telefone 
de maneira diferente de quando se comunicam face a face. Na ver- 
dade, com isto em mente, alguns corpora contêm não apenas uma, 
mas várias categorias de conversações telefônicas: por exemplo, 
conversações entre pessoas do mesmo status social, e entre pessoas 
de status social diferente. Outro emprego que os sociolingüistas fize- 
ram de corpora, é o estudo das diferenças entre as maneiras como os 
homens e as mulheres falam (veja, por exemplo, Tannen, 1992a; 
1992b; Coates, 1996). Lingüistas, ou sociolingüistas que estão inte- 
ressados no fenômeno dos “avisos manuscritos”, uma das categorias 
encontradas no levantamento inicial do corpus de emprego do inglês 
na University College London, podem ter achado divertido o se- 
guinte aviso encontrado na porta de um banheiro público, na esta- 
ção de Euston, em Londres: “Os banheiros estão estragados, por fa- 
vor, use a plataforma 6.” 



— 47 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Como lidam os pesquisadores no emprego de um corpus ? E o que 
eles investigam? Obviamente, isto depende de seus objedvos de pes- 
quisa. De qualquer modo, é necessário um programa de computador 
que possa fazer buscas inteligentes. O tipo mais simples de busca é 
para se encontrar um item léxico específico, digamos, a palavra “o”. 
As coisas se tornam mais complexas se a busca é feita, por exemplo, 1 
para se encontrar todos os substantivos num corpus. Para que isto pos- 
sa ser feito, o corpus necessita ser analisado gramaticalmente. Antiga- 
mente, essa análise gramatical era feita manualmente; agora ela é fei- 
ta automaticamente. O primeiro passo da análise é a etiquetação ( tag - 
ging). Nesse processo, é dada a cada e a toda palavra uma etiqueta 
como, por exemplo, substantivo, verbo, adjetivo, etc. Isto pode ser fei- 
to automaticamente por um programa de computador. Os resultados 
são corretos em cerca de 90 por cento dos casos, e necessitam ser cor- 
rigidos manualmente. O segundo passo de análise gramatical implica 
analisar o corpus a partir de construções gramaticais. Por exemplo, em 
uma frase como esta: “O cão mordeu o carteiro”, o programa pode 
analisar “o cão” como o sujeito da frase, e “o carteiro” como o objeto 
direto. Novamente, a análise automática deve ser corrigida manual- 
mente. Uma vez completa a análise gramatical, podem ser formula- 
das questões. Para isso, é necessário um programa de busca. Este 
pode ser instruído para encontrar todos os objetos diretos que se- 
guem o verbo “ver”. Pesquisadores da University College London de- 
senvolveram um etiquetador, um analisador gramatical e também um 
programa de busca. O programa de busca é chamado de “ICE Corpus 
Utility Program”, ou abreviadamente “ICECUP”. 

Um exemplo de corpus: o Corpus de Inglês Internacional ( International 
Corpus of English - ICE) 

Como exemplo de um corpus, a Figura 2.1 mostra as categorias 
textuais no ICE (International Corpus of English), desenvolvidas no 
Departamento de inglês da University College London. ICE é inter- 
nacional no sentido de que corpora identicamente construídos foram 
montados, ou estão em processo de montagem, em mais ou menos 
20 países de fala inglesa, entre eles Estados Unidos, Canadá, Austrá- 
lia, Nova Zelândia, Quênia e Nigéria. O corpus foi planejado para 
comportar tanto material falado como escrito, e tanto as categorias 
faladas como as escritas são posteriormente subdivididas. O corpus 
ICE-GB, do inglês britânico, está agora completo, e é acessível em 
CD-ROM; os outros corpora nacionais estão ainda em construção 
(ver www.ucl.ac.uk/english-usage). 



— 48 — 




■ Não impressos (50) - 



Impressos (150) 




Diálogo (180) 



Textos 

falados (300) 



Monólogos (1 20) 



r“ Humanid 

Informacionais: aprendidos (40)— | Ciências ; 

p Ciências i 



-Trabalhos regulares de alunos (10) 
“Trabalhos de exames de alunos (10) 
- Cartas sociais (15) 

■ Cartas comerciais (1 5) 

* Humanidades (1 0) 

■ Ciências sociais (10) 

■ Ciências naturais (10) 

•Tecnologia (10) 



p Humanidades (10) 

Informacionais: populares (40) — { Ciências soaa ‘ s (10) 
v ' h Ciências naturais (10) 
Tecnologia (10) 



informacionais: reportagem (20) — Reportagens noticiosas da imprensa (20) 



Instrucionais (20) 
Persuasivos (10)- 
Criativos (20) 



■ Privado (100) 



■ Público (80)— 



• Improvisos (70) 



- Administrativos, normativos (10) 

- Habilidades, lazeres (10) 

- Editoriais de imprensa (10) 

- Novelas, ficções (20) 

■ Conversações diretas (90) 

* Conversações à distância (10) 



Lições de aula (20) 
Discussões transmitidas (20) 
Entrevistas transmitidas (10) 
Debates parlamentores llO) 
Interrogatórios judiciais ] 1 0) 
Transações comerciais (10) 



‘ Comentários espontâneos (20) 
Falas de improviso (30) 
Demonstrações (10) 
Representações judiciais (10) 

Notícias transmitidas (20) 



c , , r Notícias transmitidas (20) 

Falas preparadas (50)— L Falas transmitidas (20) 

L Falas (não transmitidas) (1 0) 



Figura 2.1 -Um esboço do mapa ICE. 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Os diferentes corpora do projeto ICE estão sendo construídos a 
fim de permitir aos pesquisadores estudar aspectos particulares da 
língua inglesa em diferentes variedades de inglês. A construção 
idêntica de diferentes corpora nacionais está sendo implementada a 
fim de permitir comparações estatísticas significativas entre as varie- 
dades de inglês. Para dar um exemplo, alguém que estivesse interes- 
sado em comparar o uso dos verbos de percepção no inglês australi- 
ano, com seu uso no inglês britânico, teria possibilidade de usar os 
ICE-GB e o ICE-Austrália Corpora para sua investigação. 

Como são construídos os corpora da linguagem? 

Alguém talvez pudesse pensar que os lingüistas que trabalham 
com corpus estivessem interessados desde o início com a questão de 
como construir corpora, e com temas relacionados, tais como repre- 
sentatividade estatística. Surpreendentemente, isto não é assim. Tex- 
tos básicos, relativamente bons, que tratam desse problema, foram 
publicados apenas recentemente, a partir do início da década de 
1990 (Atkinstf/a/., 1992; Biber, 1993). A fundamentação lógica para 
a construção de corpus se desenvolveu autonomamente, para se po- 
der solucionar problemas práticos. A amostragem estatística teve 
pouca influência no desenvolvimento da linguística corpus-, na verda- 
de, os méritos de um racional para corpora de linguagens são discuti- 
dos. Uma moção, no sentido de que “os corpora da linguagem deve- 
riam ser baseados na representação estatística”, foi derrotada em 
uma reunião de lingüistas em Oxford, há alguns anos. Propostas pa- 
drão com respeito à amostragem estatística são dificilmente aplicá- 
veis na construção de um corpus de linguagem (Atkins etal., 1991: 4). 

Questões discutidas de construção de corpus são parecidas com as 
que se seguem. Que categorias de fala e de escrita devem ser incluí- 
das? Qual deve ser o tamanho das amostras para cada categoria de 
escrita ou fala, em termos de número de palavras? Qual deve ser o 
tamanho do corpus em termos do número de palavras? É comumen- 
te aceito que o tamanho do corpus é uma questão menos relevante, 
enquanto que a representatividade merece mais atenção. 

Os corpus lingüistas aceitam duas dimensões importantes de re- 
presentatividade no delineamento de um corpus (Biber, 1993: 243). 
Primeiro, um corpus deve incluir “o espectro de distribuições lingüísti- 
cas em uma linguagem” (1993: 243) - por exemplo, um espectro 
abrangente de construções gramaticais. O que exatamente constitui 

— 50 — 



1 



2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



“o espectro de distribuições lingüísticas” é algo difícil de determinar a 
priori, mas pode-se dizer que essa afirmação se refere à soma total do 
conhecimento empiricamente estabelecido e diacronicamente acu- 
mulado que os gramáticos que trabalham têm de uma linguagem par- 
ticular - em outras palavras, o material a respeito do qual a maioria 
dos lingüistas concordaria que devesse ser coberto por uma ampla 
gramática de inglês, como a de Quirk et al. (1985). Esta variação inter- 
na da linguagem é chamada de variação tipo, ou dialética. 

Em segundo lugar, um corpus deve incluir um suficiente espectro 
de texto dentro da população alvo, onde esta é compreendida como 
significando uma coleção de materiais textuais demarcada, isto é, ri- 
gidamente definida, a partir de diferentes contextos. Estas variações 
são também chamadas de registros, gêneros ou funções, e diferem 
de acordo com variáveis situacionais e temáticas. Isso exige uma re- 
flexão cuidadosa. A escolha da população alvo depende dos objeti- 
vos da pesquisa de alguém: um lingüista que está interessado no de- 
senvolvimento da linguagem construirá um corpus de um modo dife- 
rente de alguém que quer estudar, digamos, a variação dialética (ver 
Aston & Burnard, 1998: 23). A classificação de registros ou funções 
de fala que possam conter variação interna é uma questão de per- 
cepção lingüística e de intuição: a questão se apresenta a partir de 
como alguém decide se a população desejada é ou não suficiente- 
mente diversa. Atkins etal. (1992: 7) assinala que o espectro de tipos 
de texto que estão à escolha é aberto, assim como culturalmente es- 
pecífico. Por exemplo, poder-se-ia imaginar que alguém, ao cons- 
truir um corpus representativo de uma sociedade onde a religião de- 
sempenha um papel crucial, queira incluir sermões, enquanto que 
em outros corpora esta categoria possa ser de interesse bem menor. 
Ao final, as decisões sobre que tipos de texto devem ser incluídos e 
quais devem ser excluídos de um corpus são arbitrárias. 

Corpora amplos, de propósitos gerais, diferem na taxonomia dos 
textos que eles incluem, e esta variedade reflete seus objetivos dife- 
rentes. O Brown Corpus definiu como população alvo para material 
escrito todos os textos impressos e publicados nos Estados Unidos 
em 1961, incluindo 15 gêneros de texto, com subgêneros. Um exem- 
plo de gênero de texto seria “ciência aprendida” e um subgênero 
dele poderia ser “ciências naturais”. Outro exemplo de gênero de 
texto podería ser “linguagemjornalística”, com “comentários espor- 
tivos” como um possível subgênero. As amostras foram escolhidas de 
uma lista de todos os itens da Biblioteca da University Brown e do 



— 51 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Providence Athenaeum, publicados em 1961. O levantamento do 
English Usage Corpus na University College London, que data apro- 
ximadamente do mesmo período que o Brown Corpus, tem como sua 
população alvo o inglês falado e escrito de adultos com instrução 
(ver Figura 2.1). 

Ainda mais no que diz respeito a corpora que têm como objetivo 
representar uma linguagem particular como um todo, deve-se dei- 
xar claro que, para a pesquisa lingüística, um corpus construído pro- 
porcionalmente, isto é, seguindo um racional de amostragem alea- 
tória fundamentada em todo o emprego da linguagem, não seria 
adequado. Tal corpus consistiria, predominantemente, da lingua- 
gem falada, porque uma estimativa de 90 por cento de toda linguagem 
produzida é conversacional (Biber, 1993: 247). Ao contrário, os lin- 
güistas exigem um espectro de amostras de uso da linguagem que 
são suficientemente diversas, e contêm o espectro completo de es- 
truturas gramaticais. Desse modo, além das amostras da conversa- 
ção, deveria haver amostras do material que não é produzido em 
grandes quantidades, como, por exemplo, a linguagem científica al- 
tamente técnica (ver Figura 2.1). A construção de um corpus lingüís- 
tico é altamente superseletivo de certas funções da fala e gêneros de 
texto, devido a sua significância em manifestar um tipo de variedade 
específico. Os lingüistas levam em consideração o fato raro, enquan- 
to que a amostragem representativa sugere que ele seja ignorado. 

O paradoxo do corpus teórico 

No delineamento do corpus, os gêneros e funções do texto e da 
fala são organizados a partir do que parecem ser fundamentos intui- 
tivos. Josef Schmied, um corpus lingüista alemão, chamou a isto de 
“paradoxo do corpus teórico”: 

De um lado, um corpus é mais representativo do uso da lingua- 
gem em uma comunidade, se suas subdivisões refletem todas as va- 
riáveis que determinam a variação da linguagem nessa comunida- 
de; de outro lado, nós necessitamos de resultados de um corpus re- 
presentativo, a fim de determinar estas variáveis empiricamente 
( 1996 : 192 ). 

A fim de remediar tal problema, o delineamento do corpus é visto 
por Biber como um processo cíclico (ver Figura 2.2), pois não se 
pode determinar a priori com que se parecerá um corpus representa- 
tivo. Com outras palavras, a construção de corpora sucessivos com um 



— 52 — 



2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



enfoque particular deve levar a algo parecido a um padrão indus- 
trial para se ter um “corpus equilibrado”. Para Atkins et ai (1992), um 
corpus equilibrado é elegantemente preparado a partir de uma re- 
consulta múltipla ao usuário, de tal modo que origine um modelo 
manejável do material lingüístico em escala reduzida. Equilibrar sig- 
nifica que sucessivas correções são implementadas, a fim de com- 
pensar pelos vieses que vão sendo identificados. Um processo cíclico 
virá trazer o reconhecimento devido a duas regras da construção do 
corpus. Biber observa que a variação externa precede a percepção da 
variação interna e deste modo a construção do corpus deve começar 
de diferentes contextos (Regra 1). De acordo com Atkins et ai, o ob- 
jetivo é maximizar a variedade dialética interna, através da extensão 
das funções, registros ou gêneros que estão sendo considerados (Re- 
gra 2). Um corpus está equilibrado quando esforços adicionais acres- 
centam pouca variância dialética. O problema é determinar estas va- 
riações externas que acrescentam algo significativo ao tipo de varie- 
dade interna. 



Investigação 

empírica piloto e 
análise teórica 



■► Delineamento ►Compilação de ►Investigação 

do corpus porção do corpus empírica 

t i 



Figura 2.2 - Delineamento do corpus como um processo cíclico (Biber, 1993: 256). 

Um padrão posterior de construção de corpus pode incluir docu- 
mentação dos melhoramentos cíclicos, um trabalho que leve a uma 
taxonomia padrão de textos e de situações de fala, e convenções 
para assinalar os textos-símbolo selecionados e exemplos de fala 
com códigos padrão. A transparência não mudará a arbitrariedade 
inevitável na seleção, mas a trará à luz do dia, de tal modo que possa- 
mos evitar acusações falsas e sugerir melhoramentos posteriores 
(Atkins et al . , 1992). 

Corpora nas ciências sociais 

A questão que surge agora é o que podemos aprender dos lin- 
güistas ao pensar sobre como selecionar dados para a pesquisa quali- 
tativa. Corpus não é um termo técnico que seja amplamente empre- 
gado na metodologia das ciências sociais. A medida que a pesquisa 
qualitativa vai ganhando magnitude crítica, a seleção das entrevis- 



— 53 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



tas, dos textos e de outros materiais exige um tratamento mais siste- 
mático comparável ao da pesquisa por levantamento. 

Devemos distinguir corpora para propósitos gerais, de corpora tó- 
picos. Um corpus para propósitos gerais é delineado, tendo em men- 
te um espectro amplo de questões de pesquisa, e serve como um re- 
curso no seu sentido mais amplo. A maior parte dos corpora linguísti- 
cos de larga escala é projeto deste tipo. Ajulgar pelo esforço empre- 
gado, estes corpora são recursos comparáveis ao censo feito de 10 em 
10 anos, ou ao levantamento anual da força de trabalho realizada em 
muitos países. 

Coleções de arquivos se constituem em corpora de pesquisa para 
propósitos gerais. Podemos pensar nas muitas bibliotecas nacionais 
que possuem coleções completas de jornais e revistas publicados 
neste país, em papel e/ou microfichas. A British Newspaper Library 
de Londres armazena todos os jornais diários e semanais, impressos 
nas Ilhas Britânicas, desde o início do século dezenove. Nos últimos 
anos, tiveram início serviços que fornecem diariamente coleções 
completas do que é publicado em jornais, como a FT-Profile ou Reu- 
ters, ou com CD-ROM regular atualizado, diretamente das publica- 
ções dos jornais. Muitas destas fontes são praticamente completas e 
estão registradas, prestando-se assim a uma amostragem represen- 
tativa, até mesmo estritamente aleatória. A análise de conteúdo clás- 
sica faz bom uso desses desenvolvimentos. 

Um corpus tópico é planejado para um fim estritamente definido 
de pesquisa; ele pode tornar-se um recurso geral de investigação 
para análise secundária. Muita pesquisa social com base em textos 
ou entrevistas é deste tipo. Um exemplo de corpus tópico é o Ulm 
Texbank (Mergenthaler 8c Kaechele, 1988). A coleção inclui trans- 
crições literais de mais de 8000 sessões de psicoterapia, a partir de 
mais de 1000 pacientes e ao redor de 70 terapeutas da Alemanha, 
Áustria, Suíça e dos Estados Unidos. Ela foi planejada como um re- 
curso para pesquisa psicoterápica, para estudar a dinâmica da inte- 
ração e da experiência. Embora a maior parte do material seja de 
orientação psicanalítica, nem todos os relatos o são. Psicoterapia é 
uma forma particular de interação humana que se dá em todo o 
mundo, e neste corpus a representatividade não é um princípio de 
seleção de dados: tal racional teria de considerar centros mundiais 
urbanos de atividades psicoterápicas, tais como Nova Iorque, Zuri- 
que, Viena e Buenos Aires, como locais de amostragem. Ao contrá- 
rio, os critérios que guiaram a seleção são a orientação terapêutica 



— 54 — 



2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



(registro 1), a diagnose do paciente (registro 2), o sucesso do trata- 
mento (registro 3), e um mínimo de duração de 300 a 500 horas (re- 
gistro 4). A seleção tem como objetivo equilibrar diferentes registros e 
possibilitar uma pesquisa comparativa. Ela não pretende ser repre- 
sentativa, nem com respeito à distribuição do sucesso ou fracasso na 
vida concreta, nem com respeito às 600 diferentes escolas de terapia, 
mas pretende ter suficientes exemplos entre os 34 tipos de texto que 
se relacionem com interações terapêuticas. O foco de análise é a ativi- 
dade verbal, as expressões das várias formas de emotividade durante 
o curso da terapia. O objetivo é relacionar uma diagnose particular 
inicial e subseqüentes padrões de dinâmica verbal com os resultados 
da terapia. O corpus é projetado no sentido de maximizar a variedade 
interna de dinâmica verbal durante as sessões, confrontada com os re- 
gistros externos da orientação do terapeuta, a diagnose, o resultado 
da terapia e a duração do tratamento (Mergenthaler, 1996). 

Como construir um corpus nas ciências sociais 

Os lingüistas e os pesquisadores qualitativos enfrentam o “para- 
doxo do corpus teórico”. Eles começam a estudar as variedades nos 
temas, opiniões, atitudes, estereótipos, cosmovisões, comportamen- 
tos e práticas da vida social. Contudo, como essas variedades são ain- 
da desconhecidas, e por isso também não se sabe sua distribuição, os 
pesquisadores não podem conseguir uma amostragem de acordo 
com um racional de representatividade. Mas os paradoxos muitas 
vezes se resolvem quando nós recorremos ao tempo. Os lingüistas 
sugerem um procedimento por etapas: a) selecionar preliminar- 
mente; b) analisar essa variedade; c) ampliar o corpus de dados até 
que não se descubra mais variedade. 

Em outras palavras, eles concebem o corpus como um sistema que 
cresce. Esta é a primeira lição para a seleção qualitativa: 

Regra 1 - Proceder por etapas: selecionar; analisar; selecionar de 
novo. 

Relevância, homogeneidade, sincronicidade 

As sugestões de Barthes (1967: 95s) para o delineamento do cor- 
pus podem ser úteis para a seleção qualitativa: relevância, homoge- 
neidade, sincronicidade. Primeiramente, os assuntos devem ser teo- 
ricamente relevantes, e devem ser coletados a partir de um ponto de 
vista apenas. Os materiais em um corpus têm apenas um foco temáti- 



— 55 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



co, apenas um tema específico. Por exemplo, um estudo de notícias 
sobre ciência e tecnologia exige um corpus de itens noticiosos que se 
refira à ciência e à tecnologia, e isso exclui todos os outros itens noti- 
ciosos. É um problema diferente de determinar a proporção de notí- 
cias sobre ciência entre todas as notícias: isto exigiria uma amostra 
representativa de todas as notícias. Embora este critério pareça trivi- 
al, ele serve como um alerta para ser levado em consideração e que 
pode servir para a seleção. 

Em segundo lugar, os materiais de um corpus devem ser tão ho- 
mogêneos quanto possível. Isto se refere à substância material dos 
dados. Materiais textuais não devem ser misturados com imagens, 
nem devem os meios de comunicação ser confusos; transcrições de 
entrevistas individuais não devem ser juntadas a transcrições de en- 
trevistas com grupos focais. Imagens, textos e entrevistas individuais 
e com grupos focais podem ter a ver com partes do mesmo projeto 
de pesquisa; mas devem, contudo, ser separados em corpora diferen- 
tes para comparação. 

Em terceiro lugar, um corpus é uma interseção da história. A 
maioria dos materiais tem um ciclo natural de estabilidade e mudan- 
ça. Os materiais a serem estudados devem ser escolhidos dentro de 
um ciclo natural: eles devem ser sincrônicos. O ciclo normal da mu- 
dança irá definir o intervalo de tempo dentro do qual um corpus de 
materiais relevantes e homogêneos deve ser selecionado. Por exem- 
plo, padrões familiares têm probabilidade de permanecerem está- 
veis por uma ou duas gerações; modas no vestir mudam a cada ano; 
políticas editoriais de jornais e televisão podem ter um ciclo de pou- 
cos anos; opiniões têm um ciclo curto, de dias ou semanas. Para a 
construção de um corpus, muitos materiais dentro de um ciclo ape- 
nas, são preferíveis a um tipo de material que passou por vários ci- 
clos. Mudanças através dos ciclos são estudadas comparando dois 
corpora, não dentro de um único ciclo. 

Saturação 

Um procedimento para se superar o paradoxo do corpus teórico 
é mostrado na Figura 2.3. O espaço social é desdobrado em duas di- 
mensões: estratos ou funções, e representações. A dimensão hori- 
zontal abrange os estratos sociais, funções e categorias que são co- 
nhecidos e são quase que parte do senso comum: sexo, idade, ativi- 
dade ocupacional, urbano/rural, nível de renda, religião e assim por 
diante. Estas são as variáveis segundo as quais os pesquisadores so- 



— 56 — 



2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



dais geralmente segmentam a população; elas são externas ao fenô- 
meno concreto em questão. O principal interesse dos pesquisadores 
qualitativos é na tipificação da variedade de representações das pes- 
soas no seu mundo vivencial. As maneiras como as pessoas se relacio- 
nam com os objetos no seu mundo vivencial, sua relação sujeito-obje- 
to, é observada através de conceitos tais como opiniões, atitudes, sen- 
timentos, explicações, estereótipos, crenças, identidades, ideologias, 
discurso, cosmovisões, hábitos e práticas. Esta é a segunda dimensão, 
ou dimensão vertical de nosso esquema. Esta variedade é desconheci- 
da e merece ser investigada. As representações são relações sujei- 
to-objeto particulares, ligadas a um meio social. O pesquisador quali- 
tativo quer entender diferentes ambientes sociais no espaço social, ti- 
pificando estratos sociais e funções, ou combinações deles, juntamen- 
te com representações específicas. Os ambientes sociais ocupam um 
espaço social e podem ter um projeto de interesse e de investimento 
comuns que justifique suas representações específicas. A variedade 
externa e interna, os estratos e as representações podem se correlacio- 
nar, mas não é necessário. Existem ambientes sociais velhos e novos 
que estão emergindo em uma sociedade dinâmica. Isto exige uma 
imaginação sociológica e um conhecimento histórico para se reco- 
nhecer novos ambientes sociais, e para identificar os ambientes tra- 
dicionais que produzem diferenças com respeito à representação de 
um novo problema na sociedade (Bauer Sc Gaskell, 1999). 



Estratos sociais, funções e categorias (conhecidos) 



Representações 

(desconhecidas) 



Variedades de: 

crenças, atitudes, 

opiniões, 

estereótipos, 

ideologias, 

cosmovisões, 

hábitos, práticas 




Figura 2.3 - As duas dimensões do espaço social: estratos e representações. 



— 57 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Para selecionar pessoas a serem entrevistadas ou documentos 
para uma pesquisa qualitativa, nós escolhemos indivíduos e fontes 
de acordo com critérios externos: estratos sociais, funções e catego- 
rias. Por exemplo, podemos convidar entrevistados para um estudo 
com grupo focal sobre temas referentes à moralidade da clonagem 
humana por sexo, idade e educação. O foco de investigação, contu- 
do, não é a diferença entre sexos ou idade dos grupos, mas a varie- 
dade de temas éticos e sua estrutura argumentativa. Em outras pala- 
vras, a pesquisa qualitativa tende a maximizar a variedade do fenô- 
meno desconhecido, neste caso os temas éticos referentes à clona- 
gem. Isto é diferente da pesquisa de levantamento por amostragem: 
ali as opiniões e atitudes são esquematizadas a priori nas perguntas e 
comparadas com estratos conhecidos de pessoas. Por exemplo, a 
pesquisa irá mostrar as diferenças nas opiniões conforme os níveis 
de educação, sexo ou idade. Seguindo essas considerações, formula- 
mos mais três regras: 

Regra 2 - Na pesquisa qualitativa, a variedade de estratos e função 
precede a variedade de representações. 

Regra 3 - A caracterização da variedade de representações tem prio- 
ridade sobre sua ancoragem nas categorias existentes de pessoas. 

Regra 4 - Maximizar a variedade de representações, ampliando o 
espectro de estratos/funções em consideração. 



Uma implicação destas regras pode ser que certos estratos são 
propositadamente superselecionados, de tal modo que um grupo 
particular, que apresenta visões complexas, pode receber uma aten- 
ção desproporcional na investigação. Se, por exemplo, nas discussões 
de grupos focais sobre clonagem humana, as mulheres mostram mui- 
to mais preocupação e diversidade de pontos de vistas, o pesquisador 
não hesitará explorar diferentes estratos e funções entre as mulheres 
apenas - por exemplo, com ou sem filhos, conforme sua religião, etc. 
Poder-se-á ignorar o fato de que o corpus seja composto mais por falas 
de mulheres do que de homens. Contudo, para evitar conclusões 
equivocadas, todo julgamento sobre a distribuição de opiniões deverá 
ser evitado. Apenas uma amostragem representativa de opiniões nos 
permitirá descrever conclusivamente a distribuição de opiniões. Nes- 
te sentido, a construção do corpus ajuda a tipificar representações des- 
conhecidas, enquanto que em contrapartida a amostragem represen- 
tativa descreve a distribuição de representações já conhecidas na so- 



— 58 — 



2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



ciedade. Ambos os racionais devem ser distinguidos com cuidado a 
fim de evitar confusão e conclusões falsas. 

A fim de superar o paradoxo da construção do corpus inicial, a 
pesquisa começa com os estratos e funções externas (Regra 2). Na 
pesquisa com grupos focais, poder-se-á considerar grupos de idade, 
ou estratos a partir da educação, a partir de uma intuição inicial so- 
bre o que poderia se constituir em uma diferença com respeito a de- 
terminado tema. Os pesquisadores, contudo, devem estar bem aten- 
tos em não confiar apenas em suas intuições, quando eles segmen- 
tam o espaço social. Precisam manter a mente aberta para estratos e 
distribuições funcionais posteriores, que podem não ser óbvias num 
primeiro momento. Podem começar pelo sexo, idade e educação, 
mas podem precisar levar em consideração a etnia, a religião, as di- 
visões urbano/rural a fim de identificar e maximizar a variedade nas 
representações das pessoas sobre determinado tema. Aqui a lei da 
diminuição de retornos pode ser aplicada: acrescentar mais estratos 
pode fazer apenas uma pequena diferença com respeito a represen- 
tações adicionais. Quando isso acontece, o corpus está saturado. A 
Regra 1 estipula que a seleção para pesquisa qualitativa é um proces- 
so cíclico, e um processo cíclico requer um critério para finalizar, se- 
não o projeto de pesquisa não teria fim. Saturação é o critério de fi- 
nalização: investigam-se diferentes representações, apenas até que a 
inclusão de novos estratos não acrescente mais nada de novo. Assu- 
me-se que a variedade representacional é limitada no tempo e no es- 
paço social. A identificação de mais variedade iria acrescer despro- 
porcionalmente os custos do projeto; então o pesquisador decide 
parar de investigar novos estratos. Os perigos deste critério são os 
máximos locais: pode acontecer o caso em que falar com alguém em 
um bar público não traz nenhuma faceta nova ao assunto em ques- 
tão; contudo, indo para um bairro diferente, ou saindo da cidade, 
isto pode se dar. Os pesquisadores vivem em um mundo vivencial; e 
eles devem se perguntar se a variedade que descobriram cobre seu 
espaço local ou um espaço mais amplo. 



Tamanho do corpus 

Pouco pode ser dito sobre o tamanho dos corpora para pesquisa 
qualitativa. Devemos considerar o esforço envolvido na coleta de da- 
dos e na análise, o número de representações que se quer caracteri- 
zar, e alguns requisitos mínimos e máximos, por exemplo na análise 
automática do texto, como critérios para o tamanho de um corpus. 



— 59 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A maioria das limitações provém do esforço que é exigido para 
se fazer um grande número de grupos focais, ou entrevistas em pro- 
fundidade, ou para coletar documentos. O tempo disponível para se 
fazer essas entrevistas, e para analisá-las, será a primeira restrição 
sobre o tamanho do corpus. Pesquisa qualitativa que envolve uma 
grande quantidade de material foi corretamente identificada como 
um “incômodo atrativo” (Miles, 1979). Os pesquisadores coletam fa- 
cilmente muito mais material interessante, do que aquele com que 
poderiam efetivamente lidar, dentro do tempo de um projeto. Isto 
leva à queixa comum de que o projeto termina sem que o material 
tenha sido analisado com alguma profundidade. Isto também resul- 
ta na criação de “porões de dados”: materiais coletados, mas nunca 
de fato analisados. Uma avaliação séria dos procedimentos referen- 
tes ao tempo exigido para seleção e análise irá aumentar o realismo 
de muitos pesquisadores. 

Quanto mais representações o pesquisador espera sobre um tema 
específico, mais diferentes estratos e funções de pessoas, ou materiais, 
necessitam ser explorados, e maior o corpus. O pesquisador terá de 
decidir estudar uma ou mais representações em detalhe. Do mesmo 
modo, se for levada em consideração a análise automática do texto, 
incluindo a aplicação de procedimentos estatísticos, isso pode exigir 
um número mínimo de palavras num corpus para alcançar resulta- 
dos confiáveis. Por exemplo, ALCESTE (ver Kronberger & Wagner, 
cap. 17 neste volume) exigirá um texto com no mínimo 10.000 pala- 
vras. Tais procedimentos podem também colocar um limite máximo 
no tamanho do corpus, além do qual os procedimentos ou não irão 
funcionar, ou necessitarão um longo período de tempo. 

Padrões básicos na construção do corpus e no relatório 

Como no corpus lingüístico, devemos renunciar a qualquer es- 
perança de se conseguir um corpus totalmente representativo, para 
propósitos gerais, com respeito a um tópico. Uma multidão de tó- 
picos corpora podem emergir de uma prática florescente de pesqui- 
sa qualitativa. O problema surge na maneira como tornar esses ma- 
teriais comparáveis e acessíveis para uma análise secundária. Uma 
maneira de prosseguir nessa direção é o desenvolvimento de orien- 
tações para a construção de corpus e para os relatórios. A pesquisa 
de levantamento desenvolveu e elaborou padrões de como relatar 
procedimentos de amostragem representativa, e padrões análogos 



— 60 — 




2. A CONSTRUÇÃO DO CORPUS... 



podem ser necessários para a pesquisa qualitativa. Tais padrões 
podem incluir: 

• uma descrição da essência dos materiais implicados: texto, 
imagem, sons, etc.; 

• uma caracterização do tópico de pesquisa, por exemplo, pro- 
blemas éticos com respeito à clonagem humana; 

• um relatório sobre as modalidades da ampliação gradual do 
corpus aberto; 

• os estratos sociais, as funções e as categorias que foram empre- 
gadas no início; 

• os estratos sociais, as funções e as categorias que foram acres- 
centadas posteriormente; 

• a evidência para a saturação; 

• a duração dos ciclos na coleta de dados; 

• o local da coleta de dados. 

Na verdade, o ESRC Data Archive da Essex University (Heaton, 
1998; ou ESRC em http://www.essex.ac.uk/qualidat/) já iniciou a 
construir um arquivo para pesquisa qualitativa para o qual são exigi- 
dos padrões de relatório, e que protege a privacidade dos informan- 
tes - uma questão que é muito delicada na pesquisa qualitativa. 



Passos na construção de um corpus 

1. Decida a área do tópico, e leve em consideração as quatro regras 
da construção de um corpus: 

Regra 1 - Caminhe por etapas: selecionar; analisar; selecionar 
de novo. 

Regra 2 - Na pesquisa qualitativa, a variedade de estratos e fun- 
ção precede a variedade das representações. 

Regra 3 - A caracterização da variedade das representações 
tem prioridade sobre sua ancoragem em categorias de pes- 
soas existentes. 

Regra 4 - Maximizar a variedade de representações ampliando 
o espectro de estratos/funções em consideração. 



— 61 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



2. Leve em consideração o espaço social bidimensional: estratos e 
funções; e representações do tópico. Liste o maior número possí- 
vel de estratos e funções. 

3. Explore as representações do tópico, começando com um ou 
dois estratos ou funções. 

4. Decida se esses estratos têm possibilidade de dar conta da varie- 
dade de representações, ou se estratos ou funções sociais adicio- 
nais devem ser pesquisados. 

5. Amplie o corpus adequadamente. Confira se você conseguiu uma 
variedade saturada. Que estratos não foram considerados? 

6. Faça a análise final e revise o espaço social à luz dos achados, e re- 
late seus achados; ou siga um procedimento cíclico, retornando à 
etapa 4 



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— 63 — 



3 

Entrevistas individuais e grupais 



George Gaskell 



Palavras-chave: entrevista com grupos focais; moderador; dinâ- 
mica do grupo; materiais de estímulo; entrevista individual em 
profundidade; tópico guia. 



Este capítulo é uma espécie de reflexão pessoal sobre os 25 anos 
de pesquisa qualitativa, e se fundamenta em vários cursos de treina- 
mento e em conferências nas quais participei. É uma tentativa de 
analisar logicamente o conhecimento tácito que alguém desenvolve 
a partir de um sem número de projetos. Embora as discussões con- 
ceptuais se refiram principalmente à pesquisa psicossocial, espe- 
ra-se que os que possuam outras convicções sociais científicas encon- 
trem uma ajuda de valor prático. 

O objetivo deste capítulo é fornecer tanto uma fundamentação 
teórica quanto uma orientação prática para a pesquisa qualitativa. 
Aqui, pesquisa qualitativa se refere a entrevistas do tipo semi-estru- 
turado com um único respondente (a entrevista em profundidade), 
ou com um grupo de respondentes (o grupo focal). Essas formas de 
entrevista qualitativa podem ser distinguidas, de um lado, da entre- 
vista de levantamento fortemente estruturada, em que é feita uma 
série de questões predeterminadas; e de outro lado, distingue-se da 
conversação continuada menos estruturada da observação partici- 
pante, ou etnografia, onde a ênfase é mais em absorver o conheci- 
mento local e a cultura por um período de tempo mais longo do que 
em fazer perguntas dentro de um período relativamente limitado. 

Nas ciências sociais empíricas, a entrevista qualitativa é uma meto- 
dologia de coleta de dados amplamente empregada. Ela é, como es- 



— 64 — 






3. Entrevistas individuais e grupais 



creveu Robert Farr (1982), “essencialmente uma técnica, ou método, 
para estabelecer ou descobrir que existem perspectivas, ou pontos de 
vista sobre os fatos, além daqueles da pessoa que inicia a entrevista”. 

O primeiro ponto de partida é o pressuposto de que o mundo so- 
cial não é um dado natural, sem problemas: ele é ativamente cons- 
truído por pessoas em suas vidas cotidianas, mas não sob condições 
que elas mesmas estabeleceram. Assume-se que essas construções 
constituem a realidade essencial das pessoas, seu mundo vivencial. 
O emprego da entrevista qualitativa para mapear e compreender o 
mundo da vida dos respondentes é o ponto de entrada para o cien- 
tista social que introduz, então, esquemas interpretativos para com- 
preender as narrativas dos atores em termos mais conceptuais e abs- 
tratos, muitas vezes em relação a outras observações. A entrevista 
qualitativa, pois, fornece os dados básicos para o desenvolvimento e 
a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O 
objetivo é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores 
e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em con- 
textos sociais específicos. 

Usos da entrevista qualitativa 

A compreensão dos mundos da vida dos entrevistados e de gru- 
pos sociais especificados é a condição sine qua non da entrevista qua- 
litativa. Tal compreensão poderá contribuir para um número de di- 
ferentes empenhos na pesquisa. Poderá ser um fim em si mesmo o 
fornecimento de uma “descrição detalhada” de um meio social espe- 
cífico; pode também ser empregada como uma base para construir 
um referencial para pesquisas futuras e fornecer dados para testar 
expectativas e hipóteses desenvolvidas fora de uma perspectiva teó- 
rica específica. 

Além dos objetivos amplos da descrição, do desenvolvimento 
conceptual e do teste de conceitos, a entrevista qualitativa pode de- 
sempenhar um papel vital na combinação com outros métodos. Por 
exemplo, intuições provindas da entrevista qualitativa podem me- 
lhorar a qualidade do delineamento de um levantamento e de sua 
interpretação. A fim de construir questões adequadas, é necessário 
avaliar tanto os interesses quanto a linguagem do grupo em foco. Do 
mesmo modo, a pesquisa de levantamento muitas vezes apresenta 
resultados e surpresas que necessitam de ulterior investigação. Aqui, 
a compreensão em maior profundidade oferecida pela entrevista 



— 65 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



qualitativa pode fornecer informação contextuai valiosa para ajudar 
a explicar achados específicos. 

A versatilidade e valor da entrevista qualitativa são evidenciados 
no seu emprego abrangente em muitas disciplinas sociais científicas 
e na pesquisa social comercial, nas áreas de pesquisa de audiência da 
mídia, relações públicas, marketing e publicidade. 

Preparação e planejamento 

Nesta seção, são introduzidos alguns aspectos centrais da entre- 
vista individual e grupai. Estes aspectos incluem a preparação e o 
planejamento, a seleção dos entrevistados, e uma introdução às téc- 
nicas de entrevista individuais e grupais. Assume-se aqui que o pes- 
quisador, oujá tenha desenvolvido um referencial teórico ou concei- 
tuai que guiará sua investigação e identificado os conceitos centrais e 
os temas que deverão ser vistos na pesquisa, ou tenha se decidido a 
trabalhar dentro do referencial da Teoria Fundamentada ( Grounded 
Theory - Glaser & Strauss, 1967). De acordo com esta escolha, duas 
questões centrais devem ser consideradas, antes que qualquer forma 
de entrevista: o que perguntar (a especificação do tópico guia) e a 
quem perguntar (como selecionar os entrevistados). 

O tópico guia 

O tópico guia é parte vital do processo de pesquisa e necessita 
atenção detalhada. Por detrás de uma conversação aparentemente 
natural e quase casual encontrada na entrevista bem-sucedida, está 
um entrevistador muito bem preparado. Se forem feitas perguntas 
inadequadas, então não apenas foi desperdiçado o tempo do entre- 
vistado, mas também o do entrevistador. É fundamental colocar tem- 
po e esforço na construção de um tópico guia, e é provável que se te- 
nha de fazer várias tentativas. Em sua essência, ele é planejado para 
dar conta dos fins e objetivos da pesquisa. Ele se fundamentará na 
combinação de uma leitura crítica da literatura apropriada, um reco- 
nhecimento do campo (que poderá incluir observações e/ou algumas 
conversações preliminares com pessoas relevantes), discussões com 
colegas experientes, e algum pensamento criativo. Como ideal, o tó- 
pico guia deveria caber em uma página. Ele não é uma série extensa 
de perguntas específicas, mas ao contrário, um conjunto de títulos de 
parágrafos. Ele funciona como um lembrete para o entrevistador, 
como uma salvaguarda quando der um “branco” no meio de uma en- 



66 — 




3. Entrevistas individuais e grupais 



trevista, um sinal de que há uma agenda a ser seguida, e (se um núme- 
ro de minutos é fixado a cada parágrafo) um meio de monitorar o an- 
damento do tempo da entrevista. Um bom tópico guia irá criar um re- 
ferencial fácil e confortável para uma discussão, fornecendo uma pro- 
gressão lógica e plausível através dos temas em foco. A medida que o 
tópico guia é desenvolvido, ele se torna um lembrete para o pesquisa- 
dor de que questões sobre temas sociais científicos devem ser apresen- 
tadas em uma linguagem simples, empregando termos familiares adap- 
tados ao entrevistado. Finalmente, ele funciona como um esquema 
preliminar para a análise das transcrições. 

O tópico guia é, contudo, como sugere o título, um guia, e não 
nos devemos tornar escravos dele, como se o sucesso da pesquisa de- 
pendesse só disso. O entrevistador deve usar sua imaginação social 
científica para perceber quando temas considerados importantes e 
que não poderiam estar presentes em um planejamento ou expecta- 
tiva anterior, aparecerem na discussão. Isto deve levar à modificação 
do guia para subseqüentes entrevistas. Do mesmo modo, à medida 
que uma série de entrevistas for acontecendo, alguns tópicos que es- 
tavam anteriormente na fase de planejamento, considerados centrais, 
podem se tornar desinteressantes, até mesmo devido a razões teóri- 
cas, ou porque os entrevistados têm pouca coisa ou nada a dizer so- 
bre eles. Finalmente, à medida que o estudo progride, o entrevista- 
dor pode criar algumas hipóteses, exploradas com uma forma dife- 
rente de investigação. Em síntese, embora o tópico guia deva ser 
bem preparado no início do estudo, ele deve ser usado com alguma 
flexibilidade. Uma coisa importante: todas estas mudanças devem 
ser plenamente documentadas com as razões que levaram a isto. 

Seleção dos entrevistados 

O termo “seleção” é empregado explicitamente em vez de “amos- 
tragem”. Isto porque a amostragem carrega, inevitavelmente, cono- 
tações dos levantamentos e pesquisa de opinião onde, a partir de 
uma amostra estatística sistemática da população, os resultados po- 
dem ser generalizados dentro de limites específicos de confiabilida- 
de. Na pesquisa qualitativa, a seleção dos entrevistados não pode se- 
guir os procedimentos da pesquisa quantitativa por um bom núme- 
ro de razões. 

Primeiramente, numa improvável situação de selecionar uma 
amostra aleatória de, digamos, 30 pessoas, para um estudo qualitati- 



— 67 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



vo, a margem de erro ligada a uma divisão de 50/50 com qualquer 
indicador seria na região de mais ou menos 20 porcento. Assim, se 
30 médicos forem entrevistados, a metade disser que eles iriam pres- 
crever remédios homeopáticos e a outra metade disser que eles não 
iriam, poder-se-ia dizer com segurança que na população dos dou- 
tores, entre 30 a 70 porcento iria prescrever tratamentos homeopá- 
ticos. Com uma amostra não probabilística, a margem de erro pode 
ser o dobro. É evidente que se alguém quisesse avaliar o entusiasmo 
médico, ou a falta dele, com respeito à homeopatia, outras formas 
de pesquisa social seriam melhor indicadas, por exemplo, um levan- 
tamento. Mas, muitas vezes, relatórios de pesquisa qualitativa inclu- 
em detalhes numéricos ou quantificadores vagos, tais como “mais da 
metade” com respeito à distribuição de opiniões ou experiências en- 
tre os entrevistados, como se estes números de algum modo fossem 
pesar na interpretação e na legítima generalização para uma popu- 
lação maior. Isto é não entender a finalidade da pesquisa qualitativa. 

A finalidade real da pesquisa qualitativa não é contar opiniões ou 
pessoas, mas ao contrário, explorar o espectro de opiniões, as dife- 
rentes representações sobre o assunto em questão. Em um meio so- 
cial específico, digamos, na profissão médica, o que nós estamos in- 
teressados em descobrir é a variedade de pontos de vista no assunto 
em questão, por exemplo, a homeopatia, e especificamente o que 
fundamenta e justifica estes diferentes pontos de vista. A fim de se 
ter segurança de que toda a gama de pontos de vista foi explorada, o 
pesquisador não necessitará entrevistar diferentes membros do meio 
social. Nem todos os médicos têm os mesmos pontos de vista. Mas 
do mesmo modo, acontece normalmente que existe um número re- 
lativamente limitado de pontos de vista, ou posições, sobre um tópi- 
co dentro de um meio social específico. Por conseguinte, o pesquisa- 
dor necessitará levar em consideração como este meio social pode 
ser segmentado com relação ao tema. Poderá existir algum levanta- 
mento, ou informações já prontas, para se montar a seleção dos en- 
trevistados, mas este não é, em geral, o caso. Sem uma informação 
anterior que possa instruir a seleção dos entrevistados, um pesquisa- 
dor poderá falar com algumas pessoas dentro da profissão médica e 
perguntar por que os médicos acham que existam diferenças com 
relação ao apoio à homeopatia, ou ele poderá supor que tais fatores 
como a data da formatura, o gênero ou o perfil dos pacientes pode- 
rão estar relacionados a diferentes práticas. Sejam quais forem os 
critérios, o objetivo é maximizar a oportunidade de compreender as 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



diferentes posições tomadas pelos membros do meio social (ver 
cap. 2 neste volume). 

Para outras questões de pesquisa, o problema da seleção dos en- 
trevistados pode ser mais complexo, na medida em que o assunto é 
relevante para mais de um meio social. Tomemos como exemplo a 
introdução de alimentos geneticamente modificados (GM). Esta é 
uma nova tecnologia que atinge a maioria, senão toda a população. 
Para compreender o espectro de reações aos alimentos GM, seria 
necessário definir ambientes relevantes dentre os quais se faria a 
seleção. A praxe, ou a opção tradicional, é usar as variáveis padrão 
sociodemográficas, como gênero, idade, categoria social e alguma 
segmentação geográfica, por exemplo urbano/rural. Suponhamos 
que cada um destes indicadores é classificado como uma dicoto- 
mia. Isto nos daria 16 células para cobrir todas as possíveis combi- 
nações. No pressuposto que tanto para entrevistas individuais, 
como para grupais, sejam necessárias no mínimo duas entrevistas, 
isto nos daria 32 entrevistas. 

Este seria um empreendimento enorme, fora das possibilidades 
de muitos estudos. O pesquisador faz, então, uma seleção das 16 cé- 
lulas, tomando combinações de características sociodemográficas 
que provavelmente serão de interesse. Todas estas características se- 
rão com isso incluídas, mas não todas as possíveis combinações des- 
tas características. 

Uma alternativa para se pensar sobre segmentação é empregar 
grupos “naturais”, em vez de grupos estatísticos, ou taxonômicos. 
Nos grupos naturais, as pessoas interagem conjuntamente; elas po- 
dem partilhar um passado comum, ou ter um projeto futuro co- 
mum. Elas podem também ler os mesmos veículos de comunicação e 
ter interesses e valores mais ou menos semelhantes. Neste sentido, 
grupos naturais formam um meio social. Retornando ao exemplo 
dos alimentos GM, em vez de continuar no pressuposto de que as ca- 
racterísticas sociais e demográficas seriam um diagnóstico de dife- 
rentes pontos de vista com respeito ao tema, a seleção dos entrevis- 
tados poderia se basear em grupos naturais relevantes ou ambientes 
sociais. Sendo que os alimentos GM foram discutidos por ambienta- 
listas em termos de risco, por grupos de consumidores em termos de 
questões de segurança principalmente para crianças, por grupos re- 
ligiosos em termos de ética, e pelos agricultores em termos tanto de 
lucros como de ameaças à agricultura orgânica, estes são candidatos 
a serem os ambientes. Deste modo, as entrevistas podem ser feitas 



69 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



com membros das organizações ambientais, mães com filhos, pes- 
soas de diferentes crenças religiosas e pessoas envolvidas com agri- 
cultura. Dentro destes grupos, será necessário levar em considera- 
ção se tais características como gênero, idade e educação seriam re- 
levantes ou não. Sabe-se, por exemplo, que embora os homens ten- 
dam a aceitar mais as novas tecnologias que as mulheres, a relação 
com a idade não é tão tranqüila. Uma vez mais o pesquisador terá 
de tomar algumas decisões entre os benefícios de se pesquisar de- 
terminados segmentos e os custos de ignorar outros. Para tais esco- 
lhas, é indispensável uma imaginação social científica. Não existem 
respostas corretas. 

Em síntese, o objetivo da pesquisa qualitativa é apresentar uma 
amostra do espectro dos pontos de vista. Diferentemente da amostra 
do levantamento, onde a amostra probabilística pode ser aplicada 
na maioria dos casos, não existe um método para selecionar os en- 
trevistados das investigações qualitativas. Aqui, devido ao fato de o 
número de entrevistados ser necessariamente pequeno, o pesquisa- 
dor deve usar sua imaginação social científica para montar a seleção 
dos respondentes. Embora características sociodemográficas pa- 
drão possam ser relevantes, e certamente o são para questões políti- 
cas e de consumo, seria mais eficiente e produtivo pensar em termos 
de ambientes sociais relevantes para outros tópicos em questão. Em 
algumas circunstâncias, a pesquisa pode assumir um procedimento 
por fases. Neste caso, a primeira fase pode empregar um delinea- 
mento de amostra baseado em todas as informações acessíveis ante- 
riores à investigação do tema. Tendo avaliado as informações desta 
fase, a segunda fase pode, então, enfocar categorias específicas de 
entrevistados que pareçam ser particularmente interessantes. Final- 
mente, sejam quais forem os critérios para a seleção dos entrevista- 
dos, os procedimentos e as escolhas devem ser detalhados e justifica- 
dos em qualquer tipo de relatório. 

Quantas entrevistas são necessárias? 

Sob muitos aspectos, esta questão provoca a resposta, “que com- 
primento tem uma corda?”, e na realidade, a resposta é: “depende”. 
Depende da natureza do tópico, do número dos diferentes ambien- 
tes que forem considerados relevantes e, é claro, dos recursos dispo- 
níveis. Contudo, há algumas considerações gerais que guiam a deci- 
são. Um ponto-chave que se deve ter em mente é que, permanecen- 
do todas as coisas iguais, mais entrevistas não melhoram necessaria- 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



mente a qualidade, ou levam a uma compreensão mais detalhada. 
Há duas razões para esta afirmação. Primeiro, há um número limita- 
do de interpelações, ou versões, da realidade. Embora as experiên- 
cias possam parecer únicas ao indivíduo, as representações de tais 
experiências não surgem das mentes individuais; em alguma medi- 
da, elas são o resultado de processos sociais. Neste ponto, representa- 
ções de um tema de interesse comum, ou de pessoas em um meio so- 
cial específico são, em parte, compartilhadas. Isto pode ser visto em 
uma série de entrevistas. As primeiras são cheias de surpresas. As dife- 
renças entre as narrativas são chocantes e, às vezes, ficamos imaginan- 
do se há ali algumas semelhanças. Contudo, temas comuns começam 
a aparecer, e progressivamente sente-se uma confiança crescente na 
compreensão emergente do fenômeno. Acerta altura, o pesquisador 
se dá conta que não aparecerão novas surpresas ou percepções. Neste 
ponto de saturação do sentido, o pesquisador pode deixar seu tópico 
guia para conferir sua compreensão, e se a avaliação do fenômeno é 
corroborada, é um sinal de que é tempo de parar. 

Em segundo lugar, há a questão do tamanho do corpus a ser ana- 
lisado. A transcrição de uma entrevista pode ter até 15 páginas; com 
20 entrevistas haverá, então, umas 300 páginas no corpus. A fim de 
analisar um corpus de textos extraídos das entrevistas e ir além da se- 
leção superficial de um número de citações ilustrativas, é essencial 
quase que viver e sonhar as entrevistas - ser capaz de relembrar cada 
ambiente entrevistado, e os temas-chave de cada entrevista. Há uma 
perda de informação no relatório escrito, e o entrevistador deve ser 
capaz de trazer à memória o tom emocional do entrevistado e lem- 
brar por que eles fizeram uma pergunta específica. Falas ou comen- 
tários que numa primeira escuta pareciam sem sentido podem, re- 
pentinamente, entrar em cena à medida que as contribuições de di- 
ferentes entrevistados são comparadas e contrastadas. 

Devido a estas duas razões, há um limite máximo ao número de 
entrevistas que é necessário fazer, e possível de analisar. Para cada 
pesquisador, este limite é algo entre 15 e 25 entrevistas individuais, 
e ao redor de 6 a 8 discussões com grupos focais. E claro que a pes- 
quisa pode ser dividida em fases: um primeiro conjunto de entrevis- 
tas, seguido por análise, e depois um segundo conjunto. Ou poderá 
haver uma combinação de entrevistas individuais e grupais. Em tais 
situações, seria desejável fazer um número maior de entrevistas e 
analisar os diferentes componentes do corpus separadamente, jun- 
tando-os em um estágio posterior. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Uma nota de precaução na entrevista qualitativa 

Becker & Geer (1957) afirmam que a observação participante é 
“a forma mais completa de informação sociológica”. Como tal, ela 
fornece um marco referencial diante do qual se podem julgar outros 
métodos ou, como eles colocam, “conhecer que tipo de informação 
nos escapa quando empregamos outros métodos”. Em comparação 
com o intenso trabalho de campo da observação participante, Bec- 
ker 8c Geer apresentam três limitações, ou falhas, com respeito à en- 
trevista. Fundamentalmente, elas surgem do fato de que o entrevis- 
tador se apóia na informação do entrevistado no que se refere às 
ações que ocorreram em outras circunstâncias de espaço e tempo. 

Em tal situação, o entrevistador não pode compreender plena- 
mente a “linguagem local”: a conotação de alguns termos comuns 
pode ser totalmente diferente. Em segundo lugar, por diversas ra- 
zões, o entrevistado pode omitir detalhes importantes. Pode ser que 
algumas coisas lhe pareçam apenas algo dado, aceito sem discussão; 
outras coisas podem ser difíceis de serem ditas com palavras, ou o 
entrevistado pensa que seria descortês ou mostraria falta de sensibi- 
lidade. Em terceiro lugar, um entrevistado pode ver situações atra- 
vés de “lentes distorcidas”, e fornecer uma versão que seja engana- 
dora e impossível de ser testada ou verificada. 

Estas limitações da entrevista podem levar o pesquisador a fazer 
falsas inferências a respeito de situações ou acontecimentos. Na ob- 
servação participante, o pesquisador está aberto a uma maior ampli- 
tude e profundidade de informação, é capaz de triangular diferen- 
tes impressões e observações, e consegue conferir discrepâncias 
emergentes no decurso do trabalho de campo. 

Becker & Geer não sugerem que estas potenciais limitações da 
entrevista invalidem o método. Eles reconhecem que por razões de 
praticidade e economia a entrevista pode ser um método útil. O 
que eles apresentam são pontos para consideração, com o fim de 
sensibilizar os pesquisadores com relação aos problemas e que pos- 
sam servir como um catalisador de experiências para melhorar as 
entrevistas. Efetivamente falando, as implicações de Becker & Geer 
são tríplices. Primeiro, o entrevistador não deve aceitar nada como 
se fosse pacífico. Segundo, ele deve sondar cuidadosamente mais 
detalhes do que aqueles que o entrevistado pode oferecer em uma 
primeira resposta à pergunta. Terceiro, é através do acúmulo de 
informações conseguidas a partir de um conjunto de entrevistas 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



que podemos chegar a compreender os mundos da vida dentro de 
um grupo de entrevistados. 

Escolhas metodológicas: entrevistas individuais versus entrevistas em grupo 

Tendo levado em consideração os alertas de Becker 8c Geer, en- 
focamos agora uma discussão central: que tipo de metodologia de 
entrevista é mais apropriado à investigação, a individual ou a gru- 
pai? Há um marcante contraste na escolha de métodos, entre a pes- 
quisa acadêmica e a pesquisa comercial. Falando de modo geral, a 
pesquisa acadêmica emprega a entrevista individual de profundida- 
de, enquanto que o setor comercial prefere entrevistas em grupo. As 
diferentes orientações podem ser justificadas com base na tradição 
ou em considerações pragmáticas. Por exemplo, por ser a pesquisa 
comercial muitas vezes pressionada pelo tempo, é muito mais rápi- 
do fazer um pequeno número de entrevistas com grupos focais do 

que entrevistar o mesmo número de pessoas individualmente. 

/ 

E claro que existem muitas semelhanças entre entrevistas indivi- 
duais e em grupo. Em ambos os tipos de entrevista o pesquisador não 
orienta a investigação a partir de um conjunto de perguntas predeter- 
minadas como se faz em um levantamento ou questionário. Embora o 
conteúdo mais amplo seja estruturado pelas questões da pesquisa, na 
medida em que estas constituem o tópico guia, a idéia não é fazer um 
conjunto de perguntas padronizadas ou esperar que o entrevistado 
traduza seus pensamentos em categorias específicas de resposta. As 
perguntas são quase que um convite ao entrevistado para falar longa- 
mente, com suas próprias palavras e com tempo para refletir. Além 
do mais, diferentemente do levantamento, o pesquisador pode obter 
esclarecimentos e acréscimos em pontos importantes com sonda- 
gens apropriadas e questionamentos específicos. 

Haverá, contudo, alguns fundamentos teóricos que possam indi- 
car a escolha do método? Toda pesquisa com entrevistas é um pro- 
cesso social, uma interação ou um empreendimento cooperativo, 
em que as palavras são o meio principal de troca. Não é apenas um 
processo de informação de mão única passando de um (o entrevista- 
do) para outro (o entrevistador). Ao contrário, ela é uma interação, 
uma troca de idéias e de significados, em que várias realidades e per- 
cepções são exploradas e desenvolvidas. Com respeito a isso, tanto 
o(s) entrevistado(s) como o entrevistador estão, de maneiras dife- 
rentes, envolvidos na produção de conhecimento. Quando nós lida- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



mos com sentidos e sentimentos sobre o mundo e sobre os aconteci- 
mentos, existem diferentes realidades possíveis, dependendo da si- 
tuação e da natureza da interação. Deste modo, a entrevista é uma 
tarefa comum, uma partilha e uma negociação de realidades. Ao 
analisar a produção de conhecimento social, ou representações, Bauer 
& Gaskell (1999) afirmam que o sistema social mínimo implicado na 
representação é uma tríade dialógica: duas pessoas (sujeito 1 e sujei- 
to 2) que estão preocupadas com um objeto (O) em relação a um 
projeto (P), em uma dimensão de tempo. Este triângulo de media- 
ção, prolongado no tempo (S-O-S), é a unidade básica de comunica- 
ção para a elaboração de sentido. Sentido não é uma tarefa indivi- 
dual ou privada, mas é sempre influenciado pelo “outro”, concreto 
ou imaginado. 

Tendo isto em mente, consideremos a profundidade da entrevis- 
ta. Ela é uma conversação um a um, uma interação díade. Mas ela di- 
fere de conversações comuns sob diversos aspectos. Ela demora mais 
que uma hora e se dá entre duas pessoas que não se conheciam an- 
tes. Existe aqui um papel relacional incomum. Espera-se que uma 
pessoa, o entrevistador, faça as perguntas; e espera-se do outro, o 
entrevistado, que responda a elas. O tópico é uma escolha do entre- 
vistador; o entrevistado pode ou não ter pensado seriamente no as- 
sunto anteriormente. 

Nesta estranha situação, o entrevistado pode se sentir um tanto 
constrangido e talvez um pouco hesitante e defensivo. Que papel de- 
veriam os entrevistados assumir nesta conversação de desiguais? Po- 
dem eles confiar no entrevistador, podem dizer o que realmente sen- 
tem? Sua tendência inicial pode ser seguir as normas da conversação 
cotidiana, limitar as respostas àquilo que se presume ser relevante e 
informativo (Grice, 1975), e adotar posições com respeito aos proble- 
mas que estejam de acordo com alguma auto-imagem específica. 

Para contrabalançar estas tendências compreensíveis e encorajar 
o entrevistado a falar longamente, a se expandir em aspectos de sua 
vida e ser sincero, o entrevistador deve deixar o entrevistado à von- 
tade e estabelecer uma relação de confiança e segurança, o que se 
costuma chamar de rapport. Isto se consegue através da forma como 
o entrevistador faz as perguntas, por um encorajamento verbal ou 
não verbal, e mostrando-se tranqüilo e à vontade. A medida que o 
rapport é posto em ação, também o entrevistado com certeza vai se 
sentir mais à vontade e expansivo, para pensar e falar sobre as coisas 
além do nível das opiniões superficiais e com menos probabilidade 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



de oferecer uma racionalização normativa. Ao mesmo tempo, o en- 
trevistador deverá ser sempre mais capaz de prosseguir no tema 
com outras questões e indagações. Até certo ponto, o entrevistador 
deve adotar o papel de um conselheiro. 

Fundamentalmente, em uma entrevista em profundidade bem 
feita, a cosmovisão pessoal do entrevistado é explorada em detalhe. 
Embora tais pontos de vista pessoais reflitam os resíduos ou memó- 
rias de conversações passadas, o entrevistado possui o papel central 
no palco. É a sua construção pessoal do passado. No decurso de tal 
entrevista, é fascinante ouvir a narrativa em construção: alguns dos 
elementos são muito bem lembrados, mas detalhes e interpretações 
falados podem até mesmo surpreender o próprio entrevistado. Tal- 
vez seja apenas falando que nós podemos saber o que pensamos. 

A passagem de uma forma específica de interação díade da en- 
trevista em profundidade para a entrevista em grupo traz mudanças 
qualitativas na natureza da situação social. No grupo focal, o entre- 
vistador, muitas vezes chamado de moderador, é o catalisador da in- 
teração social (comunicação) entre os participantes. O objetivo do 
grupo focal é estimular os participantes a falar e a reagir àquilo que 
outras pessoas no grupo dizem. É uma interação social mais autênti- 
ca do que a entrevista em profundidade, um exemplo da unidade 
social mínima em operação e, como tal, os sentidos ou representa- 
ções que emergem são mais influenciados pela natureza social da in- 
teração do grupo em vez de se fundamentarem na perspectiva indi- 
vidual, como no caso da entrevista em profundidade. 

Os processos sociais nos grupos foram extensamente estudados 
na literatura que trata da dinâmica dos grupos. Existem pelo menos 
três progenitores dos grupos focais: a tradição da terapia de grupo 
doTavistock Institute (Bion, 1961), a avaliação da eficácia da comu- 
nicação (Merton & Kendall, 1946), e a tradição da dinâmica de gru- 
po em psicologia social (Lewin, 1958). 

Em sua essência, a pesquisa mostra que o grupo, distinto de deter- 
minado número de pessoas em um mesmo local, é mais do que a 
soma das partes: ele se torna uma entidade em si mesma. Ocorrem 
processos dentro dos grupos que não são vistos na interação diádica 
da entrevista em profundidade. A emergência do grupo caminha 
lado a lado com o desenvolvimento de uma identidade compartilha- 
da, esse sentido de um destino comum presente quando dizemos 
“nós”. Um grupo pode se subdividir em facções que confrontam seus 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



próprios pontos de vista e opiniões. A interação do grupo pode gerar 
emoção, humor, espontaneidade e intuições criativas. As pessoas nos 
grupos estão mais propensas a acolher novas idéias e a explorar suas 
implicações. Descobriu-se que os grupos assumem riscos maiores e 
mostram uma polarização de atitudes - um movimento para posições 
mais extremadas. Com base nestes critérios, o grupo focal é um ambi- 
ente mais natural e holístico em que os participantes levam em consi- 
deração os pontos de vista dos outros na formulação de suas respostas 
e comentam suas próprias experiências e as dos outros. 

Fundamentados nestas considerações, podemos sintetizar as ca- 
racterísticas centrais da entrevista de grupo: 

1. Uma sinergia emerge da interação social. Em outras palavras, 
o grupo é mais do que a soma de suas partes. 

2. É possível observar o processo do grupo, a dinâmica da atitu- 
de e da mudança de opinião e a liderança de opinião. 

3. Em um grupo pode existir um nível de envolvimento emocio- 
nal que raramente é visto em uma entrevista a dois. 



Subjacentes ao grupo focal existem vários referenciais sobre o 
processo de formação do grupo. Por exemplo, Tuckman (1965) iden- 
tificou quatro etapas de desenvolvimento. Primeiro, existe uma etapa 
de “formação”, em que há certa confusão e incerteza, a criação de fa- 
miliaridade e os inícios do estabelecimento da identidade do grupo. 
Isto é seguido pela etapa “tempestuosa”, onde há conflito entre os 
membros do grupo e entre o grupo como um todo e o líder. Se este 
período de conflito é solucionado, o grupo se torna coeso - é a etapa 
das “normas”. Com os papéis definidos e o grupo estável, é alcançada 
a etapa de “desempenho” quando o pesquisador poderá executar um 
verdadeiro e valioso trabalho de investigação. Gordon & Langmaid 
(1988) acrescentam uma fase final, a do “luto”. Aqui, à medida que a 
sessão grupai chega ao final, e o gravador está desligado, acontecem 
discussões semiprivadas entre os próprios membros do grupo e entre 
alguns do grupo e o moderador. Há mais coisas a dizer, explicações 
para tomadas de posição embaraçosas e, de maneira mais geral, uma 
re-entrada para o mundo real. O moderador gostaria que o gravador 
ainda estivesse ligado pois temas de alguma significância podem ser 
levantados. Em tais circunstâncias, é sempre uma boa idéia tomar no- 
tas depois que os participantes deixaram a sala. 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



A tarefa do moderador é facilitar o progresso do grupo em dire- 
ção à etapa final, a do “desempenho”, que num grupo focal típico de 
uma sessão de 90 minutos pode compreender entre 15 e 45 minutos. 

Tendo discutido alguns tópicos conceituais subjacentes à entre- 
vista individual e grupai, retornamos ao problema de decidir como 
selecionar entre os dois enfoques. Embora muitos pesquisadores te- 
nham articulado muito bem razões de quando e por que se deve em- 
pregar um ou outro enfoque, a literatura de pesquisa sobre o proble- 
ma é bastante confusa (Morgan, 1996). Não há um consenso sobre 
quando um método tem probabilidade de ser mais eficaz. Alguns su- 
gerem que os grupos são mais criativos, outros não; alguns recomen- 
dam entrevistas individuais para tópicos mais delicados, mas outros 
pesquisadores foram bem-sucedidos explorando comportamentos 
sexuais com grupos focais. Com toda probabilidade, isto depende 
da natureza do tópico de pesquisa, dos objetivos da pesquisa, dos ti- 
pos de entrevistados e até certo ponto das habilidades e preferências 
pessoais do pesquisador. Não há pesquisa metodológica suficiente 
para tirar conclusões seguras e rápidas. É possível, contudo, fazer al- 
gumas observações gerais que podem ajudar os pesquisadores a con- 
siderar as opções e fazer uma decisão bem fundamentada. 

Para o mesmo número de entrevistados, o grupo focal é mais efi- 
caz. O grupo fornece critérios sobre o consenso emergente e a ma- 
neira como as pessoas lidam com as divergências. Em uma sessão 
grupai, as pessoas podem ser criativas, o pesquisador/moderador 
pode explorar metáforas e imagens, e empregar estímulos de tipo 
projetivo. Na situação grupai, a partilha e o contraste de experiências 
constrói um quadro de interesses e preocupações comuns que, em 
parte experienciadas por todos, são raramente articuladas por um 
único indivíduo. O grupo é antes mais como uma novela, uma pers- 
pectiva sobre a vida cotidiana mostrada apenas quando se assiste a 
todo o programa e não apenas pela contribuição de um único ator. 

Há, contudo, algumas desvantagens na técnica dos grupos focais 
que vêm ilustrar as vantagens da entrevista individual. Primeiro, os 
participantes em um grupo focal tendem a ser, até certo ponto, au- 
to-seletivos. Nem todos os convidados se apresentam e alguns gru- 
pos planejados são difíceis de recrutar, por exemplo, minorias étni- 
cas, os velhos e portadores de deficiências, mães com filhos muito 
pequenos. Do mesmo modo, é difícil, mas não impossível, recrutar 
entrevistados dentro de uma elite sempre muito ocupada, para uma 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



sessão de grupo. Estes problemas de seleção podem ser evitados 
através de entrevistas individuais, onde a entrevista pode ser agen- 
dada para um tempo e lugar conveniente para o entrevistado. Em 
segundo lugar, não é exeqüível dirigir a atenção para uma pessoa 
particular em uma discussão de grupo, do mesmo modo como se 
consegue em uma entrevista individual. Com um entrevistado ape- 
nas, podemos conseguir detalhes muito mais ricos a respeito de ex- 
periências pessoais, decisões e seqüência das ações, com perguntas 
indagadoras dirigidas a motivações, em um contexto de informação 
detalhada sobre circunstâncias particulares da pessoa. O que o en- 
trevistado diz, e a maneira como a entrevista se desenvolve, pode es- 
tar relacionado a outras características relevantes do indivíduo de 
um modo tal que não é possível dentro da discussão e subseqüente 
análise de um grupo focal. 

Na Tabela 3.1, as várias vantagens das entrevistas individuais e 
grupais são tentativamente sintetizadas. Devido a estas diferentes 
vantagens e limitações dos grupos focais e das entrevistas indivi- 
duais, alguns pesquisadores optam por uma junção dos dois méto- 
dos dentro do mesmo projeto: um enfoque multimétodo que tem al- 
guma justificação. 



Tabela 3.1 - Uma síntese da indicação de entrevistas em profundidade e grupais 



Entrevista individual Entrevista grupai 



Quanc/o o objetivo da pesquisa é para: 
Explorar em profundidade o mundo da 
vida do indivíduo 

Fazer estudos de caso com entrevistas 
repetidas no tempo 

Testar um instrumento, ou questionário (a 
entrevista cognitiva) 

Quando o tópico se refere a: 

Experiências individuais 
detalhadas, escolhas e biografias 
pessoais 

Assuntos de sensibilidade particular que 
podem provocar ansiedade 

Quanc/o os entrevistados são: 

Difíceis de recrutar, por exemplo, pessoas 
de idade, mães com filhos 
pequenos, pessoas doentes 
Entrevistados da elite ou de alto status 
Crianças menores de sete anos 



Orientar o pesquisador para um campo 
de investigação e para linguagem local 
Explorar o espectro de atitudes, opiniões e 
comportamentos 

Observar os processos de consenso e 
divergência 

Adicionar detalhes contextuais a achados 
quantitativos 

Assuntos de interesse público ou 
preocupação comum, por 
exemplo, política, mídia, comportamento 
de consumidores, lazer, novas tecnologias 
Assuntos e questões de natureza 
relativamente não familiar, ou hipotética 

Não pertencentes a origens tão diversas 
que possam inibir a participação na 
discussão do tópico 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



A natureza prática das entrevistas 

A entrevista com grupo focal 

Poder-se-ia caracterizar o grupo focal como sendo parecido com 
a descrição feita por Habermas (1992) da esfera pública ideal. É um 
debate aberto e acessível a todos: os assuntos em questão são de inte- 
resse comum; as diferenças de status entre os participantes não são 
levadas em consideração; e o debate se fundamenta em uma discus- 
são racional. Nesta característica final, a idéia de “racional” não é 
que a discussão deva ser lógica ou desapaixonada. O debate é uma 
troca de pontos de vista, idéias e experiências, embora expressas 
emocionalmente e sem lógica, mas sem privilegiar indivíduos parti- 
culares ou posições. 

O grupo focal tradicional compreende seis a oito pessoas desco- 
nhecidas anteriormente, que se encontram em um ambiente confor- 
tável por um tempo entre uma a duas horas. Os participantes e o 
moderador sentam num círculo, de tal modo que possa haver um 
contato frente a frente entre cada um. Quando as pessoas se senta- 
ram, a primeira tarefa do moderador é apresentar a si próprio, o as- 
sunto e a idéia de uma discussão grupai. 

Para começar este processo, o moderador pede a cada partici- 
pante que se apresente dizendo o nome, e pode acrescentar um pe- 
dido para que adicionem alguma informação pessoal que não cause 
polêmica. Cada contribuição termina com o moderador dizendo 
“obrigado”, usando o primeiro nome da pessoa. Feito isso, o mode- 
rador toma nota dos nomes e das posições na sala. Como na pesqui- 
sa em profundidade, o moderador tem um tópico guia que sintetiza 
as questões e assuntos da discussão. O moderador encoraja ativa- 
mente todos os participantes a falar e a responder aos comentários e 
observações dos outros membros do grupo. Quando a pessoa A diz 
algo, o moderador pode agradecer, dizendo de novo seu nome, e se 
volta à pessoa C, perguntando alguma coisa como: “Eu estava muito 
interessado no ponto de vista de Pedro, isso está de acordo com sua 
experiência?” O objetivo é avançar a partir de uma discussão lidera- 
da pelo moderador, para uma discussão onde os participantes rea- 
gem uns aos outros. 

Mas o moderador deve ser algo mais que um facilitador da dis- 
cussão. No espírito das advertências de Becker & Geer, é fundamen- 
tal que o moderador não assuma nada como sendo pacífico. Talvez 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



as indagações mais comuns que podem se seguir a um comentário 
sejam perguntas imediatas de efeito: “O que você quer dizer com 
isso?” e “Por que isso é assim?” 

Vejamos alguns exemplos. Se um termo interessante ou uma fra- 
se surgir na discussão pergunte sempre: “Quando você diz X, o que 
você quer dizer com isso?” Se o participante faz uma afirmação fac- 
tual, o moderador pode perguntar: “E você pensa que isso é uma coi- 
sa boa ou ruim?” Do mesmo modo, se alguém diz que não gosta de 
algo, o moderador pode provocar: “Então você diz que não gosta 
disso, o que é isso}” E, a cada vez que um membro do grupo respon- 
de a uma indagação para posterior informação, o moderador deve 
voltar-se aos outros membros do grupo e perguntar a opinião deles 
sobre o assunto. E claro que não é sempre necessário que o modera- 
dor indague, pois outros membros do grupo podem espontanea- 
mente entrar na discussão com comentários e pontos de vista. 

Outra prática proveitosa é o moderador ir trocando a perspecti- 
va do grupo do geral para o particular. Se uma afirmação geral é fei- 
ta, o moderador pode pedir um exemplo dela, e continuar depois 
perguntando “E esse um bom exemplo, pode trazer outros?” De ma- 
neira oposta, a discussão sobre um caso específico pode provocar a 
intervenção: “E esse um caso típico, é o que em geral acontece?” 

Os moderadores podem usar recursos de livre associação, figu- 
ras, desenhos, fotografias e mesmo dramatizações como materiais 
de estímulo para provocar idéias e discussão, como uma estratégia 
de fazer com que as pessoas usem sua imaginação e desenvolvam 
idéias e assuntos. 

Vejamos os seguintes exemplos: 

Associação livre: para se descobrir como as pessoas imaginam um 
assunto, isto é, qual a perspectiva que trazem, e para compreender a 
gama de outros conceitos e idéias com ele relacionadas, a associação 
livre pode ser iluminadora. O moderador pode perguntar: “Há 
muita gente falando de engenharia genética hoje em dia; o que vo- 
cês pensam da expressão engenharia genética, que palavras, ou fra- 
ses, vêm à cabeça de vocês?” 

A questão é colocada para todo o grupo. Mas é claro que alguns 
do grupo podem não estar seguros se eles sabem o que a expressão 
significa, mas isto não importa. Sempre há alguém que tem uma opi- 
nião e sugere algumas palavras que levam a uma série de associa- 



— 80 — 




3. Entrevistas individuais e grupais 



ções. Alguns irão concordar com outros e fornecer mais ilustrações, 
outros tomarão uma perspectiva diferente. A partir das visões ini- 
ciais, o moderador pode guiar o grupo a uma discussão sobre enge- 
nharia genética em geral, ou pode perguntar onde as pessoas ouvi- 
ram falar disso, ou em quem eles confiariam que poderia dizer a ver- 
dade sobre o tema. Assim, a técnica de associação livre pode condu- 
zir a muitos caminhos diferentes de discussão, dependendo dos in- 
teresses do moderador e dos do grupo. 

Escolha de uma figura ou de um assunto: o moderador pode pedir 
ao grupo que observe oito ou dez exemplos, cuidadosamente selecio- 
nados, de um tema representado por palavras e frases colocadas em 
cartazes ou por figuras (fotografias ou recortes de revistas). Os carta- 
zes ou frases são colocados numa mesa, ou no chão, de tal modo que 
os participantes possam ver. O moderador pede ao grupo que sepa- 
re estes estímulos em duas pilhas. Normalmente, a introdução para 
tal tarefa é seguida por um pedido de mais informação: “Sob que cri- 
tério devemos separá-los?” O moderador pode dizer: “Bem, a partir 
de qualquer critério que vocês julguem importante”. Na maioria das 
vezes um ou dois participantes vão responder ao desafio e apresen- 
tar uma sugestão; outros irão, então, pedir uma justificativa para tal 
critério e isto levará a acordos, divergências e modificações. Quando 
o grupo chega a um acordo sobre uma categorização, os critérios 
desta categorização são discutidos e explicados. O moderador pode- 
rá pedir maior esclarecimento e/ou perguntar se não haveria outras 
maneiras para se categorizar os estímulos. Deste modo, o conjunto 
de estímulos se torna um catalisador para a discussão sobre aspectos 
do tópico. 

Escolha de fotografias: aqui, um conjunto de fotografias de um am- 
plo grupo de pessoas é mostrado. Pergunta-se aos participantes: 
“Quem dessas pessoas poderia...?” e depois disso: “Quem dessas 
pessoas não poderia...?” E, é claro, à medida que as escolhas são fei- 
tas, o moderador pergunta: “e por que você pensa isso?” Embora 
tais estereótipos forneçam informações sobre crenças populares, 
eles também servem para se chegar a questões mais amplas, relacio- 
nadas ao tópico em questão e muitas vezes provocarão detalhes e 
preferências pessoais que podem, posteriormente, ser contrastados 
e refletidos no grupo. 

Dramatização: para um moderador mais ambicioso, que gosta de 
teatro, a criação de uma situação de dramatização pode ser muito re- 



— 81 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



veladora. Vejamos um estudo sobre relações entre médico e pacien- 
te. Alguém pode tomar duas pessoas e dar a uma o papel de médico, 
dizendo-se que ele/ela está atrasado e está pressionado pelo tempo, 
enquanto que ao outro não são dadas tais informações. Dois outros 
participantes do grupo são instruídos para que desempenhem o pa- 
pel de pacientes. É surpreendente como as pessoas desempenham 
bem os papéis, e levam as instruções a sério. Os papéis são desempe- 
nhados e o restante do grupo (o público) pode comentar, aplaudir 
ou oferecer suas experiências para ilustrar a qualidade no desempe- 
nho do papel. Novamente, o comportamento, e o que é dito pelos 
que desempenham os papéis, é uma fonte de informações em si 
mesma, mas isto também serve como base para uma discussão mais 
ampla no tópico em questão. 

Embora a entrevista tradicional com grupo focal empregue pes- 
soas desconhecidas, esta não é uma precondição. Na verdade, há ve- 
zes em que a familiaridade anterior é uma vantagem. Estudos de cul- 
turas organizacionais e de grupos sociais particulares têm vantagens 
quando se tomam pessoas que partilham um meio social comum. 
Aqui, o moderador provavelmente será um estranho e poderá fazer 
uso disto para tirar proveito. O moderador pode tomar a posição de 
um observador ingênuo e pedir instruções, ou pedir que lhe ensinem 
alguns pontos específicos. As pessoas aproveitam a oportunidade 
para falar sobre o papel de ensinar e na medida em que eles, individu- 
almente e coletivamente, explicam sua situação, alguns aspectos do 
conhecimento tácito auto-evidente são elaborados de um modo que 
seria difícil de conseguir a partir de um conjunto de perguntas. 

A entrevista individual 

A entrevista individual ou de profundidade é uma conversação 
que dura normalmente entre uma hora e uma hora e meia. Antes da 
entrevista, o pesquisador terá preparado um tópico guia, cobrindo 
os temas centrais e os problemas da pesquisa (ver acima). A entrevis- 
ta começa com alguns comentários introdutórios sobre a pesquisa, 
uma palavra de agradecimento ao entrevistado por ter concordado 
em falar, e um pedido para gravar a sessão. O entrevistador deve ser 
aberto e descontraído com respeito à gravação que pode ser justifi- 
cada como uma ajuda à memória ou um registro útil da conversação 
para uma análise posterior. Isto permite ao entrevistador concen- 
trar-se no que é dito em vez de ficar fazendo anotações. Confira sem- 



--82 — 




3. Entrevistas individuais e grupais 



pre duas vezes, antes da entrevista, se o gravador está funcionando e 
tome cuidado para apertar os botões corretos na hora da entrevista. 
Para fazer com que a entrevista deslanche, é útil começar com algu- 
mas perguntas bem simples, interessantes e que não assustem. O en- 
trevistador deve estar atento e interessado naquilo que o entrevista- 
do diz: devem ser dados encorajamentos através de contato com o 
olhar, balançando a cabeça e outros reforços. Introduza o tema de 
uma conversação pinçando um ponto e perguntando por mais al- 
guns detalhes. Alguns entrevistados precisam de algum tempo para 
se descontrair, mas isso é normal. A medida que a entrevista avança, 
o entrevistador necessita ter as perguntas na memória, conferindo 
ocasionalmente o tópico guia, mas o foco da atenção deve estar na 
escuta e entendimento do que está sendo dito. É importante dar ao 
entrevistado tempo para pensar, e por isso as pausas não devem ser 
preenchidas com outras perguntas. 

Alguns exemplos de perguntas 

Muitas destas podem ser seguidas por indagações posteriores. 

Convidando para fazer descrições: 

Poderia falar-me sobre o tempo em que você...? 

O que vem à mente quando você pensa em...? 

Como você descreveria... para alguém que não teria passado por 
isso antes? 



E levando as coisas adiante: 

Poderia dizer-me algo mais sobre...? 

O que faz você sentir-se assim? 

E isso é importante para você? Como é isso? 

Provocando informação contextuai: 

Quando você ouviu falar sobre X pela primeira vez, onde você 
estava e com quem você estava? 

O que as outras pessoas que estavam com você disseram naquela 
ocasião? 

Qual foi sua reação imediata? 



83 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Projeções: 

Que tipo de pessoa você acha que gostaria de X? 

Que tipo de pessoa não gostaria de X? 

Testando suas hipóteses: 

Daquilo que você diz parece que você pensa... Estou certo nisso? 
Que pensaria se isso e isso? 

Do particular para o geral e vice-versa: 

Na sua experiência, é X típico de coisas/pessoas como essas? 
Poder-ia dar um exemplo específico disso? 

Tomando uma postura ingênua: 

Não entendo muito disso, poder-ia dizer algo mais sobre isso? 

Como você descreveria isso para alguém que não conhecesse tal 
situação? 

Pensamentos finais: 

Nós discutimos uma porção de assuntos interessantes, há algu- 
ma coisa que nós não discutimos? 

Há algo mais que você gostaria de me dizer? 

Ao finalizar a entrevista, procure terminar com uma nota positi- 
va. Agradeça ao entrevistado e garanta a ele a confidencialidade das 
informações. Dê a ele tempo para “deixar” o ambiente de entrevista, 
pergunte se ele gostaria de fazer mais alguns comentários agora que 
o gravador está desligado. Finalmente, explique como a informação 
será usada e talvez o andamento de sua pesquisa. 

Análise 

Na parte II deste volume são descritos vários enfoques para a 
análise de um corpus com textos. Cada um deles provém de uma ori- 
entação teórica diversa, e faz perguntas diferentes ao corpus textual, 
fornecendo um estilo diferente de interpretação. Todos os enfoques 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



se fundamentam em um texto completo de entrevista, de tal modo 
que, seja qual for a orientação analítica escolhida, o primeiro passo é 
produzir uma transcrição com boa qualidade. No nosso caso, esta 
transcrição inclui todas as palavras faladas, mas não as característi- 
cas paralingüísticas. Se a transcrição não é feita pelo pesquisador, 
ele deve conferi-la com a gravação original e editá-la de acordo. 

O objetivo amplo da análise é procurar sentidos e compreensão. 
O que é realmente falado constitui os dados, mas a análise deve ir 
além da aceitação deste valor aparente. A procura é por temas com 
conteúdo comum e pelas funções destes temas. Algumas perspecti- 
vas teóricas falam de representações centrais e periféricas, sendo as 
primeiras aquelas que estão disseminadas dentro de um meio social. 

Em termos práticos, a análise e interpretação exigem tempo e 
esforço e não existe aqui um método que seja o melhor. Na essência, 
elas implicam na imersão do próprio pesquisador no corpus do texto. 
No processo de ler e reler, as técnicas tradicionais empregadas, em 
geral com um lápis ou outros recursos simples (canetas que realcem 
o texto), incluem: marcar e realçar, acrescentando notas e comentá- 
rios ao texto, cortar e colar, identificação da concordância no con- 
texto de certas palavras, formas ou representação gráfica dos assun- 
tos, fichas de anotações ou fichários de notas, e finalmente análise 
temática. Ao ler as transcrições, são relembrados aspectos da entre- 
vista que vão além das palavras e o pesquisador quase que revive a 
entrevista. Esta é uma parte essencial do processo e é por isso que é 
muito difícil analisar entrevistas feitas por outras pessoas. 

Um procedimento proveitoso é construir uma matriz com os ob- 
jetivos e finalidades da pesquisa colocados como temas no título das 
colunas, e o que cada entrevistado (grupo) diz, como se fossem as li- 
nhas. Isto estrutura os dados, juntando as respostas de um modo 
acessível. Em uma coluna final se acrescentam notas e interpreta- 
ções preliminares. 

À medida que as transcrições são lidas e relidas, tome nota das 
idéias que vêm à mente. Conserve sempre à sua frente as finalidades 
e os objetivos da pesquisa, procure padrões e conexões, tente desco- 
brir um referencial mais amplo que vá além do detalhe particular. 
As vezes, trabalhe rapidamente e com imaginação, outras vezes tra- 
balhe metodicamente, examinando cuidadosamente as seções do 
texto em relação a tópicos específicos. Vá em busca de contradições, 
da maneira como as atitudes e opiniões se desenvolvem nas entrevis- 
tas, e de clássicas racionalizações. 



— 85 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A análise não é um processo puramente mecânico. Ela depende 
de intuições criativas, que podem muito bem ocorrer quando o pes- 
quisador está falando com um amigo ou colega, ou naqueles mo- 
mentos de reflexão ao dirigir, caminhar ou tomando um banho. 

A medida que a interpretação vai se processando, retorne ao ma- 
terial bruto, tanto para as transcrições quanto para as gravações. 
Algumas vezes, um único comentário assumirá repentinamente um 
significado importante e irá sugerir um novo modo de olhar para as 
entrevistas; outras vezes, os dados podem reforçar a análise que está 
sendo feita. É vital garantir que toda interpretação esteja enraizada 
nas próprias entrevistas, de tal modo que, quando a análise é feita, o 
corpus pode ser trazido para justificar as conclusões. 

Programa computadorizado para análise qualitativa de informações 
(Computer-assisted Qualitative Data Analysis Software - CAQDAS) 

Desenvolvimentos recentes de software implementam as técni- 
cas tradicionais de análise de textos em uma interface com o uso 
proveitoso do computador. Muitos dos elementos destes desenvolvi- 
mentos de software provieram de processadores de texto padrão (a 
função de cortar e colar, por exemplo). Mas o importante é que os 
pacotes mais avançados oferecem aspectos adicionais, muitas vezes 
orientados teoricamente, que vão além de meras manipulações do 
texto, em direção a uma facilitação da interpretação. Funções comu- 
mente acessíveis incluem: 

Criação de memorandos: acrescenta comentários ao processo de análise. 

Codificação, etiquetação, rotulação: identifica unidades similares do 
texto. 

Recuperação (retrieving): encontra unidades na mesma categoria. 

Ligação: texto-texto, código-texto, memorando-texto, memoran- 
do-código, código-código. 

Procura booleana: encontra combinações específicas de códigos tais 
como relações “e”, “ou”, “não”. 

Interface gráfica: representa as relações entre códigos e textos. 

Comparações entre textos de diferentes origens: categorias sociais, séries 
temporais. 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



Os principais resultados do CAQDAS são os seguintes: primeira- 
mente, codificar, cortar e colar produzem textos impressos de todas 
as passagens do texto que se refiram à mesma categoria, por exem- 
plo, códigos do tema, códigos do entrevistado e aspectos formais. 
Isto fornece uma síntese de todos os elementos relevantes do texto 
que pertençam a um código específico de interesse. Esta forma de 
produto é uma maneira eficiente de representar os elementos textu- 
ais, de tal modo que o pesquisador pode ilustrar sua interpretação 
com citações selecionadas. 

A interface gráfica e/ou o mapeamento cognitivo oferece a opor- 
tunidade de desenvolver uma representação gráfica da estrutura de 
relações entre os códigos no texto. Ela pode ser hierárquica, usando 
categorias superordenadas e subordinadas interligadas, ou pode en- 
volver diferentes formas de ligação, tais como “causal”, “associati- 
va”, “contraditória” e outras. A representação gráfica do texto é o lu- 
gar onde aspectos do texto e preconcepções teóricas se encontram 
em um procedimento formal e interativo. 

A maioria dos pacotes de software para análise quantitativa pro- 
duz um resultado opcional de freqüências de código, que pode ser 
introduzido em uma posterior análise estatística, por exemplo, no 
SPSS. Esta facilidade fornece uma ligação entre os enfoques qualita- 
tivo e quantitativo e propicia a oportunidade de abordagens como 
traçar perfis, tabulações cruzadas e análise de correspondência. Há, 
na literatura acadêmica, muitos exemplos interessantes de interpre- 
tações complementares obtidas através de análise qualitativa e nu- 
mérica. Uma característica destes pacotes de software é que eles 
abrem novas opções, sem fechar as antigas. 

Há muitos pacotes disponíveis como o CAQDAS. Todos exigem 
algum tempo para se poder manejá-los, mas o esforço pode valer a 
pena, particularmente com um corpus de texto médio ou grande. 
Dois destes pacotes populares são o NUD*IST, baseado na teoria 
fundamentada dos interacionistas simbólicos, e o ATLAS/ti, que é 
também compatível com a Teoria Fundamentada, mas oferece, 
além disso, uma função de interface gráfica, valendo-se das idéias da 
teoria da memória semântica. O CAQDAS irá fazer, no mínimo, o 
que os pesquisadores sempre fizeram, mas fará isso mais sistematica- 
mente e de forma mais eficiente. Em vez de ter sistemas de cartões e 
canetas para marcar o texto, o computador mantém o sistema de fi- 
chas, e permite modificações e mudanças na análise com relativa- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



mente menos esforço. Um possível desenvolvimento destas novas 
ferramentas será que os procedimentos padrão para lidar com da- 
dos textuais se tornem um lugar comum e ofereçam um referencial 
dentro do qual se podem definir padrões básicos de qualidade e ava- 
liação para pesquisa qualitativa. 

É necessário, contudo, uma palavra de precaução. Seria desas- 
troso cair na armadilha do “mito do computador”, um pressuposto 
de que pacotes de software irão substituir as habilidades e sensibili- 
dades do pesquisador. Os computadores não farão nunca o trabalho 
intuitivo e criativo que é parte essencial da análise qualitativa. No 
máximo, eles irão apoiar o processo e oferecer uma representação 
do resultado da análise. Devido ao fato de que os pacotes de compu- 
tador possuem muitas possibilidades, eles contêm o perigo de que o 
pesquisador fique absorvido na tecnologia e perca a visão do texto. 



Passos na entrevista qualitativa 

Note-se que na pesquisa concreta estes passos não estão em uma 
seqüência linear. O processo de pesquisa é circular e reflexivo. Por 
exemplo, depois de algumas entrevistas, tanto o tópico guia, como 
a seleção dos entrevistados pode mudar. Do mesmo modo, a análise 
é parte do contínuo processo de pesquisa. 

1 . Prepare o tópico guia. 

2. Selecione o método de entrevista: individual, grupai ou uma 
combinação dos dois. 

3. Delineie uma estratégia para a seleção dos entrevistados. 

4. Realize as entrevistas. 

5. Transcreva as entrevistas. 

6. Analise o corpus do texto. 



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3. Entrevistas individuais e grupais 



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— 89 — 




4 

Entrevista narrativa 



Sandra Jovchelovitch & Martin W. Bauer 



Palavras-chave: fala conclusiva; narrativa principal; teoria pró- 
pria Eigentheory, narrativa; questões exmanentes e imanentes; nar- 
rativa e representação; texto indexado e não indexado; entrevista 
narrativa; informante; fase de questionamento; tópico inicial; es- 
quema autogerador; trajetórias - individuais e coletivas. 



O estudo de narrativas conquistou uma nova importância nos úl- 
timos anos. Este renovado interesse em um tópico antigo - interesse 
com narrativas e narratividade tem suas origens na Poética de Aristó- 
teles - está relacionado com a crescente consciência do papel que o 
contar histórias desempenha na conformação de fenômenos sociais. 
No despertar desta nova consciência, as narrativas se tornaram um 
método de pesquisa muito difundido nas ciências sociais. A discus- 
são sobre narrativas vai, contudo, muito além de seu emprego como 
método de investigação. A narrativa como uma forma discursiva, 
narrativas como história, e narrativas como histórias de vida e histó- 
rias societais, foram abordadas por teóricos culturais e literários, lin- 
güistas, filósofos da história, psicólogos e antropólogos. 

Este capítulo trata do emprego de narrativas na investigação so- 
cial, discutindo alguns elementos da teoria da narrativa e apresentan- 
do a entrevista narrativa como uma técnica específica de coleta de da- 
dos, em particular no formato sistematizado por Schütze (1977; 1983; 
1992). Na seqüência, apresentamos as questões teóricas relacionadas 
às narrativas, e apresentamos a entrevista narrativa como um método 
de geração de dados, discutindo em detalhe o procedimento, a indi- 
cação para seu uso e os possíveis problemas ligados a esta técnica. 



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4. Entrevista narrativa 



Concluímos com uma discussão sobre o espinhoso problema episte- 
mológico do que, de fato, as narrativas nos contam. 

Questões teóricas 

Não há experiência humana que não possa ser expressa na for- 
ma de uma narrativa. Como salienta Roland Barthes: 

A narrativa está presente no mito, lenda, fábula, conto, novela, 
epopéia, história, tragédia, drama, comédia, mímica, pintura ( pen- 
semos na Santa Ursula de Carpaccio), vitrais de janelas, cinema, 
histórias em quadrinho, notícias, conversação. Além disso, sob esta 
quase infinita diversidade de formas, a narrativa está presente em 
cada idade, em cada lugar, em cada sociedade; ela começa com a 
própria história da humanidade e nunca existiu, em nenhum lu- 
gar e em tempo nenhum, um povo sem narrativa. Não se impor- 
tando com boa ou má literatura, a narrativa é internacional, 
trans-histórica, transcultural: ela está simplesmente ali, como a 
própria vida (1993: 251-2). 

Na verdade, as narrativas são infinitas em sua variedade, e nós as 
encontramos em todo lugar. Parece existir em todas as formas de 
vida humana uma necessidade de contar; contar histórias é uma for- 
ma elementar de comunicação humana e, independentemente do 
desempenho da linguagem estratificada, é uma capacidade univer- 
sal. Através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colo- 
cam a experiência em uma seqüência, encontram possíveis explica- 
ções para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que cons- 
troem a vida individual e social. Contar histórias implica estados in- 
tencionais que aliviam, ou ao menos tornam familiares, aconteci- 
mentos e sentimentos que confrontam a vida cotidiana normal. 

Comunidades, grupos sociais e subculturas contam histórias com 
palavras e sentidos que são específicos à sua experiência e ao seu 
modo de vida. O léxico do grupo social constitui sua perspectiva de 
mundo, e assume-se que as narrativas preservam perspectivas parti- 
culares de uma forma mais autêntica. Contar histórias é uma habili- 
dade relativamente independente da educação e da competência lin- 
güística; embora a última seja desigualmente distribuída em cada po- 
pulação, a capacidade de contar história não o é, ou ao menos é em 
grau menor. Um acontecimento pode ser traduzido tanto em termos 
gerais como em termos indexados. Indexados significa que a referên- 
cia é feita a acontecimentos concretos em um lugar e em um tempo. 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Narrações são ricas de colocações indexicadas, a) porque elas se refe- 
rem à experiência pessoal, e b) porque elas tendem a ser detalhadas 
com um enfoque nos acontecimentos e ações. A estrutura de uma nar- 
ração é semelhante à estrutura da orientação para a ação: um contex- 
to é dado; os acontecimentos são seqüenciais e terminam em um de- 
terminado ponto; a narração inclui um tipo de avaliação do resultado. 
Situação, colocação do objetivo, planejamento e avaliação dos resulta- 
dos são constituintes das ações humanas que possuem um objetivo. A 
narração reconstrói ações e contexto da maneira mais adequada: ela 
mostra o lugar, o tempo, a motivação e as orientações do sistema sim- 
bólico do ator (Schütze, 1977; Bruner, 1990). 

O ato de contar uma história é relativamente simples. Conforme 
Ricoeur (1980), alguém coloca um número de ações e experiências 
em uma seqüência. Essas são as ações de determinado número de 
personagens, e esses personagens agem a partir de situações que 
mudam. As mudanças trazem à luz elementos da situação e dos per- 
sonagens que estavam previamente implícitos. Com isso, eles exi- 
gem que se pense, ou que se aja, ou ambos. Contar histórias implica 
duas dimensões: a dimensão cronológica, referente à narrativa 
como uma seqüência de episódios, e a não cronológica, que implica 
a construção de um todo a partir de sucessivos acontecimentos, ou a 
configuração de um “enredo”. O enredo é crucial para a constitui- 
ção de uma estrutura de narrativa. É através do enredo que as unida- 
des individuais (ou pequenas histórias dentro de uma história maior) 
adquirem sentido na narrativa. Por isso a narrativa não é apenas 
uma listagem de acontecimentos, mas uma tentativa de ligá-los, tan- 
to no tempo, como no sentido. Se nós considerarmos os aconteci- 
mentos isolados, eles se nos apresentam como simples proposições 
que descrevem acontecimentos independentes. Mas se eles estão es- 
truturados em uma história, as maneiras como eles são contados 
permitem a operação de produção de sentido do enredo. É o enredo 
que dá coerência e sentido à narrativa, bem como fornece o contexto 
em que nós entendemos cada um dos acontecimentos, atores, des- 
crições, objetivos, moralidade e relações que geralmente constituem 
a história. Os enredos operam através de funções específicas, que 
servem para estruturar e configurar vários acontecimentos em uma 
narrativa. Primeiro, é o enredo de uma narrativa que define o espa- 
ço de tempo que marca o começo e o fim de uma história. Nós sabe- 
mos que a vida humana, e a vasta maioria dos fenômenos sociais, flu- 



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4. Entrevista narrativa 



em sem inícios ou fins precisos. Mas a fim de dar sentido aos aconte- 
cimentos da vida, e compreender o que está acontecendo, é impor- 
tante demarcar os inícios e os fins. Em segundo lugar, o enredo for- 
nece critérios para a seleção dos acontecimentos que devem ser in- 
cluídos na narrativa, para a maneira como esses acontecimentos são 
ordenados em uma seqüência que vai se desdobrando até a conclu- 
são da história, e para o esclarecimento dos sentidos implícitos que 
os acontecimentos possuem como contribuições à narrativa como 
um todo. Decidir o que deve e o que não deve ser dito, e o que deve 
ser dito antes, são operações relacionadas ao sentido que o enredo 
dá à narrativa. Neste sentido, as narrativas se prolongam além das 
sentenças e dos acontecimentos que as constituem; estruturalmente, 
as narrativas partilham das características da sentença sem nunca 
poderem ser reduzidas a simples soma de suas sentenças ou aconte- 
cimentos que as constituem. Nesta mesma perspectiva, o sentido 
não está no “fim” da narrativa; ele permeia toda a história. Deste 
modo, compreender uma narrativa não é apenas seguir a seqüência 
cronológica dos acontecimentos que são apresentados pelo conta- 
dor de histórias: é também reconhecer sua dimensão não cronológi- 
ca, expressa pelas funções e sentidos do enredo. 

A entrevista narrativa 

A entrevista narrativa (daqui em diante, EN) tem em vista uma 
situação que encoraje e estimule um entrevistado (que na EN é cha- 
mado um “informante”) a contar a história sobre algum aconteci- 
mento importante de sua vida e do contexto social. A técnica recebe 
seu nome da palavra latina narrare, relatar, contar uma história. Em 
um manuscrito não publicado, Schütze (1977) sugeriu uma sistema- 
tização dessa técnica. Sua idéia básica é reconstruir acontecimentos 
sociais a partir da perspectiva dos informantes, tão diretamente 
quanto possível. Até hoje, nós usamos entrevistas narrativas para re- 
construir as perspectivas do informante em dois estudos: primeiro, 
para reconstruir as perspectivas dos atores em um controvertido 
projeto para o desenvolvimento de um software em um contexto 
corporativo (Bauer, 1991; 1996; 1997); e segundo, para investigar 
representações da vida pública no Brasil (Jovchelovitch, 2000). 
Experiências positivas nos encorajaram a recomendar a técnica e 
fazer a sistematização de Schütze acessível à língua inglesa, com al- 
guma elaboração. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Esta versão específica de entrevista narrativa não se tornou aces- 
sível em inglês, embora escritos sobre narrativas sejam abundantes 
em diferentes versões. Muitos escritos sobre “narrativas” possuem 
um enfoque analítico, enfatizando as características estruturais e o 
significado filosófico das narrativas (Riesman, 1993; Barthes, 1993; 
Bruner, 1990; Mitchell, 1980; Johnson & Mandler, 1980; Kintsch & 
van Dijk, 1978; Propp, 1928). A força da sugestão de Schütze é uma 
proposta sistemática de criar narrativas com fins de pesquisa social. 
O manuscrito de Schütze de 1977 permanece sem ser publicado; ele 
se difundiu largamente como uma literatura não oficial e se tornou o 
foco de um verdadeiro método de pesquisa em comunidade na Ale- 
manha durante a década de 80. A idéia original se desenvolveu a 
partir de um projeto de pesquisa sobre estruturas de poder nas co- 
munidades locais. 

Narrativa como um esquema autogerador: “era uma vez” 

O contar histórias parece seguir regras universais que guiam o 
processo de produção da história. Schütze (1977) descreve como 
“exigências inerentes da narração” (Zugzwaenge des Erzaehlens) o 
que outros chamam de “esquema da história”, “convenção narrati- 
va” ou “gramática da história” (Johnson & Mandler, 1980; Kintsch 
& van Dijk, 1978; Labov, 1972). Um esquema estrutura um processo 
semi-autônomo, ativado por uma situação predeterminada. A nar- 
ração é então eliciada na base de provocações específicas e, uma vez 
que o informante tenha começado, o contar histórias irá sustentar o 
fluxo da narração, fundamentando-se em regras tácitas subjacentes. 

O contar histórias segue um esquema autogerador com três 
principais características, como a seguir: 

Textura detalhada: se refere à necessidade de dar informação deta- 
lhada a fim de dar conta, razoavelmente, da transição entre um 
acontecimento e outro. O narrador tende a fornecer tantos detalhes 
dos acontecimentos quantos forem necessários para tornar a transi- 
ção entre eles plausível. Isto é feito levando o ouvinte em considera- 
ção. A história tem de ser plausível para um público, de outra manei- 
ra não seria história. Quanto menos o ouvinte conhece, mais deta- 
lhes serão dados. O contar histórias está próximo dos acontecimen- 
tos. Ele dará conta do tempo, lugar, motivos, pontos de orientação, 
planos, estratégias e habilidades. 



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4. Entrevista narrativa 



Fixação da relevância: o contador de história narra aqueles aspectos 
do acontecimento que são relevantes, de acordo com sua perspectiva 
de mundo. A explicação dos acontecimentos é necessariamente sele- 
tiva. Ela se desdobra ao redor de centros temáticos que refletem o 
que o narrador considera importante. Estes temas representam sua 
estrutura de relevância. 

Fechamento da Gestalt: um acontecimento central mencionado na 
narrativa tem de ser contado em sua totalidade, com um começo, 
meio e fim. O fim pode ser o presente, se os acontecimentos concre- 
tos ainda não terminaram. Esta estrutura tríplice de uma conclusão 
faz a história fluir, uma vez começada: o começo tende para o meio, 
e o meio tende para o fim. 

Para além do esquema pergunta-resposta 

A entrevista narrativa é classificada como um método de pes- 
quisa qualitativa (Lamnek, 1989; Hatch & Wisnieswski, 1995; Ries- 
man, 1993; Flick, 1998). Ela é considerada uma forma de entrevis- 
ta não estruturada, de profundidade, com características específi- 
cas. Conceitualmente, a idéia da entrevista narrativa é motivada 
por uma crítica do esquema pergunta-resposta da maioria das en- 
trevistas. No modo pergunta-resposta, o entrevistador está impon- 
do estruturas em um sentido tríplice: a) selecionando o tema e os 
tópicos; b) ordenando as perguntas; c) verbalizando as perguntas 
com sua própria linguagem. 

Para se conseguir uma versão menos imposta e por isso mais “vá- 
lida” da perspectiva do informante, a influência do entrevistador 
deve ser mínima e um ambiente deve ser preparado para se conse- 
guir esta minimização da influência do entrevistador. As regras de 
execução da EN restringem o entrevistador. A EN vai mais além que 
qualquer outro método ao evitar uma pré-estruturação da entrevis- 
ta. E o empreendimento mais notável para superar o tipo de entre- 
vista baseado em pergunta-resposta. Ela emprega um tipo específico 
de comunicação cotidiana, o contar e escutar história, para conse- 
guir este objetivo. 

O esquema de narração substitui o esquema pergunta-resposta 
que define a maioria das situações de entrevista. O pressuposto subja- 
cente é que a perspectiva do entrevistado se revela melhor nas histórias 
onde o informante está usando sua própria linguagem espontânea na 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



narração dos acontecimentos. Seria, contudo, ingênuo afirmar que a 
narração não possui estrutura. Uma narrativa está formalmente es- 
truturada; como apontamos acima, a narração segue um esquema au- 
togerador. Todo aquele que conta uma boa história, satisfaz às regras 
básicas do contar histórias. Aqui surge o paradoxo da narração: são as 
exigências das regras tácitas que libertam o contar histórias. 

A técnica é sensível a dois elementos básicos da entrevista, como 
apontados por Farr (1982): ela contrasta diferentes perspectivas, e 
leva a sério a idéia de que a linguagem, assim como o meio de troca, 
não é neutro, mas constitui uma cosmovisão particular. A avaliação 
da diferença de perspectivas, que pode estar tanto entre o entrevis- 
tador e o informante, quanto entre diferentes informantes, é central 
à técnica. O entrevistador é alertado para que evite cuidadosamente 
impor qualquer forma de linguagem não empregada pelo informan- 
te durante a entrevista. 

A técnica de eliciar informações 

Como técnica de entrevista, a EN consiste em uma série de re- 
gras sobre: como ativar o esquema da história; como provocar narra- 
ções dos informantes; e como, uma vez começada a narrativa, con- 
servar a narração andando através da mobilização do esquema au- 
togerador. A história se desenvolve a partir de acontecimentos reais, 
uma expectativa do público e as manipulações formais dentro do 
ambiente. As regras que se seguem são uma mistura da proposta de 
Schütze e nossa elaboração pessoal. 

A Tabela 4.1 sintetiza o conceito básico de EN e suas regas de 
procedimento. A entrevista narrativa se processa através de quatro 
fases: ela começa com a iniciação, move-se através da narração e da 
fase de questionamento e termina com a fase da fala conclusiva. Para 
cada uma dessas fases, é sugerido determinado número de regras. A 
função destas regras não é tanto encorajar uma adesão cega, mas 
oferecer guia e orientação para o entrevistador, a fim de fazer com 
que suija uma narração rica sobre um tópico de interesse, evitando 
os perigos do esquema pergunta-resposta de entrevista. O segui- 
mento destas regras levará certamente a uma situação isenta de 
constrangimentos, e manterá a disposição do informante de contar 
uma história sobre acontecimentos importantes. 



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4. Entrevista narrativa 



Tabela 4.1 - Fases principais da entrevista narrativa 


Fases 


Regras 


Preparação 


Exploração do campo 
Formulação de questões exmanentes 


1 . Iniciação 


Formulação do tópico inicial para narração 
Emprego de auxílios visuais 


2. Narração central 


Não interromper 

Somente encorajamento não verbal para continuar a 
narração 

Esperar para os sinais de finalização ("coda") 


3. Fase de perguntas 


Somente "Que aconteceu então?" 

Não dar opiniões ou fazer perguntas sobre atitudes 

Não discutir sobre contradições 

Não fazer perguntas do tipo "por quê?" 

Ir de perguntas exmanentes para imanentes 


4. Fala conclusiva 


Parar de gravar 

São permitidas perguntas do tipo "por quê?" 

Fazer anotações imediata mente depois da entrevista 



Preparação da entrevista 

Preparar uma EN toma tempo. É necessário uma compreensão 
preliminar do acontecimento principal, tanto para deixar evidentes 
as lacunas que a EN deve preencher, quanto para se conseguir uma 
formulação convincente do tópico inicial central, designado a pro- 
vocar uma narração auto-sustentável. Primeiramente, o pesquisador 
necessita criar familiaridade com o campo de estudo. Isto pode im- 
plicar em ter de se fazer investigações preliminares, ler documentos 
e tomar nota dos boatos e relatos informais de algum acontecimento 
específico. Com base nestes inquéritos iniciais, e em seus próprios 
interesses, o pesquisador monta uma lista de perguntas exmanen- 
tes. Questões exmanentes refletem os interesses do pesquisador, 
suas formulações e linguagem. Distinguimos das questões exmanen- 
tes as questões imanentes: os temas, tópicos e relatos de aconteci- 
mentos que surgem durante a narração trazidos pelo informante. 
Questões exmanentes e imanentes podem se sobrepor totalmente, 
parcialmente ou não terem nada a ver umas com as outras. O ponto 
crucial da tarefa é traduzir questões exmanentes em questões imanentes, 
ancorando questões exmanentes na narração, e fazendo uso exclusi- 
vamente da própria linguagem do entrevistado. No decurso da en- 
trevista, a atenção do entrevistador deve estar focada em questões 
imanentes, no trabalho de tomar anotações da linguagem emprega- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



da, e em preparar perguntas para serem feitas posteriormente, em 
tempo adequado. 

Fase 1: iniciação 

O contexto da investigação é explicado em termos amplos ao in- 
formante. Deve-se pedir a ele a permissão para se gravar a entrevis- 
ta. Gravar é importante para se poder fazer uma análise adequada 
posteriormente. O procedimento da EN é então brevemente expli- 
cado ao informante: a narração sem interrupções, a fase de questio- 
namento e assim por diante. Na fase de preparação da EN, um tópi- 
co para narração já foi identificado. Deve-se ter em mente que o tó- 
pico inicial representa os interesses do entrevistador. Para ajudar na 
introdução do tópico inicial, podem ser empregados recursos visuais. 
Uma linha do tempo, representando esquematicamente o começo e 
o fim do acontecimento em questão, é um exemplo possível. O nar- 
rador, neste caso, irá enfrentar o problema de segmentar o tempo 
entre o começo e o fim da história. 

A introdução do tópico central da EN deve deslanchar o proces- 
so de narração. A experiência mostra que, a fim de eliciar uma histó- 
ria que possa ir adiante, várias regras podem ser empregadas como 
orientações para formular o tópico inicial: 

• O tópico inicial necessita fazer parte da experiência do infor- 
mante. Isso irá garantir seu interesse, e uma narração rica em 
detalhes. 

• O tópico inicial deve ser de significância pessoal e social, ou 
comunitária. 

• O interesse e o investimento do informante no tópico não de- 
vem ser mencionados. Isso é para evitar que se tomem posi- 
ções ou se assumam papéis já desde o início. 

• O tópico deve ser suficientemente amplo para permitir ao in- 
formante desenvolver uma história longa que, a partir de si- 
tuações iniciais, passando por acontecimentos passados, leve à 
situação atual. 

• Evitar formulações indexadas. Não referir datas, nomes ou lu- 
gares. Esses devem ser trazidos somente pelo informante, como 
parte de sua estrutura relevante. 



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4. Entrevista narrativa 



Fase 2: a narração central 

Quando a narração começa, não deve ser interrompida até que 
haja uma clara indicação (“coda”), significando que o entrevistado se 
detém e dá sinais de que a história terminou. Durante a narração, o 
entrevistador se abstém de qualquer comentário, a não ser sinais não 
verbais de escuta atenta e encorajamento explícito para continuar a 
narração. O entrevistador pode, contudo, tomar notas ocasionais 
para perguntas posteriores, se isto não interferir com a narração. 

Restrinja-se à escuta ativa, ao apoio não verbal ou paralingüísti- 
co, e mostrando interesse (“hmm”, “sim”, “sei”). Enquanto escuta, 
pergunte-se mentalmente, ou escreva no papel, as perguntas para a 
próxima fase da entrevista. 

Quando o informante indica o coda no final da história, investi- 
gue por algo mais: “É tudo o que você gostaria de me contar?” Ou 
“Haveria ainda alguma coisa que você gostaria de dizer?” 

Fase 3: fase de questionamento 

Quando a narração chega a um fim “natural”, o entrevistador 
inicia a fase de questionamento. Este é o momento em que a escuta 
atenta do entrevistador produz seus frutos. As questões exmanentes 
do entrevistador são traduzidas em questões imanentes, com o em- 
prego da linguagem do informante, para completar as lacunas da 
história. A fase de questionamento não deve começar até que o en- 
trevistador comprove com clareza o fim da narrativa central. Na fase 
de questionamento, três regras básicas se aplicam: 

• Não faça perguntas do tipo “por quê?”; faça apenas perguntas 
que se refiram aos acontecimentos, como: “O que aconteceu 
antes/depois/então?” Não pergunte diretamente sobre opi- 
niões, atitudes ou causas, pois isto convida a justificações e ra- 
cionalizações. Toda narrativa irá incluir determinadas justifi- 
cações e racionalizações; contudo, é importante não investi- 
gá-las, mas ver como elas aparecem espontaneamente. 

• Pergunte apenas questões imanentes, empregando somente 
as palavras do informante. As perguntas se referem tanto aos 
acontecimentos mencionados na história, quanto a tópicos do 
projeto de pesquisa. Traduza questões exmanentes em ques- 
tões imanentes. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



• Para evitar um clima de investigação detalhada, não aponte con- 
tradições na narrativa. Esta é também uma precaução contra in- 
vestigar a racionalização, além da que ocorre espontaneamente. 

A fase de questionamento tem como finalidade eliciar material 
novo e adicional além do esquema autogerador da história. O entre- 
vistador pergunta por maior “textura concreta” e “fechamento da 
Gestalt”, mantendo-se dentro das regras. 

As fases 1, 2 e 3 são gravadas para transcrição literal, com o con- 
sentimento dos informantes. 



Fase 4: fala conclusiva 

No final da entrevista, quando o gravador estiver desligado, mui- 
tas vezes acontecem discussões interessantes na forma de comentá- 
rios informais. Falar em uma situação descontraída, depois do 
“show”, muitas vezes traz muita luz sobre as informações mais for- 
mais dadas durante a narração. Esta informação contextuai se mos- 
tra, em muitos casos, muito importante para a interpretação dos da- 
dos, e pode ser crucial para a interpretação contextuai das narrati- 
vas do informante. 

Durante esta fase, o entrevistador pode empregar questões do 
tipo “por quê?” Isto pode ser uma porta de entrada para a análise 
posterior, quando as teorias e explicações que os contadores de his- 
tórias têm sobre si mesmos (“eigentheories”) se tornam o foco de 
análise. Além do mais, na última fase, o entrevistador pode também 
estar em uma posição de avaliar o nível de (des)confiança percebido 
no informante, o que se constitui em uma informação importante 
para a interpretação da narração no seu contexto. 

A fim de não perder esta importante informação, é aconselhável 
ter um diário de campo, ou um formulário especial para sintetizar os 
conteúdos dos comentários informais em um protocolo de memó- 
ria, imediatamente depois da entrevista. Se alguém organiza uma 
série de EN, é útil planejar o tempo entre as entrevistas para escre- 
ver os comentários informais e outras impressões. 



Vantagens e fraquezas da entrevista narrativa 

Os pesquisadores que fazem uso da entrevista narrativa aponta- 
ram dois problemas principais da técnica: a) as expectativas incon- 



fACULDADE DE ENGENHARIA 

DE GüARATINGUETA — 100 

BIBLIOTECA 



2 17 16 




4. Entrevista narrativa 



troláveis dos informantes, que levantam dúvidas sobre o forte argu- 
mento da não-diretividade da EN, e b) o papel muitas vezes irrealís- 
tico e as regras exigidas para tais procedimentos. 

Expectativas incontroláveis na entrevista 

O entrevistador procura obter de cada entrevista uma narração 
completa dos acontecimentos que expresse uma perspectiva especí- 
fica. Ele, por conseguinte, se coloca como alguém que não sabe 
nada, ou muito pouco, sobre a história que está sendo contada, e que 
não possui nela interesses particulares. Cada participante, contudo, 
construirá hipóteses sobre o que o entrevistador quer ouvir, e o que 
ele provavelmente já sabe. Os informantes geralmente supõem que 
o entrevistador sabe algo sobre a história, e que eles não irão falar so- 
bre aquilo que ele já sabe, pois eles assumem isto como pacífico. É 
muito problemático montar um “pretenso jogo” de ingenuidade, es- 
pecialmente com respeito a uma série de entrevistas sobre as quais o 
informante sabe que ele não é o primeiro a ser entrevistado. 

Como foi visto acima, cada informante construirá hipóteses so- 
bre o que o entrevistador gostaria de ouvir. O entrevistador deve, 
pois, ser sensível ao fato de que a história que ele obterá é, até certo 
ponto, uma comunicação estratégica, isto é, uma narrativa com o 
propósito tanto de agradar ao entrevistador, quanto de afirmar de- 
terminado ponto, dentro de um contexto político complexo que 
pode estar sendo discutido. Poderá ser difícil, se não impossível, ob- 
ter uma narrativa de um político que não seja uma comunicação es- 
tratégica. O informante poderá tentar defender-se de um conflito, 
ou poderá colocar-se dentro do conflito, mas sob uma luz favorável 
com respeito aos acontecimentos. 

A interpretação da EN deve levar em consideração tais circuns- 
tâncias possíveis, inevitáveis na própria situação da entrevista. A nar- 
ração em uma EN é uma função da situação como um todo, e deve 
ser interpretada à luz da situação em estudo, da estratégia presumi- 
da do narrador e das expectativas que o informante atribui ao entre- 
vistador. Independentemente do que o entrevistador diz, o infor- 
mante pode suspeitar de uma agenda oculta. Alternativamente, o in- 
formante pode confiar no entrevistador, não assumir uma agenda 
oculta, e fornecer uma autêntica narrativa dos acontecimentos, mas 
pode, ao mesmo tempo, transformar a entrevista em uma arena 
para promover seu ponto de vista, com fins mais amplos do que os 
da agenda de pesquisa. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A textura da narrativa dependerá, em grande parte, do pré-co- 
nhecimento que o informante atribui ao entrevistador. Fazer o pa- 
pel de ignorante pode ser um requisito irrealístico da parte do en- 
trevistador. Cada entrevista exige que o entrevistador se apresente 
como ignorante, quando na verdade seu conhecimento real está 
crescendo de uma entrevista a outra. A credibilidade desta preten- 
são possui limites, e o conhecimento do entrevistador não poderá 
permanecer oculto por muito tempo. 

Sob tais circunstâncias, Witzel (1982) se mostra descrente da afir- 
mação de que as estruturas de relevância dos informantes são revela- 
das pela narração. Toda conversação é guiada por “expectativas de 
expectativas”. Mesmo em casos onde o entrevistador se abstém de 
formular perguntas e respostas, o informante ativo irá lhe contar a 
história que irá agradar ou frustrar o entrevistador, ou irá usar o en- 
trevistador para fins que vão além do seu controle. Em todos os ca- 
sos, as estruturas de relevância do informante podem permanecer 
ocultas. A narração reflete a interpretação da situação de entrevista. 
Um contar histórias estratégico não pode ser descartado. 

Regras irrealísticas 

As regras da EN são formuladas para guiar o entrevistador. Elas 
são construídas para preservar a espontaneidade do informante em 
narrar alguns acontecimentos convencionais e problemas em estu- 
do. A questão principal é se tais regras são tão úteis quanto preten- 
dem ser. Novamente Witzel (1982) tem dúvidas se o formato prescri- 
to do “tópico inicial” é, de fato, aplicável para qualquer informante. 
O entrevistador se apresenta como se ele não soubesse nada sobre o 
tópico em estudo. Os informantes podem ver esta atitude como se 
fosse um truque, e esta percepção irá interferir em sua cooperação. 

A maneira como o entrevistador inicia sua entrevista implica na 
qualidade da entrevista. Este fato coloca muita ênfase no início da 
entrevista. A narração poderá se tornar um produto da maneira 
como o entrevistador se comporta. A fase de iniciação é difícil de ser 
padronizada e se apóia totalmente nas habilidades sociais do entre- 
vistador. Esta sensibilidade do método ao momento inicial pode ser 
causa de ansiedade e estresse para o entrevistador. Tal fato poderá 
trazer uma dificuldade para a aplicação da técnica da EN em um 
projeto de pesquisa com vários entrevistadores que possuem dife- 
rentes níveis de habilidades. Outro ponto de crítica se refere ao fato 



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4. Entrevista narrativa 



de que as regras da técnica de EN foram desenvolvidas dentro de 
um campo específico de estudo, que lida com políticas locais e pes- 
quisa biográfica. As regras apresentam sugestões que dão conta do 
problema da interação nestes estudos específicos, e podem não fun- 
cionar como se pretende em outras circunstâncias. Este é um proble- 
ma empírico que deve ser investigado ao se aplicar a EN em diferen- 
tes circunstâncias. Pouca pesquisa metodológica, contudo, foi feita 
além da descrição, ou de uma crítica generalizada da técnica. 

As regras da entrevista narrativa definem um procedimento de 
tipo ideal, que apenas poucas vezes pode ser conseguido. Elas servem 
como um padrão de aspiração. Na prática, a EN muitas vezes exige 
um compromisso entre a narrativa e o questionamento. As narrativas 
revelam as diversas perspectivas dos informantes sobre acontecimen- 
tos e sobre si mesmos, enquanto que perguntas padronizadas nos pos- 
sibilitam fazer comparações diretas percorrendo várias entrevistas so- 
bre o mesmo assunto. Além disso, uma entrevista pode percorrer vá- 
rias seqüências de narração e subseqüente questionamento. A intera- 
ção entre a narração e o questionamento pode ocasionalmente diluir 
as fronteiras entre a EN e a entrevista semi-estruturada. Como afirma 
Habermas (1991), mais que uma nova forma de entrevista, nós temos 
uma entrevista semi-estruturada enriquecida por narrativas. A ques- 
tão que surge, então, é se a multiplicação de rótulos para procedi- 
mentos com entrevista serve para algum propósito. Flick (1998) apro- 
veitou desta incerteza prática como uma oportunidade para desen- 
volver a “entrevista episódica” (veja Flick, cap. 5 deste volume) que 
pode ser uma forma mais realística de entrevista com elementos nar- 
rativos do que a EN no sentido puro de Schütze. 

Indicação diferencial para a entrevista de narrativa 

As narrativas são particularmente úteis nos seguintes casos: 

• Projetos que investigam acontecimentos específicos, especial- 
mente assuntos “quentes”, tais como junção de corporações, 
um projeto de desenvolvimento específico, ou políticas locais 
(Schütze, 1977). 

• Projetos onde variadas “versões” estão em jogo. Grupos sociais 
diferentes constroem histórias diferentes, e as maneiras como 
elas diferem são cruciais para se apreender a dinâmica plena dos 
acontecimentos. Diversas perspectivas podem realçar um eixo 
diferente, bem como uma outra seqüência nos acontecimentos 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



cronológicos. Além disso, diferença nas perspectivas pode esta- 
belecer uma configuração diferente na seleção dos acontecimen- 
tos que devem ser incluídos no conjunto da narrativa. 

• Projetos que combinem histórias de vida e contextos sócio-his- 
tóricos. Histórias pessoais expressam contextos societais e his- 
tóricos mais amplos, e as narrativas produzidas pelos indivídu- 
os são também constitutivas de fenômenos sócio-históricos es- 
pecíficos, nos quais as biografias se enraízam. Narrativas de 
guerra são clássicas neste ponto, como são também as narrati- 
vas de exílio político e de perseguição (Schütze, 1992). 

Embora o contar histórias seja uma competência universal e as 
narrativas possam ser usadas sempre que haja uma história a ser 
contada, nem toda situação social leva à produção de uma narrativa 
“confiável”. Um indicador bom e simples é a duração, ou a ausência 
da narrativa central no projeto de pesquisa. Entrevistas muito cur- 
tas, ou a ausência de narração, podem mostrar o fracasso do méto- 
do. Bauer (1996) realizou 25 entrevistas narrativas relacionadas a 
um projeto de desenvolvimento de um software controvertido. De 
um total de 309 minutos de narração, a duração média das narra- 
ções foi de cerca de 1 2 minutos, com uma escala que ia de 1 a 60 mi- 
nutos de narração ininterrupta. Isto mostra que a entrevista narrati- 
va não foi igualmente adequada para todos os informantes. Na ver- 
dade, quanto maior a distância entre o informante e o cerne da ação, 
menor a entrevista. Envolvimento direto e imediato nas atividades 
centrais do evento que está sendo contado parece ser um fator im- 
portante na produção de narrativas. Contudo, ceteris paribus, a au- 
sência de narrativas pode ser muito significativa. Este é o caso, por 
exemplo, quando alguns grupos específicos de indivíduos recusam 
produzir uma narração e, ao fazer isso, expressam uma posição defi- 
nida em relação aos acontecimentos (Jovchelovitch, 2000). 

É também importante levar em consideração problemas ligados 
ao desempenho do pesquisador. Há casos em que a formulação do 
tópico inicial é inadequada e ela não consegue engajar o contador 
de história. Em tais casos, uma reavaliação do desempenho do pes- 
quisador de acordo com as regras da EN pode ajudar a afastar ou su- 
perar esta fonte de erro. 

Além disso, existem situações sociais que podem levar tanto à 
subprodução, como à superprodução de narrativas (Bude, 1985; 
Rosenthal, 1991; Mitscherlich & Mitscherlich, 1977). Distinguimos 



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4. Entrevista narrativa 



ao menos três situações que podem levar à subprodução de narrati- 
vas, isto é, onde não há o que contar ou há pouco, independentemen- 
te da riqueza da experiência. Primeiro, pessoas que passaram por um 
trauma podem não estar em uma situação de verbalizar estas expe- 
riências. Do mesmo modo como uma narração pode ser terapêutica, 
ela pode também produzir uma renovação do sofrimento e da ansie- 
dade associados com a experiência que é narrada. Em segundo lugar, 
há comunidades que mantêm uma verdadeira cultura do silêncio, 
onde este é muito apreciado e mais importante que falar. Neste caso, 
o fluxo da narrativa pode ser muito breve, ou mesmo estar ausente. 
Finalmente, poderá haver situações em que os interesses de um gru- 
po de pessoas pode militar contra a produção de histórias. Neste caso, 
o silêncio é privilegiado devido a uma decisão política de não dizer 
nada. Esta pode ser uma estratégia generalizada de defesa, ou pode 
estar diretamente relacionada à desconfiança no pesquisador. 

Em relação à superprodução de narração, as seguintes situações 
devem ser levadas em consideração. Ansiedades neuróticas podem 
levar a um contar histórias compulsivo e mobilizar uma vívida imagi- 
nação com pouca fundamentação em acontecimentos reais ou na ex- 
periência. Esta superprodução pode servir a mecanismos de defesa e 
a evitar a confrontação com os temas reais em jogo. Antropólogos 
observaram que algumas comunidades chamam os contadores de 
história para dizer ao pesquisador o que a comunidade pensa que o 
pesquisador quer ou necessita ouvir. Isto implica algumas vezes a in- 
venção de narrativas fantásticas, que mistificam mais que revelam. 

Todas estas situações devem ser cuidadosamente avaliadas pelo 
pesquisador. Algumas narrações podem deslanchar respostas psico- 
lógicas inesperadas que não são controláveis pelo grupo de pesqui- 
sadores. Neste caso, como em todas as situações de pesquisa, consi- 
derações éticas devem estar sempre presentes. 

A análise de entrevistas narrativas 

A entrevista narrativa é uma técnica para gerar histórias; ela é 
aberta quanto aos procedimentos analíticos que seguem a coleta de 
dados. A seguir, apresentaremos brevemente três diferentes proce- 
dimentos que podem ajudar aos pesquisadores na análise das histó- 
rias coletadas durante a entrevista narrativa: a análise temática, a 
proposta do próprio Schütze e a análise estruturalista. 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Transcrição 

O primeiro passo na análise de narrativas é a conversão dos da- 
dos através da transcrição das entrevistas gravadas. O nível de deta- 
lhe das transcrições depende das finalidades do estudo. O quanto 
uma transcrição implica elementos que estejam além das meras pa- 
lavras empregadas varia de acordo com o que é exigido da pesquisa. 
Características para-lingüísticas, tais como o tom da voz ou as pau- 
sas, são transcritas a fim de que se possa estudar a versão das histó- 
rias não apenas quanto ao seu conteúdo mas também quanto a sua 
forma retórica. A transcrição, por mais cansativa que seja, é útil para 
se ter uma boa apreensão do material, e por mais monótono que o 
processo de transcrição possa ser, ele propicia um fluxo de idéias 
para interpretar o texto. É fortemente recomendado que os pesqui- 
sadores façam eles próprios ao menos algumas transcrições, sendo 
que este é concretamente o primeiro passo da análise. Se a transcri- 
ção é feita por alguma outra pessoa, especialmente em um contrato 
comercial, deve-se ter cuidado para assegurar a qualidade da trans- 
crição. A transcrição comercial para fins de mercado está muitas ve- 
zes abaixo da qualidade que é exigida quando o emprego de lingua- 
gens específicas é um tema de análise. 

A proposta de Schütze 

Schütze (1977; 1983) propõe seis passos para analisar narrativas. 
O primeiro é uma transcrição detalhada de alta qualidade do mate- 
rial verbal. O segundo passo implica uma divisão do texto em material 
indexado e não indexado. As proposições indexadas têm uma refe- 
rência concreta a “quem fez o que, quando, onde e por quê”, en- 
quanto que proposições não-indexadas vão além dos acontecimen- 
tos e expressam valores, juízos e toda forma de uma generalizada 
“sabedoria de vida”. Proposições não indexadas podem ser de dois 
tipos: descritivas e argumentativas. Descrições se referem a como os 
acontecimentos são sentidos e experienciados, aos valores e opi- 
niões ligadas a eles, e às coisas usuais e corriqueiras. A argumentação 
se refere à legitimação do que não é aceito pacificamente na história 
e a reflexões em termos de teorias e conceitos gerais sobre os aconte- 
cimentos. O terceiro passo faz uso de todos os componentes indexa- 
dos do texto para analisar o ordenamento dos acontecimentos para 
cada indivíduo, cujo produto Schütze chama de “trajetórias”. No 
quarto passo, as dimensões não-indexadas do texto são investigadas 



— 106 — 




4. Entrevista narrativa 



como ‘‘análise do conhecimento”. Aquelas opiniões, conceitos e teo- 
rias gerais, reflexões e divisões entre o comum e o incomum são a 
base sobre a qual se reconstroem as teorias operativas. Estas teorias 
operativas são então comparadas com elementos da narrativa, pois 
elas representam o auto-entendimento do informante. O quinto 
passo compreende o agrupamento e a comparação entre as trajetó- 
rias individuais. Isto leva ao último passo onde, muitas vezes através 
de uma derradeira comparação de casos, trajetórias individuais são 
colocadas dentro do contexto e semelhanças são estabelecidas. Este 
processo permite a identificação de trajetórias coletivas. 

Análise temática: construindo um referencial de codificação 

Recomenda-se um procedimento gradual de redução do texto 
qualitativo (veja, por exemplo, Mayring, 1983). As unidades do tex- 
to são progressivamente reduzidas em duas ou três rodadas de séries 
de paráfrases. Primeiro, passagens inteiras, ou parágrafos, são para- 
fraseados em sentenças sintéticas. Estas sentenças são posteriormen- 
te parafraseadas em algumas palavras-chave. Ambas as reduções 
operam com generalização e condensação de sentido. Na prática, o 
texto é colocado em três colunas; a primeira contém a transcrição, a 
segunda contém a primeira redução, e a terceira coluna contém ape- 
nas palavras-chave. 

A partir deste parafrasear, desenvolve-se um sistema de catego- 
rias com o qual todos os textos podem ser, em última análise, codifi- 
cados, caso necessário. Primeiramente, são criadas categorias para 
cada EN, posteriormente ordenadas em um sistema coerente de ca- 
tegorização geral para todas as ENs do projeto. Um sistema final de 
categorização somente pode ser decidido depois de revisões reitera- 
das. O produto final constitui uma interpretação das entrevistas, 
juntando estruturas de relevância dos informantes com as do entre- 
vistador. A fusão dos horizontes dos pesquisadores e dos informan- 
tes é algo que tem a ver com a hermenêutica. 

O processo de redução descrito acima pode levar à análise quan- 
titativa no sentido da análise de conteúdo clássica (veja Bauer, cap. 8 
deste volume). Uma vez o texto codificado, os dados podem também 
ser estruturados em termos de freqüências que mostram quem disse 
o que, quem disse coisas diferentes e quantas vezes foram ditas. A 
análise estatística para dados categoriais pode então ser aplicada. A 
análise de agrupamento (cluster) poderá fornecer tipos de conteú- 



— 107 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



dos narrativos. Resultados quantitativos podem ser extensamente 
ilustrados com citações das narrações originais. As perspectivas nar- 
rativas do acontecimento ou problema em estudo podem ser descri- 
tas e classificadas qualitativa e quantitativamente. A análise do con- 
teúdo é um enfoque possível; outro enfoque pode ser classificar ele- 
mentos formais da história. 

Análise estruturalista 

Uma análise estruturalista de narrativas focaliza os elementos for- 
mais das narrativas. A análise opera através de um sistema de combi- 
nações que inclui duas dimensões: uma é formada pelo repertório de 
possíveis histórias, do qual qualquer história acontecida é uma sele- 
ção, e a outra se refere às combinações particulares dos elementos da 
narrativa. Na dimensão paradigmática, ordenamos todos os possíveis 
elementos que aparecem nas histórias: acontecimentos, protagonis- 
tas, testemunhas, situações, começos, fins, crises, conclusões morais; 
na dimensão sintagmática, estes elementos particulares são organiza- 
dos em uma seqüência que pode ser comparada através de cada nar- 
rativa e relacionada a variáveis contextuais. Todo corpus específico de 
narrativas será mapeado nesta estrutura bidimensional. 

Falando de maneira geral, a análise de narrativas implica sempre 
a análise de aspectos cronológicos e não cronológicos da história. 
Narrativas são uma sucessão de eventos ou episódios que abrangem 
atores, ações, contextos e espaços temporais. A narração de eventos e 
episódios apresenta uma ordem cronológica e permite uma interpre- 
tação de como o tempo é usado pelos contadores de história. Os as- 
pectos não cronológicos de uma narrativa correspondem a explica- 
ções e razões encontradas por detrás dos acontecimentos, aos critérios 
implícitos nas seleções feitas durante a narrativa, aos valores e juízos 
ligados à narração e a todas as operações do enredo. Compreender 
uma história é captar não apenas como o desenrolar dos aconteci- 
mentos é descrito, mas também a rede de relações e sentidos que dá à 
narrativa sua estrutura como um todo. É função do enredo organizar 
os episódios em uma história coerente e significativa. É vital, por isso, 
identificar o enredo na análise de narrativas. 

Abell (1987; 1993) propõe uma representação gráfico-teórica para 
comparar narrativas. Ela inclui a ação de parafrasear os relatos em 
unidades que compreendem contextos, ações, omissões e efeitos. 
Num segundo passo, são construídos gráficos, ligando atores, ações 



— 108 — 



4. Entrevista narrativa 



e efeitos no tempo, para representar e para comparar formalmente 
cursos particulares de ações. Na verdade, o método se constitui em 
um formalismo matemático para lidar com dados qualitativos, sem 
ser necessário recorrer à estatística. 

Narrativa, realidade, representação 

Há uma série de questões que devem ser feitas sobre a relação 
entre narrativas e realidade, todas elas referentes às conexões entre 
o discurso e o mundo que está além dele. Deveríamos considerar 
toda narrativa como uma “boa” descrição do que está acontecendo? 
Deveríamos aceitar todo relato de um contador de história como vá- 
lido em relação ao que estamos investigando? E o que dizer de nar- 
rativas que estão claramente separadas da realidade dos aconteci- 
mentos? Como disse certa vez Castoriadis (1975), ao descrever a 
Torre Eiffel as pessoas tanto podem dizer “Esta é a Torre Eiffel”, ou 
“Esta é minha avó”. Como pesquisadores sociais, precisamos levar 
esta diferença em consideração. 

Este debate não é simples e abrange muitos ângulos. Nós pensa- 
mos que é importante refutar alguns excessos recentes que exagera- 
ram a autonomia da narrativa, do texto e da interpretação, enquan- 
to minimizavam o mundo objetivo. Mas nós também pensamos que 
é crucial levar em consideração a dimensão expressiva de toda peça 
narrativa, independentemente de sua referência ao que acontece na 
realidade. De fato, as próprias narrativas, mesmo quando produzem 
distorção, são parte de um mundo de fatos; elas são factuais como 
narrativas e assim devem ser consideradas. Mesmo narrações fantás- 
ticas são exemplos disso. A fim de respeitar tanto a dimensão ex- 
pressiva das narrativas (a representação do contador de histórias) e 
o problema da referência a um mundo além deles (a representação 
do mundo), nós sugerimos a divisão no processo de pesquisa em 
dois momentos, cada um deles respondendo a diferentes exigên- 
cias. Consideremos o caso hipotético em que a Torre Eiffel é descrita 
como “avó”. Se um informante produz tal descrição, isto de fato é as- 
sim, do ponto de vista da pesquisa social, apesar da tarefa do entre- 
vistador de eliciar o relato e conferi-lo com fidelidade (Blumen- 
feld-Jones, 1995). No primeiro momento, a tarefa do pesquisador 
social é escutar a narrativa de um modo desinteressado e reprodu- 
zi-la com todos os detalhes e considerações possíveis. Na verdade, 
extrema fidelidade em reproduzir as narrativas é um dos indicado- 



— 109 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



res de qualidade da entrevista de narrativa. A este primeiro momen- 
to do processo de pesquisa aplicam-se as proposições: 

• A narrativa privilegia a realidade do que é experienciado pelos 
contadores de história: a realidade de uma narrativa refere-se 
ao que é real para o contador de história. 

• As narrativas não copiam a realidade do mundo fora delas: elas 
propõem representações/interpretações particulares do mundo. 

• As narrativas não estão abertas à comprovação e não podem 
ser simplesmente julgadas como verdadeiras ou falsas: elas ex- 
pressam a verdade de um ponto de vista, de uma situação es- 
pecífica no tempo e no espaço. 

• As narrativas estão sempre inseridas no contexto sócio-históri- 
co. Uma voz específica em uma narrativa somente pode ser 
compreendida em relação a um contexto mais amplo: nenhu- 
ma narrativa pode ser formulada sem tal sistema de referentes. 

Este, contudo, não é o fim da história. O pesquisador social não 
apenas provoca e refere narrativas com o máximo de fidelidade e res- 
peito possíveis. Num segundo momento, o observador necessita dis- 
cutir a história da “avó”, por um lado, e a materialidade da Torre Eif- 
fel, por outro. Aqui, as narrativas e biografias devem ser situadas em 
relação às funções que elas possuem para o contador de história e em 
referência a um mundo além delas. Neste sentido, para o pesquisador 
social - um ouvinte e um observador - a história possui sempre dois 
lados. Ela tanto representa o indivíduo (ou uma coletividade), como 
se refere ao mundo além do indivíduo. Assim como precisamos ter 
muita sensibilidade para perceber as imaginações e distorções que 
configuram toda narrativa humana, precisamos também prestar aten- 
ção à materialidade de um mundo de histórias. Como Eco (1992, 43) 
observou em relação à tarefa da interpretação, “se existe algo a ser in- 
terpretado, a interpretação deve falar de algo que deve ser encontra- 
do em algum lugar e, de algum modo, respeitado”. Acreditamos que 
o mesmo é verdade em uma narrativa não-ficcional. 

A pergunta quase óbvia que surge desta situação refere-se a quem 
estabelece o que é verdade, e como nós sabemos se a história é fiel ou 
distorce os acontecimentos. A resposta está totalmente a cargo do 
pesquisador, que tenta tanto apresentar a narrativa com máxima fi- 
delidade (no primeiro momento), como organizar informação adicio- 
nal de fontes diferentes, para cotejar com material secundário e re- 



— 110 — 




4. Entrevista narrativa 



visar a literatura ou documentação sobre o acontecimento a ser in- 
vestigado. Antes de entrar em campo, necessitamos estar equipados 
com materiais adequados para que possamos compreender e dar 
sentido às histórias que coletamos. 



Passos da entrevista de narrativa 

1. Preparação. 

2. Início: começar gravando e apresentar o tópico inicial. 

3. A narração central: não fazer perguntas, apenas encorajamento 
não-verbal. 

4. Fase de questionamento: apenas questões imanentes. 

5. Fala conclusiva: parar de gravar e continuar a conversação infor- 
mal. 

6. Construir um protocolo de memórias da fala conclusiva. 



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— 113 — 




5 

Entrevista episódica 



Uwe Flick 



Palavras-chave: argumentação; narrativa; narrativa biográfi- 
ca; entrevista de narrativa; validação comunicativa; episódios re- 
petidos; técnica do incidente crítico; memória semântica e co- 
nhecimento; episódio; definição subjetiva; memória episódica e 
conhecimento. 



A pesquisa qualitativa foi desenvolvida e é aplicada dentro de 
uma variedade de tradições teóricas. Uma característica comum das 
diferentes tradições de pesquisa de ramos metodológicos da pesqui- 
sa qualitativa (a respeito de outras características comuns, ver Flick, 
1998a), é que quase todo método pode ser relacionado a duas ori- 
gens: a um enfoque teórico específico e também a um assunto espe- 
cífico para o qual o método foi desenvolvido. O método apresentado 
neste capítulo foi desenvolvido no contexto de um estudo sobre a re- 
presentação social da mudança tecnológica na vida cotidiana (Flick, 
1996). Este assunto pode ser caracterizado por muitos aspectos que 
influenciaram a elaboração do método. Primeiro, uma representa- 
ção social é uma forma de conhecimento social, o que significa que 
este conhecimento é partilhado por aqueles que são membros de um 
grupo social específico e que é diferente do conhecimento partilha- 
do em outros grupos sociais (Moscovici, 1988; ver Flick, 1998b para 
uma visão geral). Em segundo lugar, a mudança tecnológica tem um 
impacto em praticamente todas as dimensões da vida cotidiana e na 
vida de quase todas as pessoas, embora o grau e o tempo da aceita- 
ção e do emprego destas tecnologias possam variar. Em terceiro lu- 
gar, por um lado a mudança se dá em contextos situacionais concre- 
tos: alguém compra um computador e isto tem um impacto na ma- 
neira como ele passa a escrever. Por outro lado, tais pequenas mu- 



— 114 — 





5. Entrevista episódica 



danças vão se somando com o tempo em direção a uma mudança 
mais ou menos geral em alguns aspectos do dia-a-dia: a infância de 
hoje é completamente diferente da infância de épocas anteriores de- 
vido às muitas novas tecnologias e seus diferentes impactos. Estes 
impactos vão se somar a um impacto mais geral que é independente 
de situações particulares e que se torna parte do conhecimento em 
um sentido amplo. 

Para estudar esta situação, foi necessário desenvolver um méto- 
do sensível aos contextos situacionais concretos em que as pequenas 
mudanças ocorrem e ao acúmulo amplo, geral, de tais mudanças. O 
método deveria também facilitar comparações entre situações de di- 
ferentes grupos sociais. 

Conceitos subjacentes 

Psicologia narrativa 

A entrevista episódica se baseia em diversos pressupostos teóri- 
cos que podem ser buscados em diferentes campos da psicologia. 
Uma de suas raízes é a discussão sobre o uso de narrativas de pessoas 
para coletar informações dentro da ciência social (ver Flick, 1998a; 
Riesmann & Schütze, 1987; Riesmann, 1993). Neste contexto, a nar- 
rativa é caracterizada como se segue: 

Em primeiro lugar uma situação inicial é esboçada ( como tudo come- 
çou ), e então os acontecimentos relevantes para a nan ativa são selecio- 
nados de todo o conjunto de experiências e apresentados como urna 
progr essão coerente dos acon tecimentos ( como as coisas se desenvolve- 
ram ), e finalmente é mostrada como ficou a situação no final do de- 
senvolvimento (o que aconteceu ) (Hermanns, 1995: 183). 

Esta discussão pode ser vista como inserida em uma discussão mais 
ampla das ciências sociais sobre a estrutura narrativa do conhecimento 
e experiência (Bruner, 1987; Ricoeur, 1984; Sarbin, 1986). Uma de 
suas origens é James (1893), que sustentou “que todo pensamento hu- 
mano é essencialmente de dois tipos - raciocínio, por um lado, e narra- 
tivo, descritivo contemplativo, de outro”. Esta distinção foi retomada 
em discussões sobre uma psicologia narrativa, ou pensamento narrati- 
vo em Sarbin (1986). Aqui, as narrativas são vistas como: 

A forma primária através da qual a experiência humana se toma 
significativa . 0 sentido narrativo é um processo cognitivo que or- 
ganiza as experiências humanas em episódios temporariamente 
significativos (Polkinghorne, 1988: 1). 



— 115 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Neste contexto, leva-se em consideração que a experiência e a 
vida não possuem uma estrutura narrativa per se. Ao contrário, elas 
são construídas na forma de uma narrativa: 

Refletindo sobre o incidente, tentando compreendê-lo atentamente, 
você está construindo uma narração, cuja estrutura é essencial- 
mente narrativa (Robinson e Hawpe, 1986: 118). 

Por conseguinte, o pensamento narrativo é visto como consistin- 
do de uma criação de ajustamento entre a situação e o esquema de 
história. Estabelecendo uma adequação, isto é, construindo a histó- 
ria a partir da experiência” (1986: 1 1 1) e como a “projeção do for- 
mato de história em uma espécie de experiência ou acontecimento” 
(1986: 113). Esta reconstrução de experiências como narrativas im- 
plica dois tipos de processos de negociação. Negociação interna/cog- 
nitiva entre experiência e o esquema de história inclui o uso de nar- 
rativas prototípicas existentes em uma cultura. Negociação externa 
com (potenciais) ouvintes significa tanto que eles estão convencidos 
da história do acontecimento, ou que eles rejeitam ou duvidam dela 
em grande parte. Os resultados de tais processos são formas de co- 
nhecimento contextualizadas e socialmente partilhadas. 

Conhecimento episódico e semântico 

Uma segunda tradição é a distinção entre memória episódica e 
memória semântica (retornando a Tulving, 1972), retomada para 
distinguir conhecimento episódico de conhecimento semântico, por 
exemplo, em sistemas de especialistas (Strube, 1989). Conforme esta 
discussão, o conhecimento episódico compreende o conhecimento 
que está ligado a circunstâncias concretas (tempo, espaço, pessoas, 
acontecimentos, situações), enquanto que conhecimento semântico 
é mais abstrato e generalizado e descontextualizado de situações e 
acontecimentos específicos. Os dois tipos de conhecimento são par- 
tes complementares do “mundo do conhecimento”: 

Conhecimento episódico é parte do conhecimento do mundo, cuja 
outra parte - correspondendo à memória semântica - é o conheci- 
mento geral (isto é, não concreto, ancorado situacionalmente, por 
exemplo, conhecimento conceptual, conhecimento de regras, co- 
nhecimento de esquemas de eventos (1989: 13). 

A fim de tornar acessíveis ambas as partes do conhecimento no 
estudo de um tema concreto como mudança tecnológica, uma entre- 
vista deve responder a critérios específicos: 



— 116 — 




5. Entrevista episódica 



• Deve combinar convites para narrar acontecimentos concretos 
(que sejam relevantes ao tema em estudo) com perguntas mais 
gerais que busquem respostas mais amplas (tais como defini- 
ções, argumentação e assim por diante) de relevância pontual. 

• Deve mencionar situações concretas em que se pode pressu- 
por que os entrevistados possuem determinadas experiências. 

• Deve ser suficientemente aberta para permitir que o entrevis- 
tado selecione os episódios ou situações que ele quer contar, e 
também para decidir que forma de apresentação ele quer dar 
(por exemplo, uma narrativa ou uma descrição). O ponto de 
referência deve ser a relevância subjetiva da situação para o 
entrevistado. 

A Figura 5.1 sintetiza estas relações ao nível do conhecimento e 
da apresentação. 



Conhecimento semântico 




Figura 5.1- Formas de conhecimento e apresentação na entrevista episódica. 



Entrevista episódica: como fazer as coisas andar 

A entrevista episódica foi criada para colocar esta concepção em 
termos concretos. Ela pode ser delineada em nove fases, cada uma 
delas se constituindo em um passo à frente em direção ao objetivo de 



- 117 













Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



analisar o conhecimento cotidiano do entrevistado sobre um tema 
ou campo específico, de tal modo que nos permita comparar o co- 
nhecimento dos entrevistados de diferentes grupos sociais - isto é, 
como uma representação social. Os exemplos trazidos a seguir pro- 
vêm principalmente de nosso estudo das compreensões das pessoas 
sobre mudança tecnológica, mas para ilustrar o procedimento para 
além do contexto em que ele foi desenvolvido, foram também usa- 
das como exemplo algumas questões tomadas de um estudo sobre 
representação social da saúde em diferentes grupos sociais. 

Fase 1 : preparação da entrevista 

A entrevista episódica se baseia em um guia de entrevista com o 
fim de orientar o entrevistador para os campos específicos a respeito 
dos quais se buscam narrativas e respostas. O guia de entrevista 
pode ser criado a partir de diferentes fontes: da experiência do pes- 
quisador na área em estudo, de dimensões teóricas desta área, de 
outros estudos e de seus resultados, e das análises preparatórias de 
uma área que possua aspectos relevantes. Neste passo, é importante 
desenvolver uma compreensão preliminar da área em estudo, de tal 
modo que partes relevantes possam ser cobertas, que as perguntas 
possam ser formuladas e que o guia possa permanecer suficiente- 
mente aberto para acomodar qualquer aspecto novo que possa 
emergir ou ser trazido pelo entrevistado. 

No estudo da tecnologia, o guia cobria as principais áreas da vida 
cotidiana e da tecnologia (para maiores detalhes, ver abaixo). A pri- 
meira parte geral da entrevista enfocava a “biografia tecnológica” 
do entrevistado e a “mecanização de sua vida cotidiana”. Na parte 
central da entrevista, o foco era nas tecnologias específicas - neste 
estudo, computadores e televisão. Depois, os tópicos mais gerais re- 
lacionados à mudança tecnológica eram de novo mencionados: as 
questões se referiam às conseqüências da mudança tecnológica, à 
responsabilidade (pela mudança e pelas conseqüências), à confiança 
e aos temores com respeito às tecnologias. 

Comprovou-se ser útil examinar o guia e as perguntas em uma 
ou duas entrevistas piloto. Se diversos entrevistadores estiverem tra- 
balhando no mesmo estudo ou se a entrevista é usada no contexto de 
seminários de pesquisa com estudantes, o treinamento para entre- 
vista é um modo útil de conferir e aprender os princípios da entrevis- 
ta, as questões cruciais e o princípio de narrativas de situação. 



— 118 — 



5. Entrevista episódica 



Fase 2: introduzindo a lógica da entrevista 

A primeira parte da pesquisa concreta é a instrução do entrevis- 
tado. Para fazer com que a entrevista funcione, é importante expli- 
car o caráter das perguntas para o entrevistado e familiarizá-lo com 
esta prática. A entrevista pode ser iniciada com uma frase como essa: 

Nesta entrevista, eu irei lhe pedir várias vezes que conte si- 
tuações em que você teve certas experiências com... (por 
exemplo, tecnologia em geral ou tecnologias específicas). 

É extremamente importante ter cuidado nesta introdução, e 
conferir se o entrevistado entendeu e aceitou sua mensagem. 

Fase 3: a concepção do entrevistado sobre o tema e sua biografia 
com relação a ele 

Para introduzir o tópico, pergunta-se primeiro ao entrevistado 
sobre sua definição subjetiva do tema com perguntas como: 

O que significa tecnologia para você? O que associa com a 
palavra tecnologia? 

Ou 

O que é saúde para você? O que se relaciona com a palavra 
saúde para você? 

A seguir, a caminhada do entrevistador pelo campo em estudo é 
construída pedindo a ele que conte a primeira experiência que ele 
pode lembrar sobre o tema em estudo: 

Quando você olha para o passado, qual foi sua primeira expe- 
riência com tecnologia? Poderia, por favor, falar sobre isto? 

Ou 

Quando você olha para o passado e recorda, quando você 
primeiro pensou sobre saúde? Poderia, por favor, falar so- 
bre isto? 

Em questões como estas, o princípio principal da entrevista epi- 
sódica se aplica: perguntar ao entrevistado que relembre uma situa- 
ção específica e que a conte. Que situação ele relembra ou seleciona 
a fim de responder ao convite não é fixada pelo entrevistador. Esta 
decisão pode ser usada na análise posterior, por exemplo, comparar 
os graus de proximidade do entrevistado em relação ao tópico em 
estudo. O caminho da história pessoal do entrevistado em relação ao 



— 119 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



tema é então investigado perguntando-se por experiências relevan- 
tes particularmente importantes ou significativas: 

Qual foi sua experiência ou contato mais importante com 
tecnologia? Poderia, por favor, falar-me desta situação? 

Ou 

Qual foi a sua experiência mais significativa com respeito à 
saúde? Poderia, por favor, falar-me desta situação? 

Aqui, novamente é a relevância subjetiva do entrevistado que de- 
termina sobre que tecnologia e sobre que situação ele vai falar. Se um 
entrevistado se referir a permanecer saudável ou a um surto de doen- 
ça mais ou menos severa, é decisão dele. Posteriormente, estas priori- 
dades sofrerão uma análise comparativa entre os diferentes casos. Es- 
pecialmente em entrevistas onde é escolhido pelo entrevistado um 
acesso indireto ao tópico (como saúde), uma retomada da questão 
pode ser útil. Então o entrevistador pode continuar perguntando: 

Há ocasiões em que você se sente melhor que em outras. Po- 
deria, por favor, falar-me de uma situação em que você se 
sente particularmente bem? 

Ou 

Quando a saúde se torna um problema para você? Poderia, 
por favor, falar-me de uma situação deste tipo? 

Fase 4: o sentido que o assunto tem para a vida cotidiana do entre- 
vistado 

Aparte seguinte da entrevista tem como objetivo esclarecer o pa- 
pel do tema na vida cotidiana do entrevistado. A fim de entrar neste 
campo, pede-se ao entrevistado que primeiro conte o transcorrer de 
um dia normal com respeito ao tema: 

Poderia, por favor, dizer como foi seu dia de ontem, e onde 
e quando a tecnologia teve algo a ver? 

Ou 

Poderia, por favor, dizer-me como foi seu dia de ontem, e 
quando seu estado de saúde teve algo a ver? 

Esse tipo de pergunta tem como finalidade juntar narrativas de 
uma cadeia de situações relevantes. Após isso, estas situações da vida 



— 120 — 




5. Entrevista episódica 



cotidiana são vistas como relevantes para analisar o tema, são menci- 
onadas com maiores detalhes. Ali, o entrevistador pode escolher 
uma ou mais diferentes estratégias. No estudo sobre tecnologia, nós 
perguntamos às pessoas se elas achavam que a tecnologia tinha se 
tornado mais importante em suas vidas no momento presente: 

Se você examina sua vida, você tem a impressão que as tec- 
nologias hoje desempenham um papel maior do que antes? 
Poderia, por favor, contar-me uma situação em que a tecno- 
logia ocupa mais espaço do que antigamente? 

Os entrevistados eram perguntados depois sobre várias questões 
relacionadas a situações de sua vida diária em que a tecnologia não 
acontecia; e sobre situações onde eles queriam mais ou melhores tec- 
nologias. Pedia-se a eles também que descrevessem situações para 
exemplificar suas respostas ao entrevistador. 

Neste estudo, áreas como a casa onde moravam, o local de traba- 
lho e de lazer eram mencionadas em seqüência. Para cada uma des- 
tas áreas, uma pergunta parecida com esta era feita: 

Se olhar para sua casa, que papel tem a tecnologia ali, e o 
que ela mudou? Poderia, por favor, dizer uma situação que 
seja um exemplo disso? 

No estudo sobre saúde, os campos para serem explorados eram 
“a vida cotidiana e a casa” e “o trabalho e o lazer”: 

Se você pensa na comida, que papel a saúde desempenha 
neste contexto para você? Por favor, fale-me sobre uma si- 
tuação típica. 

Ou 

Quem em sua casa ou família cuida da saúde? Por favor, 
conte-me uma situação típica. 

Estas perguntas ajudam o entrevistado a refletir no sentido geral 
e relevante do tema a partir de diferentes aspectos de sua vida coti- 
diana. 

Fase 5: enfocando as partes centrais do tema em estudo 

A parte seguinte da entrevista se concentra nos aspectos-chave 
do tema, como definido pela questão central de pesquisa do estudo. 
No exemplo da tecnologia, o estudo enfocou não apenas a tecnolo- 



121 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



gia em geral, mas especialmente os computadores e a televisão como 
tecnologias-chave que produziram mudanças na vida diária. Aqui de 
novo a definição subjetiva do entrevistado sobre cada tecnologia foi 
mencionada antes: 

O que você associa hoje com a palavra computador? Que 
aparelhos você inclui como computadores? 

O primeiro encontro do entrevistado com cada tecnologia é o 
próximo passo a ser mencionado: 

Se você olhar para o passado, quando foi seu primeiro en- 
contro com um computador? Poderia, por favor, contar 
essa situação para mim? 

Estas perguntas são seguidas por muitas outras que enfocam o 
uso dos computadores em diferentes áreas da vida diária. O mesmo 
procedimento é feito para a televisão: 

O que você associa à palavra televisão hoje? 

Se você olhar para o passado, qual foi seu primeiro encon- 
tro com a televisão? Poderia, por favor, narrar esta situação 
para mim? 

Que espaço ocupa a televisão na sua vida hoje? Poderia, por 
favor, contar uma situação que deixe isso claro para mim? 

Como você decide se e quando olhar TV? Poderia, por fa- 
vor, contar uma situação que deixe isso claro para mim? 

No estudo sobre saúde, o foco central era sobre como o entrevis- 
tado lidava com prevenção e intervenção em questões como: 

Você evita situações que colocam em risco sua saúde? Por fa- 
vor, conte uma situação em que você evitou um perigo para 
sua saúde. 

O que você faz quando não se sente bem? Por favor, conte 
uma situação em que isto acontece. 

Que espera você do seu médico com respeito a sua saúde? 
Por favor, dê um exemplo de uma situação típica. 

Esta fase da entrevista tem como finalidade elaborar a relação 
pessoal do entrevistado com o tema central. As questões trazidas aci- 
ma como exemplo abrem as portas das experiências pessoais do en- 
trevistado. Uma tarefa importante do entrevistador é responder 



— 122 — 




5. Entrevista episódica 



com inquirições mais aprofundadas às respostas e às narrativas do 
entrevistado, a fim de tornar a entrevista tão substancial e profunda 
quanto possível. 

Fase 6: tópicos gerais mais relevantes 

Finalmente, alguns tópicos mais gerais são mencionados na en- 
trevista, a fim de ampliar seu alcance. Em acordo com isto, pergun- 
ta-se ao entrevistado por relações mais abstratas: 

Na sua opinião, quem deveria ser responsável pela mudan- 
ça necessária na tecnologia? Quem é capaz de assumir a res- 
ponsabilidade, ou deve assumi-la? 

Ou 

Na sua opinião, quem deve ser responsável pela saúde? 
Quem é capaz, ou deveria assumir a responsabilidade? 

Um aspecto ainda são as imaginações do entrevistado com rela- 
ção às mudanças esperadas ou temidas: 

Que desenvolvimentos você espera na área dos computa- 
dores em um futuro próximo? Por favor, imagine estes 
desenvolvimentos e descreva para mim uma situação que 
os exemplifique. 

Esta parte da entrevista tem como objetivo a elaboração de um 
referencial de conhecimento trans-situacional que o entrevistado 
desenvolveu ao longo do tempo. Enquanto possível, o entrevistador 
deve tentar ligar estas respostas gerais às explicações mais concretas 
e pessoais do entrevistado, fornecidas em fases anteriores da entre- 
vista, a fim de deixar claras todas as discrepâncias e contradições. As 
aplicações desta entrevista demonstraram que em muitos casos dis- 
crepâncias e contradições podem emergir entre a argumentação 
mais geral dessa fase e as experiências e práticas pessoais relatadas 
anteriormente. 

Fase 7: avaliação e conversa informal 

A parte final da entrevista é dedicada à sua avaliação feita pelo 
entrevistado (“O que não apareceu na entrevista que lhe teria dado 
uma oportunidade de mencionar seu ponto de vista?”; “Houve al- 
guma coisa que lhe trouxe aborrecimento durante a entrevista?”). 



— 123 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Como em outras entrevistas, é proveitoso acrescentar um período 
de conversa informal, permitindo que o entrevistado fale de tópicos 
relevantes fora do contexto explícito da entrevista (“O que eu esque- 
ci de mencionar...”; “O que eu realmente quis dizer...” “Minha mu- 
lher teve uma experiência engraçada, eu não sei se isso tem a ver 
com seu estudo, mas...”). 

Fase 8: documentação 

A fim de contextualizar as narrativas e respostas recebidas do en- 
trevistado, um protocolo deve ser escrito imediatamente depois da 
entrevista. Mostrou-se útil usar uma folha preparada como orienta- 
ção para este fim. Dependendo do tema da pesquisa, ela pode inclu- 
ir informação sobre o entrevistado (sua situação familiar, profissão, 
idade, etc.) e sobre a entrevista (quem, quanto demorou, quem era o 
entrevistador, etc.). Mais importante que tudo são as impressões do 
entrevistador sobre a situação e o contexto da entrevista e do entre- 
vistado em particular. Tudo o que trouxe surpresa e tudo o que foi 
dito depois da gravação deve ser anotado (ver Figura 5.2). 

Informação contextuai sobre a entrevista e o entrevistado 

Data da entrevista: 

Lugar da entrevista: 

Duração da entrevista: 

Entrevistador: 

Indicadores para identificar o entrevistado: 

Gênero do entrevistado: 

Idade do entrevistado: 

Profissão do entrevistado: 

Trabalha nessa profissão desde: 

Campo profissional: 

Onde nasceu e viveu (cidade/zona rural): 

Número de filhos: 

Idade dos filhos: 

Gênero dos filhos: 

Peculiaridades da entrevista: 



Figura 5.2 — Exemplo de uma folha de documentação. 

— 124 — 





5. Entrevista episódica 



A entrevista deve ser gravada e transcrita em sua totalidade e de- 
talhadamente. O grau de detalhe e exatidão necessários depende do 
tipo de questão de pesquisa (ver Flick, 1998a: cap. 14). 

Fase 9: análise de entrevistas episódicas 

Os procedimentos de codificação sugeridos por Strauss (1987), 
Strauss 8c Corbin ( 1 990) ou Flick ( 1 998a, sobre codificação temática) 
podem ser empregados para analisar entrevistas episódicas. 

Que duração têm as entrevistas episódicas? 

A entrevista episódica como tal (fases 2-7) demora entre 60 e 90 
minutos. Este tempo varia de acordo com o número de perguntas 
preparadas, a rapidez do entrevistador em falar e a habilidade do 
entrevistador em orientar o entrevistado com respeito aos detalhes e 
abrangência de suas narrativas. 



Forças e fraquezas das entrevistas episódicas 

O método de entrevista episódica apresentado brevemente aqui 
pode ser comparado a outros métodos criados com intenções simila- 
res. As comparações estão sintetizadas na Tabela 5.1. 



Tabela 5.1 - A enfrev/sfa episódica comparada com formas alfernafivas de entrevista 



Critério 


Entrevista 

episódica 


Técnica do 
incidente crítico 


Entrevista focal 


Entrevista 

narrativa 


Indicação para 


Conhecimento 


Estudos 


Avaliação de 


Processos 


empregar a 


cotidiano sobre 


comparativos 


estímulos 


biográficos. 


entrevista 


certos objetos 


de situações 


específicos 






ou processo 


problemáticas 


(filmes, textos. 










med/a) 




Abertura ao 


Da seleção das 


Perguntando 


O critério de 


Dando espaço 


ponto de vista 


situações a 


sobre razões 


especificidade 


para uma 


do entrevistado 


serem contadas 


específicas dos 




narrativa 


através: 


Dando espaço 


incidentes 




abrangente 




para a narrativa 






Estruturação dos Do guia de 


O foco dos 


Dando um 


Pergunta 


dados da coleta entrevista 


incidentes 


estímulo 


geradora da 


através: 


Dos tipos de 


críticos 


Perguntas 


narrativa no 




perguntas (para A orientação 


estruturadas 


começo 




definições e 


para fatos nos 


Foco nos 






para narrativas) acontecimentos 


sentimentos 





— 125 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 











Critério 


Entrevista 

episódica 


Técnica do Entrevista focai 

incidente crítico 


Entrevista 

narrativa 



Problemas 


Fazer o 


Redução dos 


Dilema de 


Manter a 


técnicos 


entrevistado 


dados para 


combinar os 


narrativa uma 




aceitar o 
conceito de 
entrevista 
Explicação do 
princípio 
Lidar com o 
guia de 
entrevista 


categorização 
de (muitos) 
incidentes 


critérios 


vez começada a 
entrevista 
Problema em 
dirigir a 

narrativa para o 
tema 
Grandes 
quantidades de 
dados 

escassamente 

estruturados 


Limitações 


Limitação ao 


Restrita a 


O pressuposto 


Mais sensível a 




conhecimento 


situações 


de se conhecer 


casos do que 




cotidiano 


problemáticas 


aspectos 
objetivos do 
objeto em 
questão 


apta para 
comparações 



A técnica do incidente crítico 

A técnica do incidente crítico de Flanagan (1954) pode ser vista 
como determinado tipo de “ancestral histórico” da entrevista episódi- 
ca com ralação a algumas finalidades comuns. O método se aplica 
principalmente na análise de atividades e exigências profissionais. O 
conceito de “incidente crítico” sobre o qual a técnica se baseia é seme- 
lhante ao conceito de episódios e situações na entrevista episódica. As 
diferenças podem ser percebidas a partir da seguinte caracterização: 

A técnica do incidente crítico enfatiza procedimentos para se cole- 
tar incidentes observados que tenham importância especial e que 
respondam a critérios sistematicamente definidos. Por incidente se 
quer significar toda atividade humana observável que não está su- 
ficientemente completa em si mesma , para que se permitam infe- 
rências e predições que podem ser feitas sobre a pessoa que executa 
tal ato . Para ser crítico, um incidente deve acontecer em uma si- 
tuação onde o propósito ou intenção da ação se mostre razoavel- 
mente claro ao observador e onde suas conseqüências são suficien- 
temente definidas, de tal modo que deixem pouca dú vida sobre seus 
efeitos (1954: 327). 

Esta citação mostra que a técnica do incidente crítico lida com si- 
tuações claramente definidas no que diz respeito às intenções e aos 



— 126 — 




5. Entrevista episódica 



efeitos, analisados a fim de tirar conclusões e fazer avaliações sobre a 
pessoa que age. É mais o acontecimento e menos o contexto situa- 
cional que está em foco. Comparada a ele, a entrevista episódica 
permite ao entrevistado decidir que tipo de situação mencionar a 
fim de esclarecer determinado tipo de experiência. Por isso, a entre- 
vista episódica tem mais a ver com a obtenção de narrativas de dife- 
rentes tipos de situações, do que de situações que já foram de ante- 
mão definidas de acordo com critérios fixos. Numa entrevista episó- 
dica, dá-se especial atenção ao sentido subjetivo expresso no que é 
contado, a fim de descobrir a relevância subjetiva e social do tema 
em estudo. A técnica do incidente crítico, por outro lado, está mais 
interessada nos fatos, do que naquilo que é relatado: 

É evidente que a técnica do incidente crítico é essencialmente um 
procedimento para se coletar determinados fatos imporíantes com 
respeito ao comportamento em determinadas situações ... 0 quanto 
uma observação relatada pode ser aceita como um fato , depende 
principalmente da objetividade nessa observação... Acredita-se que 
um grau regular de sucesso foi conseguido no desenvolvimen to de 
procedimentos que ajudarão na coleta de fatos de um modo bastan- 
te objetivo , com apenas um mínimo de inferências e interpretações 
de natureza mais subjetiva (1954: 335). 

Enquanto a entrevista episódica procura a “contextualização” 
das experiências e acontecimentos a partir do ponto de vista do en- 
trevistado, a técnica do incidente crítico enfatiza, em vez disso, a 
“descontextualização” do conteúdo factual dos fatos relatados. Con- 
seqüentemente, um número enorme de incidentes é coletado atra- 
vés deste método (em um estudo apenas chegaram a 2000), que são 
depois classificados e contraídos. No centro está: 

A classificação dos incidentes críticos... Uma vez desenvolvido um 
sistema de classificação para qualquer tipo de incidente crítico , um 
grau razoavelmente satisfatório de objetividade pode ser consegui- 
do ao colocar os incidentes nas categorias definidas ( 1 954: 335). 

Mais recentemente Wilpert & Scharpf usaram a técnica do inci- 
dente crítico para analisar problemas no contato entre gerentes ale- 
mães e chineses: 

As entrevistas se fundamentaram principalmente na Técnica do 
Incidente Crítico... deste modo pedia-se aos gerentes que narras- 
sem incidentes particularmente problemáticos com o maior número 
de detalhes possíveis (1990: 645). 



— 127 



Pesquisa qualitativa com texto, iaaagem e som 



Aqui, novamente os acontecimentos factuais nas narrações são 
mais enfocados do que na entrevista episódica. Além disso, o méto- 
do de Flanagan restringe-se, em geral, a um fragmento específico da 
experiência - particularmente acontecimentos problemáticos -, o 
que se justifica na pesquisa em que ele se aplica. A entrevista episódi- 
ca é mais aberta a este respeito, porque ela objetiva não apenas situa- 
ções problemáticas, mas também situações positivas, surpreenden- 
tes, satisfatórias, etc. Um tema como a mudança tecnológica não 
deve, necessariamente, ser reduzido a seus aspectos problemáticos. 
A entrevista episódica abre espaço às subjetividades e interpretações 
do entrevistado no contexto das narrativas situacionais; ela não as 
reduz e classifica imediatamente, mas ao invés disso descobre o con- 
texto de sentido em que ela é narrada. 

A entrevista focal 

A entrevista focal pode ser vista como um protótipo de entrevis- 
tas semi-estruturadas. Alguns de seus princípios e critérios para apli- 
cação bem-sucedida (ver Merton & Kendall, 1946) são também rele- 
vantes para a entrevista episódica. 

O critério de “não diretividade” foi a linha orientadora para a 
decisão de não confrontar entrevistados, a fim de se conseguir maior 
comparabil idade e padronização com determinadas situações, mas, 
ao invés, pedir-lhes que escolham e contem aquelas situações que 
pareçam para eles particularmente relevantes com respeito a um tó- 
pico específico. 

O critério de “especificidade” é colocado em termos concretos 
quando se pergunta ao entrevistado que conte situações e, enquanto 
possível, situações em que ele teve experiências específicas. Compe- 
te a ele decidir se, e até que ponto, aceita o convite para fornecer 
uma narrativa detalhada e se este critério pode ser conseguido na 
entrevista. Merton & Kendall definem este critério como se segue: 

A definição da situação feita pelo sujeito deve encontrar expressão 
plena e específica (1946: 545). 

O mesmo se dá no caso do critério de “abrangência”: nas entre- 
vistas episódicas não é definida nenhuma área de experiência para a 
qual uma narrativa é estimulada (como na entrevista narrativa de 
Schütze, por exemplo: ver abaixo). Ao contrário, pede-se ao entre- 
vistado narrativas de situações relevantes que provenham de uma 



— 128 — 




5. Entrevista episódica 



variedade de situações cotidianas. Isto se aproxima do critério de 
Merton & Kendall, que postulam: 

A entrevista deve maximizar a abrangência de estímulos evocati- 
vos e de respostas relatadas pelo sujeito (1946: 545). 

Finalmente, a entrevista episódica também tenta dar conta do 
quarto critério de Merton & Kendall ao dirigir seu foco para as si- 
tuações: 

Contexto profundo e pessoal: a entrevista deve trazer à tona as im- 
plicações afetivas e carregadas de valor das respostas dos sujeitos , 
para determinar se a experiência possui significância central ou 
periférica (1946: 545). 

Uma vez mais, a inserção da informação a ser coletada em seu 
contexto, através de estímulos narrativos, oferece um modo de dar 
conta deste critério. 

A entrevista narrativa 

A entrevista narrativa foi desenvolvida pelo sociólogo alemão 
Fritz Schütze (1977; ver Riemann & Schütze; Bauer, 1996; Flick, 
1998a: cap. 9). Aplica-se aqui o seguinte princípio: 

Na entrevista narrativa, pede-se ao informante que forneça, em urna 
narrativa improvisada, a história de uma situação de interesse de 
que o entrevistado participou... A tarefa do entrevistador é fazer com 
que o informante conte a história da área de interesse em questão 
corno urna história consistente a partir de todos os acontecimentos re- 
levantes, desde o início, até o fim (Hermanns, 1995: 183). 

Após uma “pergunta geradora de narrativa” (Riemann & Schüt- 
ze, 1987: 353), espera-se que o entrevistado relate, em uma narrati- 
va longa, extensa e improvisada, sua história ligada ao tema em estu- 
do - principalmente sua biografia (profissional ou sobre sua saúde). 
A tarefa do entrevistador é evitar qualquer intervenção diretiva uma 
vez começada a narrativa, até que um sinal claro (coda) seja dado de 
que o entrevistado chegou ao fim de sua história. Somente então 
deve o entrevistador tentar retornar ao entrevistado para aspectos 
que ele não tenha ainda narrado com suficientes detalhes e tentar 
fazer com que ele retome estas partes novamente, recontando deta- 
lhes perdidos. Apenas na última parte da entrevista é permitido ao 
entrevistador fazer perguntas que não se refiram à narrativa. A qua- 
lidade dos dados é avaliada principalmente ao se responder à per- 



— 129 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



gunta se, e até que ponto, estes são dados pertencentes à narrativa. 
Os pressupostos básicos subjacentes ao método são que o entrevista- 
do - uma vez que tenha aceito a tarefa e começado a contar - irá não 
apenas terminar a história, mas também contar fatos verdadeiros: 

Na edição retrospectiva da narrativa das experiências, os aconteci- 
mentos na história de vida (sejam eles ações ou fenômenos natu- 
rais) são contados, em princípio, na maneira como eles foram expe- 
rienciados pelo narrador como um ator ( Schütze, 1976: 197). 

Esta vantagem é atribuída às narrativas e não a outras formas de 
entrevista. As narrações obtidas com a entrevista de narrativa po- 
dem ser extremamente longas (chegam até 16 horas em alguns ca- 
sos), e muito difíceis de orientar na direção de experiências e tópicos 
específicos. Isto traz problemas para a interpretação dos dados e 
para a comparação dos dados a partir de diferentes casos. A vanta- 
gem é que ela produz versões bastante complexas e compreensivas 
dos pontos de vista subjetivos dos entrevistados. A entrevista episó- 
dica é mais orientada para narrativas de pequena escala e baseadas 
em situações, sendo, por isso, mais fácil concentrar-se na coleta de 
dados. Ela evita pressupostos de dados “verdadeiros” e, em vez dis- 
so, se restringe às realizações construtivas e interpretativas dos en- 
trevistados. Não dá prioridade a um tipo de dado, como a entrevista 
narrativa faz com dados narrativos, mas faz uso das vantagens de di- 
ferentes formas de dados - conhecimento semântico e episódico, e 
expressões narrativas e argumentativas. 

Apenas respostas? O bom e mau uso das entrevistas episódicas 

A entrevista episódica mostra suas vantagens sobre outros méto- 
dos especialmente quando o entrevistador recebe muitas narrativas 
ricas e detalhadas. Uma aplicação ruim é aquela em que a entrevista 
gera apenas respostas que nomeiam tópicos, em vez de narrações. 

Há diferentes tipos de situações que podem caracterizar a res- 
posta do entrevistado. Os exemplos que seguem ilustram estes dife- 
rentes tipos de situações e são tomados do estudo sobre tecnologia 
mencionado acima. 

Tipos de situações na entrevista episódica 

O primeiro e principal tipo é o “episódio”, isto é, um aconteci- 
mento ou situação específica que o entrevistado recorda. No se- 



— 130 — 




5. Entrevista episódica 



guinte exemplo, o entrevistado conta como ele aprendeu a andar 
de bicicleta: 

Bem, eu posso lembrar o dia, quando eu aprendi a andar de 
bicicleta, meus pais me colocaram em uma bicicleta, uma 
dessas bicicletas pequenas para crianças, largaram-me, não 
demorou muito, e eu comecei a andar por mim mesmo, 
meu pai me deu um empurrão e me largou, e então eu con- 
tinuei a andar até ao fim do estacionamento e então eu caí 
com meu nariz no chão... Eu acho que esse é o primeiro caso 
que eu posso lembrar. 

Um segundo tipo é o “episódio repetido”, isto é, representações 
de episódios repetidos (no sentido de Neisser, 1981): uma situação 
que ocorre repetidamente. Pediu-se a um entrevistado uma situação 
que deixasse claros os fatores que influenciaram em suas decisões de 
ver televisão, e ele respondeu: 

Na verdade, a única ocasião quando a televisão tem uma im- 
portância particular para mim é o dia do Ano Novo, porque 
eu fico tão emocionado, que eu não posso fazer nada mais 
que ver TV, bem, eu já estou fazendo isso durante anos, pas- 
sando o dia de Ano Novo na frente da TV. 

Um terceiro tipo são as “situações históricas” e se refere a algum 
evento específico. Um entrevistado se referiu a Chernobyl, quando 
lhe foi perguntado sua experiência mais relevante com respeito à 
tecnologia: 

Provavelmente, bem, a catástrofe do reator de Chernobyl, 
porque isso atingiu de maneira muito decisiva as vidas de 
muitas pessoas, que me deixou claro, pela primeira vez, o 
quanto alguém está à mercê das tecnologias. 

Tipos de dados na entrevista episódica 

As aplicações mostraram que a entrevista episódica gera não 
apenas lembranças destes diferentes tipos de situações, mas também 
os seguintes tipos de dados (ver Figura 5.3): 

• Narrativas de situação em diferentes níveis de concretude. 

• Episódios repetidos como situações que ocorrem regularmente, 
não mais baseadas em uma referência local ou temporal clara. 



— 131 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



• Exemplos, que são abstraídos de situações concretas, e metáfo- 
ras, que vão desde clichês até estereótipos. 

• Definições subjetivas (de tecnologia, de saúde) quando explici- 
tamente perguntadas. 

• Ligadas a estas definições, proposições argumentativo-teóricas, 
por exemplo, explicações de conceitos e suas relações. 



Argumentações 




Figura 5.3 - Tipos de dados na entrevista episódica. 

Indicadores de qualidade em entrevistas episódicas 

A qualidade das entrevistas não pode ser julgada simplesmente 
pela aplicação de critérios tais como fidedignidade e validade, em 
seus sentidos tradicionais (para maiores detalhes ver Flick, 1998a: 
caps. 1 1 e 1 8). Mas alguns aspectos da qualidade estão estreitamente 
ligados a estes critérios. A fidedignidade das entrevistas episódicas 
pode ser aumentada pelo treinamento para a entrevista, menciona- 
do acima, e pela análise detalhada das entrevistas-piloto, ou da pri- 
meira entrevista. Um segundo passo para maior fidedignidade dos 
dados obtidos com a entrevista episódica é a documentação detalha- 
da e cuidadosa da entrevista e do contexto daquilo que foi dito ou 
narrado. O terceiro passo é uma transcrição cuidadosa de toda a en- 
trevista. A validade dos dados pode ser aumentada pela introdução 
de um passo de validação comunicativa em que se mostram ao entre- 
vistado os dados e/ou interpretações provenientes de sua entrevista, 
de tal modo que ele pode concordar com eles, rejeitá-los ou corri- 
gi-los. Seu consenso é, então, um critério para a validade dos dados. 



— 132 — 







5. Entrevista episódica 



Finalmente, a entrevista episódica é, em si mesma, uma tentativa de 
colocar em termos concretos a idéia da triangulação interna ao méto- 
do (Denzin, 1989; ver também Flick, 1992), através da combinação 
de diferentes enfoques (de tipo narrativo e argumentativo) com res- 
peito ao tema em estudo, a fim de aumentar a qualidade dos dados, 
das interpretações e dos resultados. 



Passos na entrevista episódica 

1 . Prepare um guia de entrevista baseado em uma pré-análise do 
campo em estudo. Faça entrevistas piloto e treinamento para a 
entrevista. Prepare uma folha para documentação do contexto 
da entrevista. O guia de entrevista dá conta da área em estudo? O 
entrevistado internalizou a lógica da entrevista? A folha de docu- 
mentação é suficiente para cobrir a informação relevante para a 
questão de pesquisa? 

2. Prepare uma boa apresentação para o entrevistado e preste aten- 
ção para que ela fique clara ao entrevistado. O entrevistado en- 
tendeu e aceitou a lógica da entrevista? 

3. Prepare perguntas para definições subjetivas de conceitos rele- 
vantes. Prepare perguntas que cubram os passos relevantes da 
história pessoal do entrevistado relacionadas ao tema ou ao cam- 
po de estudo. Preste atenção a qualquer ponto onde uma inquiri- 
ção mais profunda é necessária. As questões tocam aspectos re- 
levantes dos sentidos subjetivos para o entrevistado? As ques- 
tões estão orientadas para narrativas de situações (relevantes)? 
O entrevistador reforçou a lógica de narrativa da entrevista e 
perguntou questões adicionais para trazer mais profundidade à 
entrevista? 

4. Tente abranger áreas relevantes da vida cotidiana do entrevista- 
do. As questões levam a narrativas de situação? São elas suficien- 
temente abertas para surpresas? 

5. Tente conseguir com detalhes as partes centrais do tema em es- 
tudo. Tente aprofundar e enriquecer as respostas do entrevista- 
do com perguntas adicionais. O entrevistado entrou em detalhes 
e com profundidade? O entrevistador foi sensível a qualquer ou- 
tra questão que poderia ser enfocada? 



— 133 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



6. Tente evitar raciocínios muito gerais sem nenhuma referência 
pessoal ou situacional sobre as respostas do entrevistado. O pes- 
quisador conseguiu levar as respostas do entrevistado ao nível 
dos interesses pessoais? 

7. Avaliação e conversa informal: abra espaço para alguma conver- 
sação, para crítica e outros aspectos adicionais. Foram menciona- 
dos aspectos adicionais? 

8. Use a folha de documentação, faça uma boa gravação e uma de- 
talhada transcrição. Toda informação adicional (além da grava- 
ção) está documentada? 

9. Escolha um método apropriado para codificação e interpretação 
das narrativas e respostas. O método leva em conta a qualidade 
dos dados (por exemplo a estrutura narrativa das narrações)? 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



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6 

VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIAS COMO 
DOCUMENTOS DE PESQUISA 



Peter Loizos 



Palavras-chave : mídia como fato social; códigos de tempo; ví- 
deo participativo; evidência de vídeo; percepção, distorção, per- 
cepção informada; retroalimentação com vídeo/fotos; representa- 
ções; dados visuais como indicadores de disposições psicológicas; 
Scitexing; registros visuais. 



Este capítulo tem como preocupação principal o uso de fotos e 
vídeo como métodos de pesquisa qualitativa. Ele assume que o leitor 
não esteja nem familiarizado com o emprego de materiais visuais, 
nem comprometido, em princípio, em usá-los de algum modo. Ele 
também supõe que o leitor não tenha pensado nestes métodos como 
potencialmente úteis. Não é um capítulo sobre “como fazer”, pois há 
manuais baratos e tecnicamente fáceis de serem lidos com este fim. 
Nem é sobre filme documentário. Ele trata mais das possibilidades 
para aplicações de métodos visuais a serviço da pesquisa social e das 
limitações desses métodos. 

Estes enfoques merecem um lugar neste volume por três razões. 
A primeira, é que a imagem, com ou sem acompanhamento de som, 
oferece um registro restrito mas poderoso das ações temporais e dos 
acontecimentos reais - concretos, materiais. Isto é verdade tanto 
sendo uma fotografia produzida quimicamente ou eletronicamente, 
uma fotografia única, ou imagens em movimento. A segunda razão é 
que embora a pesquisa social esteja tipicamente a serviço de comple- 
xas questões teóricas e abstratas, ela pode empregar, como dados 
primários, informação visual que não necessita ser nem em forma de 
palavras escritas, nem em forma de números: a análise do impacto 
do tráfico no planejamento urbano, tipos de parques de diversão pe- 
rigosos ou campanhas eleitorais podem, todos eles, beneficiar-se 



137 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



com o uso de dados visuais. A terceira razão é que o mundo em que 
vivemos é crescentemente influenciado pelos meios de comunica- 
ção, cujos resultados, muitas vezes, dependem de elementos visuais. 
Conseqüentemente, “o visual” e “a mídia” desempenham papéis im- 
portantes na vida social, política e econômica. Eles se tornaram “fa- 
tos sociais”, no sentido de Durkheim. Eles não podem ser ignorados. 

Mas estes registros não estão isentos de problemas, ou acima de 
manipulação, e eles não são nada mais que representações, ou tra- 
ços, de um complexo maior de ações passadas. Devido ao fato de os 
acontecimentos do mundo real serem tridimensionais e os meios vi- 
suais serem apenas bidimensionais, eles são, inevitavelmente, sim- 
plificações em escala secundária, dependente, reduzida das realida- 
des que lhes deram origem. 

O que eu quero dizer aqui por “visual”? Devido ao fato de muitos 
de nós usarmos os olhos para ler, há um sentido trivial, segundo o 
qual nossa leitura deste texto poderia ser chamada de uso de um mé- 
todo de pesquisa visual. Neste capítulo eu vou me preocupar não 
com a leitura em si, mas com situações onde imagens estão apoiadas 
tanto em textos escritos, como na apreensão de fotografias ou pintu- 
ras, e em palavras faladas gravadas em som — trilhas de vídeo. Foto- 
grafias e seqüências de vídeo podem também incluir palavras escri- 
tas, e muitas vezes o fazem: grande parte do que conhecemos sobre a 
demografia da Roma Clássica está baseado nas inscrições das lápi- 
des romanas (Hopkins, 1978). Normalmente, não incluiríamos isto 
como um exemplo de “o visual”. Temos de incluir o estudo pioneiro 
do psicólogo social Siegfried Kracauer (1947) do cinema alemão de 
1918 até 1933, que defende que os filmes produzidos para, e consu- 
midos por uma nação, permitem uma boa percepção das “profun- 
das disposições psicológicas”. Kracauer identificou temas e imagens 
que trouxeram intuições sobre idéias referentes à sorte e ao destino, 
sobre líderes e seguidores, sobre humilhação, sobre corpo sadio e 
doente e muito mais. Ele incluiu no estudo, uma análise de um filme 
de propaganda nazista que se tornou um padrão e um modelo para 
análises subseqüentes de conteúdo de filmes. 

Igualmente pioneiro foi o trabalho do historiador social Aries 
(1962), que empregou pinturas e gravuras para mostrar como, na 
Europa pré-industrial, concepções de crianças e da infância dife- 
riam marcadamente daqueles das épocas mais recentes. Aries mos- 
trou como as crianças estavam vestidas com os mesmos tipos de ves- 
timenta dos adultos, como elas eram representadas sem a inocência 
que nós atribuímos hoje às crianças, e como elas participavam de ce- 



138 — 



6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 

nas adultas de entretenimento, como apoio a seus argumentos basea- 
dos no texto. Isso pode ser qualificado como um primeiro emprego 
dos mais imaginativos e influentes da evidência visual na pesquisa 
da ciência social (ver Figura 6.1). 




Figura 6.1- Uma mulher e cinco filhos. 

Vantagens e limitações dos materiais visuais de pesquisa 

Antes de nos achegarmos aos usos específicos, é importante dis- 
cutir algumas falácias sobre registros visuais. Uma falácia está implí- 
cita na frase “a câmera não pode mentir”. Os seres humanos, os 
agentes que manejam a câmera, podem e, de fato, mentem: eles fal- 
sificam quadros e forjam testamentos e cédulas, podendo distorcer a 
capacidade comprobatória de registro de dados visuais tão facil- 
mente quanto as palavras escritas, mas de maneiras particulares. 
Primeiro, uma impressão fotográfica pode ter a informação removi- 
da através de “aerógrafos” ( airhrusching ): na verdade, pintando algo 
ou alguém. Algumas coisas podem ser falsamente acrescentadas 
também: muitas fotografias de pessoas nuas de uma tribo, publica- 
das em revistas de fotografias tão “realísticas” como Picture Post and 
Life nos anos de 1 940, tinham a genitália nua “vestida” artificialmen- 
te, ou então disfarçada, de tal modo que elas eram falsas como fontes 
históricas. Negativos montados de maneira enganadora podem mos- 



— 139 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



trar duas pessoas sentadas uma ao lado da outra, quando na verdade 
elas nunca se encontraram. 

Quando a manipulação é feita eletronicamente, ela é chamada 
por jornalistas e editores de fotografias como scitexing, conforme a 
tecnologia de ponta, e ela é freqüentemente empregada para alterar 
sistematicamente o conteúdo de fotografias publicadas (Winston, 
1995). Em um filme ou vídeo, uma edição habilidosa pode remover 
palavras faladas de uma frase e um reprocessamento visual pode re- 
mover pessoas centrais, ou traços, de um contexto mais amplo. To- 
das estas manipulações são difíceis de serem detectadas por um 
olhar que não está treinado, e scitexing é impossível de detectar, a 
não ser que se possa identificar a fotografia original e ter certeza de 
que ela é de fato original. A situação aqui pode mudar e novos avan- 
ços na tecnologia podem brevemente permitir aos peritos saber se 
uma imagem foi modificada; mas atualmente, aparentemente não 
existe esta possibilidade. Deste modo, não se pode acreditar no que 
se vê de maneira ingênua, e se algo mostrado como evidência visual 
levantar nossas suspeitas, deve ser conferido — corroborado com in- 
vestigação posterior, com provas testemunhais, e todo e qualquer 
meio que seja necessário. 

A manipulação da imagem visual pode ser mais sutil e oculta, 
mas ela é claramente ideológica. Susan Moeller mostrou como uma 
famosa fotografia da Guerra da Coréia - a retirada de soldados can- 
sados para um lugar chamado Changjin, feita pelo fotógrafo de jor- 
nal David Duncan - tinha originalmente mostrado muitos america- 
nos mortos, e foi importante porque ela deu a entender a quantida- 
de de custos humanos que tais comprometimentos causaram aos 
americanos. Muitos anos mais tarde, esta imagem foi usada em um 
selo americano de 22 centavos, mas sem os cadáveres, louvando, 
deste modo, a tradição militar americana sem as lembranças desin- 
quietantes das pesadas perdas (Moeller, 1989: 447, n. 30). No mes- 
mo livro, Moeller discute como muitos outros famosos fotógrafos de 
guerra começaram a resistir a percepções políticas particulares na 
condução de guerras (ver também Lewinski, 1978). 

Uma segunda falácia comum sobre fotografia é de que ela é sim- 
plesmente e universalmente acessível a qualquer um do mesmo 
modo - que ela opera transculturalmente, independentemente dos 
contextos sociais, de tal modo que todos a verão e entenderão o mes- 
mo conteúdo na mesma fotografia. Isto é falso por diversas razões. 
Primeiro, nós aprendemos a ver tanto o mundo real, como suas re- 
duções convencionais muito específicas a uma bidimensionalidade 



— 140 — 




6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 



plana, como é mostrado em pinturas, fotografias e filmes (Gregory, 
1966; Gombrich, 1960). Pessoas isoladas da economia global, que 
podem não estar acostumadas a fotografias ou a espelhos, terão difi- 
culdade em reconhecer a si mesmos, ou a seus parentes próximos, 
em simples instantâneos (Forge, 1966; Carpenter, 1976). O “apren- 
der” não é somente necessário para um reconhecimento básico, ele 
está também envolvido diferencialmente na percepção de detalhes 
significativos: um primeiro observador, olhando uma fotografia, vê 
um “carro”; um segundo vê uma “sala familiar de tamanho médio 
para pessoas idosas”; um terceiro vê um “Ford Cortina do ano de 
1981, com direção de corrida e rodas esporte”. O veículo é o mesmo 
objeto do mundo real para todos os três observadores, mas suas per- 
cepções, sua habilidade para especificá-lo e descrevê-lo, e o sentido 
que eles dão a ele são diferentes, devido a suas biografias indivi- 
duais. Tais variações perceptuais complicam toda explicação objeti- 
vista ingênua da fotografia como se ela fosse um registro sem ambi- 
güidade. A informação pode estar na fotografia, mas nem todos es- 
tão preparados para percebê-la em sua plenitude. 

Vou agora discutir alguns tipos de emprego de imagens fotográfi- 
cas com aplicações potenciais para pesquisa. A primeira, é a docu- 
mentação da especificidade da mudança histórica. Se alguém está in- 
teressado em investigar ou mostrar a natureza específica da mudança, 
então as fotografias feitas em intervalos regulares, dos mesmos luga- 
res, podem ser ilustrativas. Mudanças em bairros urbanos, paisagens 
e conteúdos de um quarto; o estado de uma árvore, de uma parede ou 
de um corpo humano “antes” e “depois” de uma mudança importan- 
te; tudo isto, quando adequadamente atestado, testemunhado e con- 
trolado quanto ao tempo, lugar e circunstância, pode trazer poderosa 
evidência ou valor persuasivo. Em um exemplo recente, a fotografia 
foi usada por Tiffen e seus colegas para apoiar uma argumentação 
importante sobre densidades populacionais, cobertura por árvores e 
ambiente agrícola em um distrito do Quênia. Devido ao fato de eles 
terem podido usar fotografias intituladas com precisão (as coordena- 
das de lugar e tempo foram fornecidas) do período colonial britânico, 
compará-las com fotografias tiradas de praticamente o mesmo lugar 
45 anos antes, e correlacionar as fotografias com indicadores sociais e 
econômicos de vários tipos, eles foram capazes de produzir uma argu- 
mentação que desafia muita sabedoria convencional. Em 1991, sob 
condições de uma alta densidade populacional local e cultivo mais in- 
tensivo, as paisagens locais estavam na verdade mais densamente co- 
bertas por árvores que em 1937 (Tiffen & Mortimore, 1994; ver tam- 
bém Vogt, 1974) (ver Figuras 6.2 a e b). 



— 141 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 




Figura 6.2 - Duas fotos da paisagem do Quênia , tiradas em 1937(a) e 1991(b). 

Fotos: (a) R.O. Bernes , 1937, foto 17, reproduzida, com permissão dos Arquivos Na- 
cionais do Quênia; (b) M. Mortimore. 

Fonte: Cortesia de Dr. Mary Tiffen. 



— 142 — 



6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 



Aplicações históricas de fotografias podem ser recomendadas 
também por outras razões. Vários tipos de investigação de história 
oral podem ser facilitados se o pesquisador vai a uma entrevista pre- 
parado de antemão com algumas fotografias relevantes. Suponha- 
mos que se esteja trabalhando sobre a história de um sindicato ou de 
um partido político e tenhamos visto, em um jornal antigo, uma fo- 
tografia de uma enorme multidão, de um encontro anual, ou de uma 
celebração. A fotografia, adequadamente aumentada, pode servir 
como um desencadeador para evocar memórias de pessoas que uma 
entrevista não conseguiria, de outro modo, que fossem relembradas 
espontaneamente, ou pode acessar importantes memórias passivas, 
mais que memórias ativas, presentes. 

Tais métodos para evocar fatos podem ser empregados também 
em uma pesquisa micro-histórica: a “história da família” pode ser 
auxiliada perguntando-se ao entrevistado que examine um álbum 
de fotografias da família com o pesquisador, ou que mostre a ele um 
filme antigo de um casamento, de um batismo ou uma festa de ani- 
versário. As imagens fazem ressoar memórias submersas e podem 
ajudar entrevistas focais, libertar suas memórias, criando um traba- 
lho de “construção” partilhada, em que pesquisador e entrevistado 
podem falar juntos, talvez de uma maneira mais descontraída do 
que sem tal estímulo. 

Um tipo diferente de emprego de fotografias históricas pode in- 
cluir fazer sua leitura para se conseguir uma informação cultural/his- 
tórica implícita. No início de 1993, a Scandinavian Airlines (SAS) pro- 
duziu um relatório anual do ano anterior e o distribuiu aos passagei- 
ros. Era um documento interessante que revelava mais do que seus 
autores tinham consciência (ver Figura 6.3). Ele mostrava, por exem- 
plo, seu Conselho de Diretores, e esta fotografia consistia de nove 
executivos da corporação que inspiravam credibilidade, em ternos es- 
curos. O relatório trazia também fotografias do pessoal de bordo e 
dos pilotos, mas as únicas mulheres que se viam eram aeromoças. 
Embora possa parecer distorcido ler demais em um único documen- 
to, sem um conhecimento maior das políticas de igualdade de rela- 
ções de gênero da SAS, este relatório anual faz ao menos pensar. Há 
50 anos, se tal documento existisse, seria considerado normal e tran- 
qüilo para muitos de nós. Na verdade, a própria idéia de que um do- 
cumento deve ser ilustrado e acessível aos passageiros é uma idéia re- 
cente. Contudo, o que talvez seja mais surpreendente sobre a fotogra- 
fia, é que suas implicações com respeito às relações de gênero foram 
aparentemente esquecidas pelos executivos que aprovaram o relató- 



143 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



rio. Por conseguinte, ler tanto os registros visuais presentes, como os 
“ausentes”, é uma tarefa de pesquisa possível. Quem falta na fotogra- 
fia ou na pintura, e por quê? Os jovens? Os velhos? Os pobres? Os ri- 
cos? Os brancos? Os negros? E o que essas ausências implicam? 




Bo Berggren Leif Christoffersen Bjorn Eidem 




Anders Eldrup Tony Hagstrõm Leif Kindert 




Ingvar Lilletun Harald Norvik _ Hugo Schroder 



Figura 6.3-0 relatório da SAS mostra nove executivos condizentes , homens de meia 
idade . 



144 — 














6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 



Isto nos leva a uma nova questão: o que se pode inferir com segu- 
rança, e com sensatez, de uma fotografia? Inferências casuais são fá- 
ceis, mas inferência mais segura exige bem mais. Suponhamos que 
queremos inferir algo sobre atitudes de gênero e mudança social na 
Grécia de duas fotografias da Figura 6.4: estaríamos autorizados a 
fazer isso? Duas fotografias, sem informações maiores sobre como 
elas foram feitas, o quanto elas diferem ou são semelhantes a milha- 
res de outras fotografias de casais gregos, não podem ser mais que 
sugestivas ou impressionistas. Se nós analisamos centenas de foto- 
grafias de casamento e encontramos nelas padrões recorrentes, esta- 
ríamos autorizados a pensar que estaríamos lidando “com algo” - 
mas o quê, exatamente? Pois uma fotografia pode ter sido feita de 
uma maneira, entre pelo menos quatro outras possíveis: 

1. Os sujeitos foram pegos de surpresa pelo fotógrafo, compor- 
tando-se de maneira informal. 

2. Um grupo de sujeitos, sabendo que alguém iria fazer uma fo- 
tografia, posiciona-se de um modo tal, considerado por eles 
apropriado. 

3. Um fotógrafo pode tomar a iniciativa de colocar os sujeitos 
em uma composição específica e eles podem aceitar esta orien- 
tação passivamente. 

4. Algum conluio ou negociação entre o fotógrafo e os sujeitos 
pode ser feito. 

Por isso, nós precisamos saber como fotografias de casamento 
específicas são feitas. Uma pequena observação irá revelar logo que 
os fotógrafos muitas vezes tomam a iniciativa, devido a suas próprias 
razões profissionais e estéticas. Mas os fotógrafos pertencem, em ge- 
ral, à mesma cultura daqueles que eles retratam e querem agra- 
dá-los. Deste modo, em um nível analítico, o que é revelado em uma 
amostra relativamente ampla de fotografias de casamento, pode le- 
gitimamente reforçar o ponto de vista de uma compreensão cultu- 
ralmente construída sobre o que é apropriado. Na década de 1960, 
em Chipre, havia um costume de casais recentemente esposados ti- 
rarem fotografias de casamento. Eles eram geralmente posicionados 
por fotógrafos profissionais e o casal era colocado literalmente face a 
face, embora eles tivessem, muitas vezes, se conhecido há poucas ho- 
ras. Esta postura pode ser vista como sugerindo um período de tran- 
sição entre um sistema de casamento mais arranjado apenas pelos 
pais e um em que os jovens estivessem começando a adquirir alguns 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 



poderes de veto sobre pessoas com quem eles iriam casar, embora 
eles ainda as tivessem encontrado pela primeira vez em reuniões or- 
ganizadas por iniciativa da família e em encontros formais. Note-se, 
porém, que esta leitura só se consegue com base em um conheci- 
mento histórico detalhado do tempo e do lugar. Ela não pode ser in- 
ferida da postura estudada de uma ou duas fotografias, a não ser que - 
e isso não é comum - nós tenhamos informação adicional que nos 
apóie, como no caso da fotografia da família de Uganda, feita por A. 
F. Robertson (Figura 6.5). Neste caso nós sabemos que a composição 
da fotografia foi feita pelo homem mais velho (Robertson, 1978.). 




Figura 6 - Uma família da Uganda: a disposição das pessoas foi feita pelo homem 
mais velho ( Robertson , 1978). 

Fonte: Fotografia de A.F. Robertson. 



— 147 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Em um estudo de uma aldeia de Chipre, Sheena Crawford (1987) 
fez comentários sobre as ressonâncias icônicas das fotografias man- 
dadas por parentes que tinham emigrado. Elas mostravam momen- 
tos aprazíveis - celebrações de casamento e batismo, pessoas bem 
vestidas e interiores de residências bem mobiliados. Elas não mos- 
travam situações de locais de trabalho que poderiam sugerir longos 
dias de trabalho em condições terríveis. A ênfase estava no sucesso, 
celebração, lazer, consumo e posses. O trabalho pesado, as dificul- 
dades e o fracasso não estavam representados. A interpretação exige 
uma leitura tanto das presenças quanto das ausências de um registro 
visual, e enquanto algumas das ausências podem ser explicadas pe- 
las características de custo ocasional (quem carrega a câmera, quan- 
do, onde e por quê?), a homogeneidade das imagens registradas 
deve comportar um peso semântico. 

Um estudo sobre o que é e o que não é fotografado pode ser su- 
gestivo. Nos dias de hoje na Inglaterra, é algo normal fotografar ca- 
samentos, aniversários, batismos e algumas cerimônias de casamen- 
to são interrompidas, ou ao menos entremeadas com fotografias e 
registros em vídeo. Mas mortes e funerais não são normalmente fo- 
tografados. As pessoas, em geral, não vêern que isto deva ser come- 
morado com fotografias, mas não é de nenhum modo óbvio, ou sen- 
so comum que isto deva ser assim. Para membros da família real ou 
outras celebridades muito estimadas (como Winston Churchill, por 
exemplo), os serviços de funeral e as procissões são consideradas 
como interessantes para serem comemoradas visualmente. E exis- 
tem povos para quem a apresentação de um caixão ornamentado e a 
fotografia de um túmulo, são aceitáveis por todos. 

Vídeo e filme: algumas aplicações 

Passemos agora a alguns usos do vídeo e filme em pesquisa so- 
cial. Tratarei filme e vídeo como praticamente a mesma coisa, embo- 
ra o registro em vídeo seja, de muitos modos, mais barato, mais sim- 
ples e mais flexível do que costuma ser um filme de 8mm ou 16mm. 
Na prática, por razões de facilidade e preço, a maioria dos pesquisa- 
dores usa vídeo em vez de filme, e fitas de vídeo baratas, em vez das 
fitas profissionais mais caras de alta resolução. Precisamos ainda dis- 
tinguir entre dados produzidos pelo pesquisador e informação vi- 
sual já existente. Finalmente, necessitamos distinguir ainda entre 
dados visuais que o pesquisador analisa sem auxílio e dados que ser- 
vem para comentários focais, ou eliciados, de pessoas entrevistadas. 



148 — 




6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 



O vídeo tem uma função óbvia de registro de dados sempre que 
algum conjunto de ações humanas é complexo e difícil de ser descri- 
to compreensivamente por um único observador, enquanto ele se 
desenrola. Qualquer ritual religioso, ou um cerimonial ao vivo (como 
um casamento), pode ser candidato, ou uma dança, uma hora de en- 
sino em sala de aula, ou uma atividade artística, desde fazer um sa- 
pato, até polir um diamante. Não existem limites óbvios para a am- 
plitude de ações e narrações humanas que possam ser registradas, 
empregando conjuntamente imagem e som em um filme de vídeo. 
Com uma pequena filmadora de baixa fidelidade ligada a uma to- 
mada elétrica pode-se registrar até quatro horas com uma única câ- 
mera, sem interrupção. Enquanto se grava, um código de tempo 
pode ser inserido na imagem, de tal modo que cada segundo, minu- 
to ou hora é registrado automaticamente. O pesquisador deverá en- 
tão dar conta de diversas tarefas: exame sistemático do corpus de 
pesquisa; criação de um sistema de anotações em que fique claro por 
que certas ações ou seqüências de ações devam ser categorizadas de 
um modo específico; e finalmente, o processamento analítico da in- 
formação colhida. 

Tomemos um exemplo concreto. Suponhamos que um pesqui- 
sador esteja interessado em compreender a dinâmica das brigas en- 
tre crianças em um pátio de escola, e que tenha conseguido o con- 
sentimento das autoridades escolares para fazer um registro confi- 
dencial em vídeo de um local pelo período de uns três meses. Supo- 
nhamos que o tempo total de intervalo, para toda a escola, seja de 
duas horas por dia. Em três meses, o estudo, empregando uma única 
câmera, gerará 120 horas de gravação. O pesquisador deverá deci- 
dir, seja de antemão baseado em fundamentações teóricas, ou du- 
rante e depois das gravações baseado em fundamentações empíricas 
e interpretativas, que tipos de ação constituiriam “brigar”. O analis- 
ta quererá então identificar todas as seqüências de ação que pode- 
riam servir como exemplos e procurar regularidades. Os brigões se 
restringem a um pequeno número de indivíduos, ou o brigar é um 
fenômeno mais geral? As vítimas são sempre um grupo consistente e 
restrito? Alguma criança alguma vez prestou socorro às vítimas? E o 
brigar com mais freqüência uma ação grupai, ou uma agressão feita 
por um indivíduo isolado? Estas e muitas outras questões podem ser 
feitas, e em princípio respondidas, por gravações de vídeo. Mas nós 
estamos falando de muitas horas de assistência, anotação, agrupa- 
mento, revisões, re-análises e uma síntese final. Não seria surpresa 



— 149 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



se cada hora de dados registrados necessitasse de ao menos quatro 
horas de trabalho adicional. Isto poderia, em princípio, ser reduzido 
pela decisão de se trabalhar com apenas uma amostra (5 ou 10 por 
cento) do material. E isto poderia também ser reduzido se uma pri- 
meira revisão geral do material revelasse, de imediato, padrões tão 
consistentes e evidentes que o trabalho mais paciente, detalhado, se- 
ria redundante, e não compensador quanto aos custos. Complica- 
ções empíricas posteriores ao estudo poderiam ser acrescentadas: 
comparações entre padrões no inverno e no verão; investigações so- 
ciais sobre os antecedentes dos agressores e das vítimas; o comporta- 
mento registrado em sala de aula; e assim por diante. Não haveria 
razão para que os dados visuais limitassem, ou mesmo dominassem, 
o estudo, mesmo que em uma etapa específica eles tenham sido a 
fei lamenta principal de investigação. E é muito possível que sim- 
plesmente através de uma entrevista cuidadosa com algumas crian- 
ças-chave praticamente a mesma informação fosse obtida com mais 
rapidez e mais simplicidade. O papel do registro visual seria com- 
piobatóiio, no sentidojurídico, mas ele não precisaria ser o gerador 
principal de conceitos ou intuições-chave. 

Este tipo de exemplo irá levantar questões éticas nas mentes de 
defensores de direitos humanos. Em geral, associações profissionais 
baseadas em disciplinas específicas criam orientações éticas para a 
condução de pesquisas, e elas tendem a tratar o tema da vigilância 
sem consentimento, como uma invasão da privacidade, considerá-la 
como inaceitável ou dentro de limites de aceitação. Na pesquisa mé- 
dica, há normalmente um comitê hospitalar de ética que terá de 
contrabalançar interesses de pacientes com temas de interesse pú- 
blico mais amplo. O pesquisador social individual poderá ser capaz 
de trabalhar sem se ligar formalmente a um comitê de ética, dentro 
da precaução normal de que uma delicada informação pesquisada 
permanecerá restrita e confidencial, e isto é, além do mais, reforça- 
do pelo Ato de Proteção às Informações (Data Protection Act), da In- 
glaterra, que inclui a informação armazenada em computadores e 
processadores. Mas enquanto que com informação puramente escri- 
ta, a promessa de não colocar nomes de pessoas possa garantir pro- 
teção ética contra identificação, a situação é mais difícil com ima- 
gens. Pequenas máscaras eletrônicas brancas sobre os olhos podem 
disfarçar a imagem de um rosto, mas as vozes são mais distintivas, e 
embota elas possam ser disfarçadas digitalmente, ouvir vozes huma- 
nas distorcidas durante longo tempo causa muito tédio. 



— 150 — 




6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 



Podem, contudo, existir ainda situações que produzam dilemas 
éticos. Em 1997, uma equipe de um hospital britânico decidiu usar 
gravação oculta de vídeo para monitorar o comportamento de cri- 
anças que foram consideradas sob condição de risco e que tinham 
mostrado sinais prévios de danos corporais e dificuldades severas de 
crescimento. Conseguiu-se evidência de que alguns pais estavam 
aparentemente causando danos propositais a seus filhos enquanto 
eles estavam no hospital. Isto levou a uma discussão pública, quando 
alguns pais protestaram dizendo que sua privacidade tinha sido in- 
vadida; e não é difícil sentir simpatia por um pai inocente que se sen- 
te sob suspeita e sob fiscalização. Mas fica evidente qual deve ser a 
defesa por parte dos médicos: primeiro, que a criança foi admitida 
no hospital e está sob cuidados médicos, e que o hospital tem a obri- 
gação estatutária de defender a criança; em segundo lugar, que cau- 
sar dano severo a uma criança é um crime, e pode ser direta, ou sub- 
seqüentemente, prevenida pela vigilância do vídeo; em terceiro lu- 
gar, que a gravação em vídeo possui valor de prova evidenciai. 

Mas a esta altura nós devemos parar para discutir a qualidade e 
as limitações de tal gravação de vídeo, e como uma defesa legal pode 
questionar sua capacidade comprobatória. Primeiro, é provável que 
seja de baixa fidelidade visual; segundo, a qualidade do som pode 
variar entre ser claramente audível e apenas compreensível; em ter- 
ceiro lugar, os ângulos da câmera podem não estar sempre em uma 
posição ótima para mostrar os detalhes mais significativos da se- 
qüência de uma ação; e finalmente, devido à redução geral de deta- 
lhes em tal gravação, ela pode estar sujeita a uma falsa interpretação 
concreta sobre a compreensão do ânimo e da intenção, além de to- 
dos os outros problemas de interpretação a que o comportamento 
humano tridimensional (em oposição à gravação de baixa fidelida- 
de) possa ter levado. Acrescente-se a estas dificuldades a probabili- 
dade de que a câmera observa de uma posição fixa e nós temos uma 
receita para um drama em tribunais. 

Há um tipo diferente de aplicação em pesquisa com gravações de 
vídeo em que a participação do sujeito na análise se torna importante. 
Suponhamos, por exemplo, que uma pesquisa tivesse enfocado a 
questão de sua efetiva supervisão. Com o consentimento tanto do es- 
tudante de pesquisa, como do supervisor, uma série de gravações dos 
seus encontros seria feita pelo período de dois anos. Então, depois de 
cada encontro, cada pessoa seria interrogada pelo pesquisador, priva- 
damente, e solicitada a comentar, com mais detalhe, sobre o valor es- 



— 151 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



tratégico dos pareceres fornecidos, da ajuda solicitada e assim por di- 
ante. Neste caso, a gravação em vídeo seria, de fato, um conjunto ami- 
gável de anotações de pesquisa de campo, igualmente acessível às três 
partes, e mais eficiente que as memórias ou notas literais de qualquer 
uma delas. A revisão de situações retro-informadoras permitiria uma 
discussão em mais profundidade, mais esclarecimento, mais debate e 
diálogo e uma discussão de ações não realizadas e suas implicações. 
Pode-se substituir a dupla supervisor-pesquisador por qualquer situa- 
ção interativa em que haja uma troca de informação, um componente 
de treinamento e uma negociação. 

Alguns pontos práticos e de procedimento 

1 . Registre todo rolo de filme, fita de vídeo, fita de som ou foto- 
grafia logo depois que você os produziu. Você vai precisar de to- 
dos os detalhes de data, lugar e pessoas. Você precisa colocar 
um selo de identificação em cada item e guardar uma lista-mes- 
tra como um índice. Proteja suas fontes originais, imagens e 
sons, fazendo cópias extras. Se você, provavelmente, obtiver, 
ou gerar, uma grande quantidade de material, seja em termos 
de imagens individuais ou minutos e horas gravados, tem de 
pensar em problemas de estocagem, de como acessar os dados 
e obter amostras. Investigue novas maneiras de estocagem atra- 
vés de computador e de sistemas de obtenção de dados, tais 
como Avid, a nova e rápida maneira de editar vídeos. 

2. O emprego de imagens de pesquisa em público levanta ques- 
tões de poder, intromissão, posse e privacidade. Garanta que 
seus informantes lhe dêem permissão clara de reproduzir ima- 
gens sobre eles. Isto se aplica igualmente ao seu uso e possível 
publicação de imagens que eles possuem. Os acordos devem 
ser feitos por escrito. Garanta, também, que você os informou 
sobre suas intenções de pesquisa. Veja Asch (1988) para um cui- 
dadoso trabalho sobre o contrato entre um produtor de filme e 
um cientista social. 

3. Na gravação de vídeo, é relativamente fácil obter imagens que 
podem ser usadas, e relativamente difícil ter uma boa qualida- 
de de som. Sendo que o sentido do que está acontecendo de- 
pende muitas vezes de que os pesquisadores sejam capazes de 
ouvir claramente o que foi dito, você precisa prestar ao menos 
tanta atenção à qualidade da gravação do som, quanto à quali- 



— 152 — 




6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 



dade da imagem. Obtenha um bom manual, como o de Hale 
(1997); descubra tipos de microfones, experimente com tipos 
diferentes e lugares onde devem ser colocados, antes de fazer 
algo importante, até que você realmente saiba quais são os 
problemas. 

4. É fácil de sermos levados pela idéia de produzir um vídeo e 
terminarmos deixando a tecnologia ou a excitação dominar a 
pesquisa. Para o pesquisador social, as imagens e a tecnologia 
são uma contribuição, não um fim. 

5. Não há razão para se introduzir uma gravação de vídeo em 
uma situação de pesquisa a não ser que isto seja a melhor ou a 
única maneira de registrar os dados, ou que seja claramente im- 
perativo gravá-los. Por que esta precaução? Porque a produção 
de um vídeo irá, inevitavelmente, distrair seus informantes, ao 
menos até que eles se acostumem e irá provavelmente influenci- 
ar as pessoas para que assumam posturas oficiais. Leva um bom 
tempo até que as pessoas se comportem naturalmente diante 
até mesmo do mais simples sistema de registro. 

6. Milhares de gravações em vídeo são feitas em situações de pes- 
quisa em comunidade, mas a maioria delas provavelmente nun- 
ca será examinada seriamente, adquirindo o status de “acessórios 
da moda” da pesquisa e ação, e se tornar uma perda de tempo e 
dinheiro. Não há dúvida de que historiadores futuros ficarão 
agradecidos por estes vídeos terem sido feitos, mas este não era 
o objetivo principal ou o objetivo deste capítulo. 



Passos na análise do material visual 

1. O uso de uma gravação visual irá trazer uma melhora significati- 
va para o resultado de minha pesquisa? 

2. Possuo as habilidades para registrar (som e imagem) de tal modo 
que consiga fazer eu mesmo a gravação? 

3. Calculei o tempo necessário para processar o corpo de dados vi- 
suais que resultará desta pesquisa? 

4. Planejei um sistema de identificação/catalogação conveniente 
para manipular, estocar, recuperar os dados e analisar os dados 
visuais? 



— 153 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



5. Como tornar explícitas todas as decisões de classificação feitas, 
quando estiver analisando “áreas cinzentas” de meus dados? 
Meus critérios serão transparentes? 

6. Expliquei adequadamente minhas intenções para as pessoas que 
serão filmadas e obtive o consentimento por escrito? Há algum 
sindicato, ou associação profissional implicada, que deva ser con- 
sultada? Não serei considerado um intrometido? Ou um “mani- 
pulador bisbilhoteiro”? 

7. Conseguirei a liberação dos direitos autorais para publicar o ma- 
terial resultante? Já obtive a permissão escrita dos donos das foto- 
grafias pessoais ou dos vídeos? 

8. Não necessito eu mesmo informar-me melhor sobre temas refe- 
rentes a direitos de imagem e publicação? 



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Nova Iorque: Knopf. 

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— 154 — 




6. VÍDEO, FILME E FOTOGRAFIA... 



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London: British Film Institute. 



— 155 — 



7 

BEMETOLOGIA: PARA UMA CONTÍNUA (AUTO-) 
OBSERVAÇÃO E AVALIAÇÃO DA PERSONALIDADE 

Gerhard Fassnacht 



Palavras-chave: agregação; objeto; bemetologia; predicador; pre- 
dicação em cascata; predicador de valor; lei e probabilidade; reso- 
lução; monitoramento do comportamento; modelos estacionário 
e circular ou experimentação contínua. 



Bemetologia e um neologismo. Foi condensado a partir da expres- 
são fohavioral weteorology - meteorologia comportamental, e foi in- 
troduzido para indicar que a psicologia pode tirar proveito da coleta 
de dados, como o faz a meteorologia. 

Difei entemente de outras ciências, a meteorologia instalou cente- 
nas de aparelhos de medição por todo o mundo e eles recolhem con- 
tmuamente dados para a predição do tempo. Os psicólogos nunca 
tentaram monitorar seriamente o comportamento a fim de captar flu- 
tuações em seus fenômenos, assim como fazem os meteorologistas. 
Isto talvez seja surpreendente: nossos tópicos não são menos comple- 
xos que os da meteorologia, e por isso o “tempo comportamental” 
pode ser predito através de algumas poucas interações entre fatores 
situacionais, com alguns poucos traços de personalidade estáveis. 

Embora esta afirmação tenha sido contestada a partir de muitas 
perspectivas (Hartshorne & May, 1928; 1929; Hartshorne^a/., 1930; 
Newcomb, 1929; Magnusson & Endler, 1977; Magnusson, 1981; Mis- 
chel, 1968; 1984), a mensuração no sentido da teoria clássica de testes 
é ainda o procedimento mais praticado em psicologia. Mesmo quan- 
do sejam necessárias repetições de mensurações com tempo prolon- 
gado, isto é afirmado como se dando dentro do referencial da teoria 
clássica de teste. O acúmulo através do tempo é considerado como um 
meio de reduzir erros de mensuração e por isso de aumento de fide- 



156 





7. Bemetologia... 



dignidade (Epstein, 1979; 1980; 1990). Por conseguinte, a estabilida- 
de dos traços não é percebida como leis psicológicas que existem na- 
turalmente, mas ao invés, é pressuposta como existindo por detrás 
das irregularidades da superfície fenomenal. O problema de como 
supostas leis, de um lado, e as irregularidades observadas, de outro, 
chega a acontecer, é deixado intocável. 

A meteorologia conhece muito bem as leis básicas da física, que 
emergem dinamicamente em um imprevisível “fluxo determinísti- 
co não periódico” (Lorenz, 1963); a psicologia, contudo, parece es- 
tar muito longe deste estado. Não existe consenso sobre as leis bási- 
cas da personalidade e da psicologia. Deste modo, existiria qual- 
quer outro motivo para a psicologia seguir os passos metodológi- 
cos da meteorologia, além da analogia e da alegação de reduzir er- 
ros de mensuração? 

Leis empíricas e probabilidade 

Como surgem as leis empíricas? Esta pergunta é poucas vezes 
feita e não é respondida com clareza. Não há sinais de acordo, nem 
mesmo a respeito da forma mais simples que uma lei possa assumir 
estabilidade, como no peso específico dos objetos, ou um suposto 
traço latente de personalidade, podendo ambos ser designados 
como “leis substantivas” (substance laws, Campbell, 1921). 

Embora seja incapaz de dar uma resposta adequada a esta ques- 
tão, a psicologia, como as outras ciências, está se esforçando para 
conseguir leis empíricas, sejam elas simples ou complexas. A suposta 
existência de leis ocultas controlando os fenômenos psicológicos é 
um motor cognitivo importante no ato de impulsionar a psicologia 
para a frente como uma ciência. Proposições expressas qualitativa- 
mente como hipóteses serão aceitas, eventualmente, como leis em- 
píricas se elas forem resistentes à falsificação (Popper, 1959). Este se 
tornou o derradeiro credo e justificação da psicologia experimental. 

A estratégia experimental foi, paradoxalmente, responsabiliza- 
da pela confusão tanto empírica, quanto teórica, da psicologia; a 
questão fundamental de se as leis empíricas são construtos, ou se 
elas são fatos independentes, estáveis, esperando ser descobertas em 
um canto escondido de nosso mundo fenomênico (Hollis, 1994), 
não causou muito impacto na estratégia de pesquisa. Isto não é sur- 
preendente, pois como pode a psicologia experimental duvidar da 
existência de pré-requisitos de sua própria existência? Em um senti- 



— 157 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



do estrito, a psicologia experimental não pode ser pensada sem o 
postulado geral de que na natureza existem leis em ação. 

Embora a psicologia tenha estado participando, há algum tem- 
po, de debates sobre a teoria do caos e de sistemas dinâmicos (Valla- 
cher&Nowak, 1994; Stewart, 1992), a questão de como supostas leis 
psicológicas passaram a existir não é satisfatoriamente explicada 
por este enfoque. O ponto de vista da teoria do caos não pode avan- 
çar sem leis, mas ao contrário, as vê como um ponto inicial arbitrário 
em uma espécie de processo circular, para explicar como a ordem se 
transforma em desordem e vice-versa. 

Mas existe outro tipo de desordem: a pura probabilidade. Con- 
seqüentemente, a pesquisa sobre o caos desenvolveu métodos para 
distinguir desordem caótica da pura probabilidade (Grassberger &: 
Procaccia, 1983). A probabilidade pode preceder regularidades do 
mesmo modo como a desordem caótica, mas ela o faz de maneira di- 
ferente. Jogar um dado regular resultará, após uma grande quanti- 
dade de vezes, em uma freqüência de distribuição igual para os seis 
lados. Esta distribuição pode ser prevista com alta precisão, embora 
o resultado de uma única jogada seja absolutamente imprevisível. 
Este processo está longe de ser um processo caótico, pois não está 
implicada ali uma retroalimentação dinâmica ou uma não-lineari- 
dade: as ações singulares de jogar consecutivas vezes o dado são in- 
dependentes umas das outras. 4 eoricamente, existe uma simples 
“lei substantiva” que afirma que para cada lado do dado, p = 1/6. A 
lei empírica correspondente surge como uma agregação de um nú- 
mero imenso de jogadas singulares, cada uma com uma única pro- 
babilidade, que pode ser afetada por qualquer outro imenso núme- 
ro similar de diferentes fatores de influência. Uma lei empírica pre- 
domina não no detalhe, mas apenas no resultado total. Essa com- 
preensão pode ser colocada em uma frase: 

As leis empíricas são probabilidade acumulada. 

Esta definição de lei natural foi defendida pelo físico Erwin Schrõ- 
dinger em 1922 (Schrõdinger, 1962), que a adotou do físico experi- 
mental Franz Exner (1919). Um dos exemplos mais proeminentes no 
campo da física é a lei de Boyle, que descreve a relação entre o volu- 
me, temperatura e pressão do gás em estado ideal. Embora a movi- 
mentação e o impulso das moléculas singulares sejam aleatórias e por 
isso imprevisíveis, o comportamento de todo o volume de gás segue 
regras estritas e é, desse modo, previsível com alta precisão. 



— 158 




7. Bemetologia... 



Leis empíricas e resolução 

Podemos ver, a partir do exemplo da lei de Boyle, que poderá 
haver distúrbios irregulares no nível micro, mas uma ordem clara no 
nível macro. Como coloca Schrõdinger: 

A pesquisa na física ... provou claramente que - ao menos para a 
grande maioria dos fenômenos cuja regularidade e estabilidade le- 
varam ao postulado de causalidade geral - a probabilidade é a raiz 
comum da conformidade a uma lei natural estritamente observada. 

Com qualquer fenômeno físico - no qual uma conformidade a uma 
lei natural pode se obseivada — milhares, muitas vezes bilhões in- 
contáveis de átomos singulares ou moléculas estão envolvidos... Ao 
menos em muitos casos totalmente diferentes, nós conseguimos ex- 
plicar completa e inteiramente a lei observada, combinando o nú- 
mero imenso de processos moleculares individuais . Cada processo 
molecular pode, ou não , ter sua própria lei estrita - ele não precisa 
ser pensado como estando de acordo com a regularidade observada 
dos fenômenos de massa. Pelo contrário , essa conformidade à lei é 
diluída integralmente nas médias de milhões de processos singula- 
res que (as médias) são os únicos fatos acessíveis a nós. Essas médias 
mostram suas puras leis estatísticas próprias, que poderão predo- 
minar, mesmo se o comportamento de cada processo molecular in- 
dividual for guiado pela ação de jogar um dado, girar a roleta ou 
tirar um número de uma caixa (1962: 10). 

A partir desta argumentação impressionante, pode-se apresen- 
tar a hipótese de que o grau de resolução a unidades que nós aplica- 
mos ao nosso mundo fenomênico desempenha um importante pa- 
pel no fato de nós descobrirmos leis ou não. Com isso em mente, pa- 
rece razoável tomar, como um ponto de partida, as três seguintes 
“teses de especificidade de resolução” (Fassnacht, 1995: 34s): 

1. As imagens de “realidade” são específicas ao meio representacio- 
nal (o instrumento) e à situação representacional - isto é, elas são 
imediatamente corretas dentro de um sistema local de linguagem. 

2. Ao menos algumas leis são específicas à resolução aplicada; 
isto é, certo grau de resolução em uma área de interesse leva ao 
conhecimento que é totalmente, parcialmente, ou não é orde- 
nado de modo algum. 

3. E principalmente, a impossibilidade de uma transformação 
isomórfica entre diferentes sistemas representacionais deve 
ser enfrentada, isto é, nem todas as imagens de uma área su- 



159 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



postamente igual de “realidade” podem ser transladadas umas 
para as outras. 

De maneira geral, as “teses de especificidade” enfatizam a im- 
portância da resolução ou sua contrapartida, fusão, para conheci- 
mento empírico sobre quaisquer áreas de “realidade” que sejam 
consideradas, por qualquer meio. 

Quando se trata de avaliar pesquisa psicológica de acordo com 
resoluções aplicadas, nós descobrimos que os pesquisadores geral- 
mente mergulham mais profundamente nos detalhes, aplicando ins- 
trumentos que diferenciam progressivamente em direção a unida- 
des de mensuração quantitativa e qualitativa extremamente refina- 
das. Parece ser este o caso no referente a campos tão diversos como a 
pesquisa inicial sobre interação (Argyle & Dean, 1965), etologia hu- 
mana (McGrew, 1972; Schleidt, 1989), emoção (Elkman & Friesen, 
1978) e julgamento social (Vallacher & Nowak, 1994). É claro que 
não há deficiência de resolução sutil por si mesma. Mas dada a hipó- 
tese de que a existência de leis empíricas é parcialmente uma função 
das unidades de exame minucioso e de mensuração, a questão de o 
quanto pormenorizadamente nós devemos resolver nossos tópicos, 
não pode mais permanecer uma questão inocente. 

Leis empíricas e dados 

A psicologia foi, desde há muito tempo, pensada como sendo di- 
ferente das ciências naturais, pelo fato de seus sujeitos não obedece- 
rem às leis naturais (ver, por exemplo, Windelband, 1 894). Mas exis- 
tem leis em psicologia? Esta questão não pode ser respondida sem 
que o significado do termo “lei” seja esclarecido. 

Leis empíricas 

Metodologicamente, uma lei estabelece que algo é válido para 
todos os objetos de determinada classe. Formalmente, uma lei tem a 
aparência de um condicional generalizado, que pode ser expresso 
como: 

Para cada x, s ex é A então x é B. 

Traduzindo para uma linguagem comum, temos: todo/l é B. A 
característica de invariabilidade ou constância, expressa em “para 
cada x”, parece valer para todos os tipos de leis (Nagel, 1961: 75s). 



— 160 




7. Bemetologia... 



Isso não traz problemas até que x seja concretamente especifica- 
do. Tomemos x como “ser humano”, e é duvidoso que exista alguma 
lei em psicologia. Deste modo, a psicologia distinguiu entre diferen- 
tes classes de seres humanos e criou uma “psicologia diferencial”. 
Infelizmente, este passo não leva a condicionais generalizados váli- 
dos, e assim distinções posteriores foram tentadas. Como estas tam- 
bém não chegavam a condicionais generalizados estritos, o processo 
de diferenciação contínua termina inevitavelmente em um estado 
de exaustão: com um caso singular x, para o qual a afirmação “para 
cada x”, não tem mais nenhum sentido. É claro que a pesquisa con- 
creta se detém muito antes deste ponto ser alcançado. Existe uma saí- 
da para este problema, além de interromper o processo? Para res- 
ponder a esta questão, outro problema deve ser enfrentado: como 
nós estamos interessados em leis empíricas, e não em leis teóricas, 
necessitamos explicar o que deve ser entendido por “dados”. 

Dados como uma predicação em cascata 

Tomando emprestado da análise de linguagem crítica (Kamlah 
8c Lorenzen, 1973), podemos começar com a predicação elementar: 

Objeto <— predicado 

O termo “predicador” é entendido como um designador e foi in- 
troduzido por Carnap (1956: 6) como “expressão(ões) predicati- 
va^), em um sentido amplo, incluindo expressões de classe”. Um 
predicador nunca pode ser uma descrição definitiva, ou um nome 
adequado para uma entidade, nem pode ele ser confundido com 
uma parte gramatical de uma frase (o predicado). De modo igual, 
“objeto”, na sua forma elementar, não possui sentido material como 
uma entidade que pode ser tocada, sentida ou vista. Kamlah & Lo- 
renzen, por isso, afirmam: 

Nós entendemos objeto como tudo aquilo ao qual um predicador 
pode ser relacionado , ou que pode ser designado por um nome pró- 
prio , ou uma ação dêitica ( descrição definitiva) de tal modo que ele 
é apreensível por um parceiro em um diálogo (1973: 42). 

Para representar um esquema geral para dados (de um proces- 
so) psicológico, a predicação elementar deve assumir uma forma 
mais complexa que eu gostaria de designar como “predicação em 
cascata”: 

Objeto <— predicador <— valor de predicador <— valor de tempo 



— lól — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Assume-se que os valores de predicador variem tanto quantitati- 
va quanto qualitativamente. O mesmo para valores de tempo, embo- 
ra a variação qualitativa dos valores de tempo seja uma noção menos 
comum. Diz-se que os valores variam quantitativamente se eles são 
expressos em termos de qualquer sistema de números, independen- 
temente de qual seja o nível representacional da escala (ordinal, de 
intervalo ou de razão). Diz-se que os valores variam qualitativamen- 
te se eles são expressos em termos de diferente “sentido designati- 
vo” (Carnap, 1956: 6). Alguns exemplos de variações qualitativas, 
bem como quantitativas, estão relacionadas na Tabela 7.1. Com es- 
tes exemplos em mente, proponho que os dados são predicações em 
cascata - afirmações específicas ou singulares, com graus específicos 
de resolução em quatro níveis diferentes. Em todos os quatro níveis 
da predicação em cascata, diferentes graus de resolução ou fusão em 
unidades são concebíveis: 

1 . Em nível dos objetos nós podemos tanto diferenciar entre Pe- 
dro, Rafael, João, etc., ou vice-versa, agrupá-los em “menino”; 

2. Ao nível dos predicadores, unidades diferentes de comporta- 
mento e experiência são possíveis de serem distinguidas; 

3. Ao nível de valor, podem ser relacionadas quantitativa ou 
qualitativamente a diferentes valores de predicador... 

4. Aos quais, no último nível, podem ser atribuídos valores de 
tempo qualitativos ou quantitativos de graus diferentes. 



Tabela 7 . 1 - Exemplos de variações qualitativas e quantitativas 



Dados qualitativos 



Objeto 


4 - 


Predicador 


<— 


Valor qualitativo de 
predicador 


4 - 


Valor qualitativo de 
tempo 


Tempo de 
Londres 


4 - 


temperatu ra 


<— 


gelada 


4 - 


inverno 


Tempo de 
Londres 


4 - 


temperatura 


<— 


tépida 


4 - 


noite de verão 


Tempo de 
Londres 


<- 


temperatura 


4 — 


muito quente 


4 - 


verão de 1 976 


Pedro 


<— 


agressão 


4 — 


rosto raivoso 


4 — 


agora 


Pedro 


4 - 


agressão 


4 — 


verba! 


4 - 


ontem 


Pedro 


4 - 


agressão 


<r- 


física 


4 - 


6°-feira passada 



— 162 — 





7. Bemetologia... 



Dados quantitativos 



Objeto 


<— 


Predicador 


< — 


Valor do 

predicador 

quantitativo 


<— 


Valor do 
predicador de 
tempo 


Tempo de 
Londres 


<— 


temperatura 


<— 


30C 


<- 


10.01.95 


Tempo de 
Londres 


<— 


temperatura 




20°C 




12.07.97 


Tempo de 
Londres 


<— 


temperatura 


<- 


3ó°C 


<— 


20.08.76 


Pedro 


<- 


agressão 


<— 


na razão de 1 
sobre 3 




9:30, 

27. 10.97 


Pedro 


<— 


agressão 


<— 


na razão de 2 
sobre 3 


<— 


9:34, 26. 
10.97 


Pedro 


<— 


agressão 


<— 


na razão de 3 
sobre 3 


<— 


24.10.97 



Se dissermos que uma afirmação singular, ou uma predicação 
em cascata, são uma imagem da realidade, haverá, então, tantas 
imagens da realidade quantas combinações de diferentes graus pu- 
derem ser controladas por nossos instrumentos de resolução. Mas se 
nós estamos interessados em descobrir leis empíricas e se nossa hi- 
pótese de que a existência de uma lei empírica é específica à resolu- 
ção aplicada é verdadeira, temos de decidir que combinação de re- 
soluções é a melhor para descobrir estas leis empíricas. 

Leis empíricas e bemetologia 

Uma recomendação comum para se encontrar leis é: tente algu- 
mas teorias. Mas isto esquece que as teorias são, elas mesmas, formu- 
ladas e referenciadas dentro do contexto de uma linguagem especí- 
fica. Tal teoria, por sua vez, pressupõe certa combinação de resolu- 
ção nos quatro níveis da predicação em cascata. É claro que esta vi- 
são é verdadeira principalmente para uma teoria que procura expli- 
car fatos empíricos. Não resta dúvida, tais teorias podem ser um for- 
te guia para se encontrar leis empíricas. Se - como aconteceu na físi- 
ca - ao menos algumas leis empíricas estritas tivessem sido encontra- 
das através de um raciocínio lógico comum, ou mesmo por probabi- 
lidade, e se essas leis tivessem sido depois empiricamente provadas, 
aí sim a teorização através do raciocínio lógico e do consecutivo teste 
de hipótese seria mais fácil, do que se essas leis não tivessem sido 



— 163 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



confirmadas. Contudo, este não é, de modo algum, um argumento 
para se generalizar, a um nível epistemológico, que todos os enfo- 
ques científicos empíricos devem seguir estas linhas. Além disso, este 
fato da história da física não é argumento de que o teste de hipótese 
a partir de uma teoria é o único método válido e digno de crédito de 
se fazer pesquisa. A teorização e o teste de hipótese neste sentido es- 
trito são aceitáveis se, e apenas se as áreas empíricas em questão são 
estruturadas isomorficamente com as regras da lógica. 

Se a lógica não está presente, então não há uma maneira lógica 
de nos aproximarmos do problema. Isto não quer dizer que não haja 
absolutamente lógica. Mas nós devemos levar em conta esta possibi- 
lidade, caso contrário nós deixaremos escapar o fato básico e mais 
importante: que a acessibilidade lógica ao nosso mundo empírico é 
apenas um caso específico de um mais geral - sua emergência de 
probabilidade. 

Quando isto acontece em uma ciência onde não são encontradas 
leis empíricas estritas, seja através do raciocínio lógico ou por proba- 
bilidade, predições teóricas - deduções lógicas - de outras leis são 
difíceis, ou mesmo impossíveis. Imaginemos que a física tivesse co- 
meçado fazendo pesquisa em partículas elementares que resistissem 
à concepção de leis empíricas estritas (Lindley, 1993): a física não es- 
taria em uma situação melhor do que a da psicologia hoje. 

Podemos agora, por analogia, especular se a frustração da psico- 
logia em conseguir leis empíricas estritas emana de combinações 
inadequadas de resoluções. Como na física das partículas, os fenô- 
menos que os psicólogos investigam são regulados pela probabilida- 
de. Até aqui, não há diferença entre a física e a psicologia: ambos são 
confrontados pelos processos de probabilidade que não podem ser 
preditos. Mas por que encontramos leis empíricas estritas na física e 
não na psicologia? 

Se o conceito de Exner-Schrõdinger de lei natural estiver corre- 
to, então a resposta é clara: sendo as leis naturais resultado de uma 
fusão, ou agregação, de milhões ou mesmo bilhões de eventos que 
ocorrem naturalmente, o simples fato de que no funcionamento psí- 
quico concreto não existam acontecimentos de uma quantidade tão 
grande explica por que a psicologia ainda não encontrou nenhuma 
lei empírica estrita, e provavelmente nunca encontrará. O ponto 
chave é: se não há acontecimentos massivos, não há leis. 



— 164 — 




7. Bemetologia... 



Embora os seres humanos possam se sentir melhor não andando 
por aí como autômatos, a psicologia como uma ciência poderia, ape- 
sar disso, procurar por regularidades no sentido de leis gerais. O 
que geral quer dizer, neste contexto, depende da classe de objetos 
aos quais o “todos” está ligado. Automaticamente, “todos” é aplica- 
do àquelas coisas que se supõe serem iguais. De um ponto de vista 
ético, isto vale para os seres humanos. Embora a psicologia diferen- 
cial tenha implicitamente desafiado este ponto de vista, o passo me- 
todológico de dividir todos os seres humanos em subclasses ainda 
não se mostrou útil. 

Se existissem algumas leis psicológicas estritas que fossem váli- 
das para todos os seres humanos, ou para todos os membros de uma 
subclasse, estas leis provavelmente seriam muito especiais. Primeiro, 
elas seriam verdadeiras em uma generalidade superficial (todos os 
seres humanos podem aprender ou ser condicionados), e não se- 
riam mais informativas que afirmações analíticas como “todos os ob- 
jetos físicos são extensos”. Em segundo lugar, se existem algu- 
mas leis gerais, elas seriam válidas em campos empíricos reduzidos, 
que não são considerados como sendo particularmente importantes 
para resolver os problemas da vida cotidiana (“as pupilas se dilatam 
durante a excitação sexual”). Mas quando chegamos a fatos social- 
mente relevantes, as leis são muito menos sólidas, como é verdade 
para o desenvolvimento da segregação sexual em alunos de pré-es- 
cola (LaFrenière et al . , 1 984), ou para a maior agressividade dos ma- 
chos comparados com as fêmeas (Eagly, 1987; Eaton & Enns, 1986). 
Embora este último fenômeno tenha sido observado em quase todas 
as sociedades, estatísticas inferenciais são empregadas para pro- 
vá-lo. Galileu não necessitou de estatísticas inferenciais para provar 
a lei da gravidade. 

A psicologia provavelmente nunca irá atingir o estado niltoniano 
de um sólido sistema de leis naturais. Ela se comporta, contudo, como 
se isto fosse possível: hipóteses são testadas como se elas fossem leis. 
Se a variância não é totalmente explicada, como é geralmente o caso, 
presumem-se fatos adicionais, mas ainda desconhecidos, como sendo 
os responsáveis. Tudo o que não pode ser definitivamente explicado 
de algum modo, contudo, é chamado de erro de variância. Este enfo- 
que metodológico está a uma enorme distância da compreensão das 
leis naturais como uma agregação de uma enorme massa de aconteci- 
mentos, baseados na probabilidade, que ocorrem naturalmente. Ao 
contrário, a agregação é compreendida como um artifício metodoló- 



— 165 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



gico de filtrar leis existentes por debaixo de uma capa fenomenológi- 
ca irregular e não como um meio de constituí-las. 

Se nós tomarmos com seriedade as leis como resultado de uma 
constituição por agregação - conseguida tanto natural, quanto arti- 
ficialmente - então nós devemos assumir um enfoque metodológico 
diferente com relação a acontecimentos que ocorrem naturalmente 
e diferentes interpretações teóricas deles. O seguinte cânon metódi- 
co e metateói ico adota esta visão e pode ser considerado como a fun- 
damentação conceptual da bemetologia'. 

1 . A essência de uma lei natural é um caso de fusão ou de agrega- 
ção, de imensos fenômenos naturais massivos fundamental- 
mente acionados pela probabilidade. 

2. Ser acionado pela probabilidade não implica, necessariamen- 
te, indeterminação. Um acontecimento natural singular, total- 
mente imprevisível, poderia, contudo, ser determinado por fa- 
tores tanto locais quanto próximos. Determinismo, neste sen- 
tido, é compatível com probabilidade no sentido de imprevisi- 
bilidade e não deve ser igualado a predeterminismo. 

3. Há acontecimentos que ocorrem naturalmente e outros que 
são gerados artificialmente. A queda livre e o movimento das 
moléculas de gás e das partículas atômicas são objet os ou acon- 
tecimentos, que ocorrem naturalmente. Se, por razões de pes- 
quisa, estes eventos são isolados, eles conservam seu caráter de 
acontecimentos naturais e não artificiais. Caso contrário, o tó- 
pico que está sendo investigado muda. Para a psicologia, isto é 
muito mais difícil de conseguir do que para a física clássica. Os 
exemplos de queda livre que Galileu investigou em Pisa eram 
tão naturais como uma maçã caindo de uma árvore. Contudo, 
acontecimentos gerados artificialmente não ocorrem na natu- 
reza. Eles são construídos, ou induzidos, pelo pesquisador: por 
exemplo, a resposta a um questionário de personalidade ou a 
um item de um teste de inteligência. Ambos os tipos de aconte- 
cimentos - naturais e artificiais - podem ser agregados em leis 
empíricas. Mas se alguém está interessado em leis naturais em- 
píricas, os dados para a agregação devem ser também naturais. 
E isto que a bemetologia está procurando. 

4. A agregação pode trabalhar em todos os níveis da predicação 
em cascata: ao nível dos objetos, predicadores, valores de pre- 
dicador e valores de tempo. A agregação quantitativa, assim 



— 166 — 




7. Bemetologia... 



como a qualitativa, é possível também ao nível cie valores cie 
predicador e valores cie tempo. 

5. Do mesmo modo que existem dois tipos de dados, assim há 
também dois tipos de agregação: um é conseguido pela pró- 
pria natureza e o outro - o tipo artificial - é conseguido pelos 
métodos agregativos do pesquisador. Ambos podem levar a 
leis empíricas. Combinados com os dois tipos de dados, quatro 
diferentes casos podem ser imaginados: 

a) Agregação natural de dados naturais leva a leis naturais, 
como na lei de Boyle. 

b) Agregação natural de dados artificiais parece ser impossível. 

c) Agregação artificial de dados naturais é o que a meteorolo- 
gia consegue, por exemplo, computando a média de tem- 
peraturas através dos meses (agregação no tempo) para tes- 
tar se existe uma lei regular ou uma tendência semelhante a 
uma lei natural no aquecimento da atmosfera. Este enfoque 
conduz a leis quase-naturais. 

d) Agregação artificial de dados artificiais conduz a leis artifi- 
ciais, como a da estabilidade da inteligência medida por tes- 
tes de inteligência. 

6. As leis empíricas são específicas da combinação de diferentes 
tipos de resolução - quantitativa ou qualitativa - e de diferen- 
tes graus de resolução. Como um contraprocesso à agrega- 
ção, a resolução abre um conjunto de dados, por sua vez uma 
visão de realidade, que é possivelmente governado pela pro- 
babilidade. 

7. Devido ao fato de que, diferentemente da física, o funciona- 
mento psíquico real de um indivíduo não é afetado, enquanto 
sabemos, por enormes quantidades de eventos agindo em con- 
junto e simultaneamente, nós raramente encontramos leis em- 
píricas que sejam válidas para indivíduos singulares. Em ou- 
tras palavras: a ausência de agregação natural de massas de 
eventos naturais ocorrendo simultaneamente a um nível indi- 
vidual explica por que a psicologia não tem leis naturais estri- 
tas. Para pelo menos se aproximar destas leis naturais, é obri- 
gatória uma agregação de acontecimentos que ocorrem natu- 
ralmente. Isto é o que a bemetologia se propõe fazer. 



— 167 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



8. A maioria das regularidades encontradas na psicologia é o re- 
sultado de uma agregação de indivíduos ao nível do objeto da 
predicação em cascata. Conseqüentemente, estas regularida- 
des são válidas, inicialmente, somente para um agregado de 
indivíduos, e não para um indivíduo singular. 

9. Se forem buscadas leis empíricas naturais - regularidades na- 
turais - para indivíduos singulares, a agregação não é permiti- 
da ao nível do objeto, mas deve entrar em cena em todos os ou- 
tros níveis da predicação em cascata: aos níveis dos predicado- 
res naturais, dos valores do predicador natural, ou dos valores 
de tempo. 

10. Para determinar leis empíricas naturais que sejam válidas 
para indivíduos, a estratégia mais importante é, provavelmen- 
te, a agregação intra-individual através do tempo. 

1 1. Não há, a priori, uma importante doutrina que nos diga qual 
combinação, seja de resolução ou agregação, produz os resul- 
tados mais regulares, isto é, as melhores leis empíricas. 

12. Conseqüentemente, em vez de teste de hipótese baseado em 
teoria, que se apóia na lógica, é absolutamente crucial a mani- 
pulação intuitivo agregativa de grandes quantidades de dados 
produzidos naturalmente. Isto pode ser conseguido pela com- 
binação de diferentes graus e diferentes tipos de resolução 
com a ajuda de computadores e de um software eficiente. Tal 
enfoque “artístico” é possível apenas porque nós podemos 
usar computadores. 

13. Finalmente, não há garantia de que a agregação conduza ne- 
cessariamente a leis empíricas. 

A essência destes pontos é um modelo bemetológico para a aquisi- 
ção de dados que irá aplicar o padrão de resolução seguinte: 

• Ao nível dos objetos: observe um objeto singular — uma pessoa, 
uma díade, um grupo de pessoas interagindo, ou mesmo uma 
situação. 

• Ao nível dos predicadores: observe um comportamento deste 
objeto singular que ocorra naturalmente. 

• Ao nível dos valores de predicador: observe alguns poucos va- 
lores qualitativos deste comportamento. 



168 — 




7. Bemetologia... 



• Ao nível do tempo: observe continuamente durante várias 
etapas de tempo, repetidamente durante longos períodos de 
tempo. 

Devido ao fato deste enfoque possibilitar a agregação artificial, 
durante um período de tempo, de valores de comportamento que 
ocorrem naturalmente, ele estaria à busca de leis quase-naturais. Se, 
como no esboço acima, nenhuma informação adicional é considera- 
da, a lei resultante será uma lei substantiva. De acordo com as teses 
da especificidade, as leis resultantes - se alguma for encontrada - so- 
mente serão válidas para a combinação específica de tipos e graus de 
resoluções aplicadas. Isto é, o resultado será válido em primeiro lu- 
gar somente para o objeto singular sob investigação. E mais, o resul- 
tado será válido apenas para o bloco de tempo agregado como um 
todo. Se, além disso, valores de predicador são agregados, nova- 
mente o resultado é válido apenas para este padrão de resolução. 

O modelo mínimo para a aquisição de dados bemetológicos como 
esboçado acima, é semelhante ao usado pelas ciências de observação 
como a astronomia e a meteorologia, que não manipulam seus obje- 
tos: o monitoramento contínuo da radiação do fundo cósmico e da 
temperatura, umidade e pressão de nossa atmosfera são exemplos 
desse modelo. O modelo predominante em psicologia, contudo, 
agrega ao nível dos objetos: poucos dados de muitos indivíduos são 
agregados em médias de grupos. De acordo com as teses da especifi- 
cidade, isto produz resultados que são válidos, em um sentido estri- 
to, para agregados de objetos, e não para indivíduos como objetos. 
Isto impede a transferência de resultados científicos para a prática, 
porque a psicologia está muitas vezes mais interessada nos indiví- 
duos do que em agregados deles. 

Conseqüências para a pesquisa em personalidade 

Falando de maneira clássica, a inteligência e a personalidade são 
concebidas como um feixe de atividades trabalhando no escuro para 
produzir desempenhos pessoais ou comportamento pessoal. Uma teo- 
ria dinâmica, como a teoria psicanalítica, verá estas atividades como 
entidades psíquicas auto-ativas, enquanto que uma teoria metodoló- 
gica, como a teoria dos traços, as vê como dimensões latentes, com 
respeito às quais uma pessoa pode ser caracterizada quantitativamen- 
te. Estes escores quantitativos são vistos como constantes, represen- 
tando faculdades ou qualidades individuais que ajudam ou impedem 



— 1 69 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



a pessoa na solução de problemas, ou de se comportar de determina- 
do modo. A segunda visão é tida como sendo a mais importante, ao 
menos na psicologia. Especificamente, o conceito de dimensão mui- 
tas vezes considera tais atividades como unidades de simplicidade ho- 
mogênea, em contraste com unidades de diversidade que são, em si 
mesmas, heterogêneas (Fassnacht, 1982: 66; 1995: 115). 

Quando alguém está medindo estes traços latentes, um escore da 
personalidade concreta ou de desempenho é constituído de duas par- 
tes: seu valor verdadeiro e seu valor de erro. Tradicionalmente, o va- 
lor verdadeiro é entendido como sendo constante e, por isso mesmo, 
característico de uma pessoa. A existência de uma constante em um 
objeto pode ser considerada como sendo uma lei empírica substantiva 
para este objeto. O componente de erro, contudo, é considerado 
como sendo governado pela probabilidade. Mas isto é diferente da- 
quilo que foi elaborado acima como sendo o ponto de vista bemetológi- 
co . De acordo com a bemetologia , a força controladora de uma lei natu- 
ral não é registrada nos bastidores, mas é o resultado macroscópico 
planejado de um processo de agregação de diferentes acontecimen- 
tos de probabilidade única. Ela não é apenas erro de variância, mas 
também verdadeira variância governada pela probabilidade. Tudo o 
que contribui, ou mesmo impede um desempenho ou um comporta- 
mento, é considerado como sendo um suplemento verdadeiro. Se mui- 
tos acontecimentos que contribuem para isso estão em ação, ou se 
muitos deles são agregados artificialmente através do tempo, o con- 
torno de uma lei empírica pode provavelmente, mas não necessaria- 
mente, emergir. Em outras palavras, o conceito de variância de erro, 
como alimentado exclusivamente por uma grande quantidade de di- 
ferentes acontecimentos baseados na probabilidade, e vice-versa, o 
conceito de variância verdadeira, construído a partir de entidades 
monolíticas cristalinas puras, deve ser revisado. 

Tomemos a inteligência como um exemplo extremo. Na maioria 
das vezes, a inteligência é concebida como sendo um feixe de traços 
quantificáveis latentes que pouco mudam através do tempo, mas são 
mascarados por fatores perturbadores. Isto é bem diferente de um 
ponto de vista bemetológico : a inteligência seria medida na base de 
acontecimentos que ocorrem naturalmente e o QI seria o resultado 
de uma agregação que ocorre naturalmente. A mensuração conven- 
cional do QI é uma agregação artificial de acontecimentos artificiais. 
Em nossa terminologia, a afirmação “a inteligência é estável” é uma 
lei empírica artificial. 



170 — 




7. Bemetologia... 



Quando ela foi primeiramente teorizada, a inteligência foi conce- 
bida como um fenômeno bifatorial, que compreendia um fator geral 
g e fatores de teste específicos s. Desenvolvimentos teóricos e metodo- 
lógicos posteriores trouxeram à consideração aspectos adicionais, 
como compreensão verbal, raciocínio lógico, habilidade espacial e as- 
sim por diante. Estes são ainda vistos como sendo quantidades di- 
mensionais, contribuindo para um valor global, verdadeiro, duradou- 
ro de inteligência. Se forem encontradas variações de escores de inte- 
ligência, elas são interpretadas como uma influência passageira de fa- 
diga ou talvez uma falta momentânea de concentração ou motivação. 
Mas na vida, onde comportamento “inteligente” e desempenhos "in- 
teligentes” são exigidos, fatores como concentração, motivação, fadi- 
ga ou mesmo influências situacionais são importantes. Para dar conta 
destes problemas e reduzir a variância de erro um passo além, estes 
próprios fatores são normalmente levados em consideração, inte- 
grando-os também como quantidades dimensionais. 

De um ponto de vista metodológico, tal enfoque é correto. Ele 
corre o risco, contudo, de que dimensões quantitativas como tais - 
embora ligadas a palavras compreensíveis - percam todo seu senti- 
do concreto. Qual é seu status ontológico? Existe nas pessoas um ob- 
jeto real, embora oculto, que nós chamamos inteligência? Tais di- 
mensões da inteligência são, sem dúvida, construções que são - mui- 
tas vezes de maneira muito paradoxal - pressupostas existirem 
como essências quantitativas, em um mundo real. Dizer que isso se- 
riam disposições, apenas leva o problema à questão análoga de se sa- 
ber qual seria o status ontológico das disposições. Seriam tais disposi- 
ções objetos quantitativos - dimensões contínuas - ou seriam elas 
objetos qualitativos: um corpo organizado de acontecimentos, cog- 
nições, sentimentos, comportamentos e estruturas fisiológicas e neu- 
rológicas discretos, bem como substâncias químicas, cada uma delas 
com uma intensidade definida e uma extensão finita? 

Considerações como estas levantam a questão crucial: Como 
podemos conhecer se a realidade psicológica é melhor compreen- 
dida como contínua, ao invés de discreta? Parecem existir duas 
vantagens muito pequenas, mas importantes, da visão discreta so- 
bre a contínua. Primeiro, a perspectiva discreta se fundamenta em 
fatos psíquicos singulares concretos, tais como um motivo, um sen- 
timento, uma cognição ou um comportamento. Embora os contor- 
nos destas unidades sejam muitas vezes vagos, eles podem ser con- 
cretamente experienciados ou observados. Em segundo lugar, uma 

— - 171 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



perspectiva discreta é possível de ser quantificada. Por outro lado, 
se nós partimos das dimensões, perdemos, muitas vezes, os senti- 
dos indicativos concretos. Dimensões se mantêm como atividades 
obscuras que são consideradas como tendo uma função facilitadora 
ou inibidora. O preço que pagamos por tal exercício silencioso é 
uma duplicidade intransponível de nosso mundo: leis estão agindo 
nos bastidores, enquanto que no palco está acontecendo o turbu- 
lento espetáculo de particulares. 

O que pode ser objeto de compreensão são acontecimentos sin- 
gulaies concietos. E por esta razão, ao menos de minha parte, eu 
prefiro a perspectiva discreta. Esta perspectiva é também compatí- 
vel com o ponto de vista bemetológico, que explica leis naturais, bem 
como artificiais - não como na visão tradicional, como uma extra- 
ção, mas como uma agregação ou fusão de acontecimentos singula- 
res concretos. 

Dois exemplos de um enfoque bemetológico com respeito 
à personalidade 

Penso que haja boas razões para supor que os conceitos de inteli- 
gência e de personalidade, quando medidos por testes ou questioná- 
rios, sejam cientificamente aceitáveis, e que seja possível definir tais 
noções gerais com fundamento em acontecimentos concretos que 
ocorrem naturalmente. Por isso devemos tentar, mesmo que seja um 
programa difícil e de longo alcance que poderá permanecer descri- 
tivo na maioria das vezes. 

O grande problema antes de testar qualquer hipótese é, na ver- 
dade, como captar acontecimentos experienciais, comportamentais 
e sociais, de tal modo que eles possam ser trabalhados cientificamen- 
te. Dois caminhos se apresentam. O primeiro implica situações na- 
turais que já existem, em que alguém pode usar técnicas e equipa- 
mento de computação para coletar acontecimentos ou situações que 
ocorrem naturalmente, tanto através de protocolos pessoais (Perrez 
8c Reicherts, 1992), ou com a ajuda de observadores. Este enfoque 
pode ser chamado de “modelo circular”. 

O segundo caminho constrói primeiramente ambientes sociais 
permanentes físicos, técnicos e naturais, de tal modo que a coleta de 
dados se torne fácil. Este enfoque pode ser realizado através de ins- 
talações de recursos especiais físicos, técnicos e sociais, dentro de 
instituições tais como hospitais, escolas ou jardins de infância. No 



— 172 — 




7. Bemetologia... 



Departamento de Psicologia de Berna há um modelo singular desse 
tipo - o BEO (Behavioral Obseruation) site - construído para controle 
de diagnóstico de campo e para pesquisa de campo (Fassnacht, 
1995: 298s; Haehlen & Neuenschwander, 1998). Embora, pelo fato 
de ser permanente, esteja restrito a uma instituição particular, este 
recurso possui a grande vantagem de ser funcional, controlável e 
instantaneamente adaptável. A grosso modo, ele é semelhante à 
construção de radiotelescópios, satélites e estações meteorológicas 
que monitoram continuamente dados naturais relevantes. Eu o cha- 
mo de “modelo estacionário”. 

Ambos OS enfoques são modelos de diagnóstico de campo e se 
apoiam fortemente em novas tecnologias ou são forçados a desen- 
volver eles mesmos novas tecnologias. O desenvolvimento de tecno- 
logias distintivas é algo muito comum para cientistas naturais: pare- 
ce ser seu trabalho predominante e concreto. Em psicologia, os pes- 
quisadores estão normalmente preocupados com teorias. O desen- 
volvimento tecnológico é muitas vezes cognitivamente mais exigen- 
te, e - ao menos em psicologia - ele é menosprezado como sendo 
não científico e deste modo relegado aos técnicos. Esta avaliação ne- 
gativa impede a pesquisa científica que, de outro modo, já teria sido 
possível há muito tempo (Fassnacht, 1974; 1995: 27 ls). 

Os dois estudos paradigmáticos que se seguem representam as 
duas maneiras de coleta de acontecimentos que ocorrem natural- 
mente. Ambos se relacionam a um dos cinco grandes fatores de per- 
sonalidade (Goldberg, 1981; 1990). 

O modelo circular 

O exemplo do modelo circular mostra como foi realizada uma 
descrição contínua da emocionalidade - fator IV dos cinco grandes - 
de uma única pessoa (Jori, 1997). Durante três meses, Jori automo- 
nitorou seus sentimentos continuamente, desde quando ela se le- 
vantava pela manhã, até ao deitar à noite, dia após dia. Antes de co- 
meçar seu período de três meses de coleta de dados, ela desenvolveu 
um esquema de codificação com 35 unidades qualitativas de senti- 
mento. Elas eram mutuamente exclusivas, representando um autên- 
tico sistema de categorização. Para cada momento, havia uma, e 
apenas uma categoria válida possível. Codificou também se ela po- 
deria detectar o tipo de acontecimento que provocou o sentimento 
específico: social, externo, interno, ou sem um agente provocador 



173 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



conhecido. Este desempenho ingente foi conseguido conjuntamen- 
te com sua atividade diária como estudante. Logo que ela percebesse 
que seu estado emocional estivesse mudando, codificava este novo 
estado e o tipo de agente provocador. 

A coleta de dados foi feita com um Newton Message Pad (Ma- 
cintosh), que Jõri carregava com ela por todo o lugar. Dois menus 
permitiam acesso à lista de categorias de sentimentos e dos eventos 
desencadeadores. O equipamento básico foi exaustivamente testa- 
do para coleta de dados geológicos de campo e adaptado para 
transferir dados dos códigos de sentimento para um PC. A inter- 
pi etação dos códigos em unidades significativas e a manipulação 
dos dados no PC foram realizadas de acordo com o esquema de 
predicação em cascata pelo pacote de programas BEDAMAN (Fass- 
nacht, 1997). Jõri acumulou e computou 2.360 eventos de senti- 
mentos por 93 dias consecutivos. 

Argumentos substanciais contra tal enfoque foram apresentados 
desde os primeiros dias da introspecção: uma contínua auto-atenção 
consciente é impossível, de tal modo que a auto-atenção deve ser vis- 
ta principalmente como sendo muito insignificante e sendo alterada 
somente quando um sentimento se torna sobremaneira predomi- 
nante sobre outros eventos da consciência. A própria auto-atenção 
pode ter sido influenciada pelo fluxo dos sentimentos. Tudo isto é 
verdadeiro e muito conhecido. Mas um dos objetivos de Jõri foi ver 
se tal retroalimentação dinâmica poderia ser detectada pela análise 
seqüencial de séries de tempo, o que foi, concretamente, o caso. Mas 
além disso, ela encontrou uma grande quantidade de sentimentos 
“ruidosos”, que não poderiam ser explicados nem por uma retroali- 
mentação dinâmica, nem por algum outro evento desencadeador. E 
através da agregação por períodos de tempo, comparando o segun- 
do com o terceiro mês da coleta de dados, ela descobriu que sua dis- 
tribuição de sentimentos era relativamente estável: a correlação das 
freqüências absolutas foi r = 0.85, e a correlação do tempo absoluto 
de cada sentimento anotado foi r = 0.89. 

O modelo estacionário 

O exemplo para o modelo estacionário se relaciona com o fator I 
dos cinco grandes, extroversão/oscilação, e estudou a sociabilidade. 
De acordo com o conceito EAS (Emocionalidade, Atividade e Socia- 
bilidade) de Buss & Plomin (1984), a sociabilidade é considerada 



— 174 — 



7. BEMETOLOGIA... 



como a faceta principal do temperamento. Como tal, espera-se que 
ela se desenvolva bem cedo na infância e que seja relativamente está- 
vel no tempo. A pergunta feita era: a estabilidade observada natural- 
mente, através de um sistema qualitativo de codificação, muda in- 
tra-individualmente através do tempo? 

Para tentar dar uma resposta, Baumgartner et al . (1997) observa- 
ram a variação intra-individual do comportamento social de três cri- 
anças de três anos de idade, ocupadas em brincar livremente no BEO 
de nosso depaitamento. Tres lados do pátio pentagonal foram cons- 
truídos com janelas de espelho e os outros eram janelas normais. O 
quai to tinha OS brinquedos comuns — blocos, bonecas e objetos mó- 
veis como cartas e carrinhos de boneca. Cada brinquedo era colocado 
em um local específico e depois da sessão o professor os recolocava no 
mesmo lugar, de tal modo que as crianças os encontrariam sempre no 
mesmo local espacial. Havia uma mesa em uma posição normal, onde 
o café era servido, e que era usada também para brincar. 

Geralmente, o comportamento foi codificado ao vivo por até 18 
observadores, colocados atrás das janelas de espelho em um enorme 
registrador de eventos, possuindo 512 canais divididos em unidades 
com teclado de diferentes tamanhos (Zaugg, 1994). A configuração 
e as designações dos teclados, em termos do sistema cie codificação e 
os nomes dos observadores e das crianças, foram manipulados pelo 
programa BEDAMAN (Fassnacht, 1997). Para controle rápido, o 
comportamento era registrado em vídeo de diferentes perspectivas 
por quatro câmeras. O tempo de codificação das gravações era o 
mesmo que o usado pelo BEDAMAN. Normalmente, as gravações 
são usadas apenas para coletar protótipos de comportamento. 

No estudo, três meninas (Fl, F2, F3) e um menino (M4) foram 
observados pelo período de seis meses, em 1997. Todos vinham ao 
mesmo jardim para 12 crianças no observatório BEO, nas manhãs 
das segundas e sextas-feiras, das 9:00 ao meio dia. O café era das 
10:00 às 10:15. Com o desenrolar do estudo, a composição do jar- 
dim mudou distintamente: apenas cinco das 12 crianças permanece- 
ram - entre elas todos as quatro crianças do estudo - e sete novas se 
juntaram ao estudo. Por esta razão, o estudo foi dividido em duas si- 
tuações sociais: o grupo antigo e o grupo novo. Um único e mesmo 
professor esteve envolvido durante o estudo, e se comportou mais 
passivamente, de tal modo que as crianças se entretinham livremen- 
te com o brincar. 



— 175 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Oito observadores fizeram observações ao vivo entre 11:00 e 
12:00. Ao todo, 37 sessões foram realizadas, resultando em aproxi- 
madamente 33 horas de observação por criança. Cada criança foi 
observada simultaneamente por dois observadores durante todo o 
estudo, e cada observador sempre observava a mesma criança. Du- 
rante a codificação, dois estudantes gravavam em vídeo e editavam 
comportamentos prototípicos como referências. Através de um có- 
digo de tempo e data, os vídeos e os dados MCR (Mulü-Channel Re- 
coidei) foiam sincronizados. O sistema de categorias foi construído 
a partir dos seguintes 12 códigos, mutuamente excludentes: 

Participação social: não 

1 . Ocupado sozinho: a criança está só e ocupada com uma ativida- 
de específica aparentemente importante. A criança não pode 
ser distraída. Sua atividade é importante contanto que ela faça 
algo, mesmo que a atividade não seja compreensível para o ob- 
servador, ou que o assunto da atividade não possa ser identifi- 
cado ou designado. A criança representa algo enquanto está 
jogando ou usa brinquedos, mas sempre age ou anda ao redor 
por conta própria. 

2. Girando ao redor sozinha: a criança age por conta própria, mas 
diferentemente da categoria 1, sem representar nada. Exem- 
plos: andando ao redor aparentemente sem nenhum fim, olhan- 
do ao redor indecisa, ou sentando sem companhia. A criança 
parece aborrecida. 

3. Sozinha, assistindo às cenas: olhando sozinha as outras crianças 
ou o professor. A atenção está dirigida aos outros: o olhar da 
criança está vagando. Olhar em dupla e interrompendo uma 
atividade para dar uma rápida olhada ao redor não fazem par- 
te deste código. A observação da criança pode ser claramente 
reconhecida como sua ocupação principal. 

4. Sozinha, incerta : este código é dado se a criança claramente de- 
monstra uma não participação, e nenhum dos códigos anterio- 
res (1, 2, 3) se aplica. 

Participação social: sim 

5. Comportamento paralelo 1: atividade simultânea, idêntica. Exem- 
plos de comportamento adulto: assistir TV junto; ler o jornal 

— 176 — 




7. Bemetologia... 



junto; sentar junto em um café. Exemplos de comportamento 
de criança: sentar junto em uma mesa; sentar junto em uma 
fila, ao longo da parede ou da janela; comportamento de par- 
tilhar o assistir, isto é, dirigido ao mesmo objeto; escrever, pin- 
tar ou misturar algo junto, mas individualmente. As interações 
são raras. 

6. Comportamento paralelo 2: comportamento equiparado, idênti- 
co, que revela referência mútua ou consideração recíproca. 
Exemplos: fazer ruído juntos, correr ao redor juntos, fazer a 
mesma coisa mas em sucessão. Diferentemente da categoria 
05, as interações são mais freqüentes. 

7. Comportamento interativo fracamente associado: comportamento 
organizado dissímile, comportamento mutuamente relaciona- 
do e coordenado sem ser claramente interpretável para o ob- 
servador. A razão do comportamento pode ser identificada e 
designada apenas parcialmente, ou não pode ser identificada 
de modo algum. 

8. Desempenho de papel, designação distinta: comportamento orga- 
nizado dissímile, mutuamente relacionado e coordenado, com 
uma divisão de trabalho ou de tarefas. O comportamento é in- 
terpretável para o observador; a razão do comportamento é 
identificável e pode ser mostrada. O comportamento defmiti- 
vamente representa algo. Exemplos: esconde-esconde, circo, 
praticar exercícios físicos, brincar com um aparelho de trem, 
brincar de médico, etc. 

9. Participação social confusa: este código é dado a uma criança 
que claramente mostra uma participação social e os quatro có- 
digos anteriores (5, 6, 7, 8) não se aplicam. Por exemplo, o se- 
guinte caso é confuso: duas crianças estão juntas em uma casa 
mas não podemos ver o que elas estão fazendo. 

Participação social: decisão impossível 

10. Criança fora de vista: a criança está temporariamente fora do 
jardim ou está escondida. 

1 1. Geralmente confuso: o comportamento e a situação são geral- 
mente confusos. Nenhum dos códigos acima se aplica. O códi- 
go deve ser reservado para quando os observadores estão real- 
mente incertos. 



— 177 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



12. A criança ou o observador ausentes: a criança ou o observador 
chegam tarde, vão para casa antes do fim do período de obser- 
vação, ou estão ausentes durante todo o período. 

Para uma visão geral, foi computado o percentual de tempo que 
cada criança despendeu nas diferentes categorias durante todo o pe- 
ríodo. Devido ao fato de que para a categoria 10 (fora de vista) e 
para a categoria 12 (observador ou criança ausentes) as computações 
não terem sentido, estas categorias foram deixadas fora. Como cada 
criança era observada duas vezes, a computação foi feita duas vezes 
Os resultados são mostrados na Figura 7. 1 . Como a categoria 1 1 (ge- 
1 almente incei to) praticamente nunca fosse usada por nenhum dos 
observadores, não está representada na figura. As barras que se so- 
brepõem representam dois observadores. 

Primeiramente, pode-se ver que, com exceção do par F e H, os 
observadores fornecem perfis similares para a mesma criança. Em 
segundo lugar, os perfis das crianças - seu comportamento social - 
diferem marcadamente. Em terceiro lugar, há uma tendência geral 
de algumas categorias de empregarem mais tempo que outras. De 
modo especial, a proporção da categoria 9 (participação social de 
tipo obscuro) é alta para todas as crianças. Isto não é provavelmente 
um efeito do observador, porque, com uma exceção, os observado- 
res concordam em grau elevado nesta categoria. Assim, é o próprio 
comportamento que parece ambíguo e, como pode ser visto, as cri- 
anças diferem na exibição deste comportamento social ambíguo du- 
rante todo o período. Poder-se-ia especular que a categoria 9 - com- 
portamento social ambíguo (CSA) - é uma categoria qualitativa des- 
conhecida para a qual não existe ainda designação definida. E por- 
que a própria teoria do comportamento social é insuficientemente 
precisa para inferi-la, este comportamento somente poderia ser des- 
coberto por acaso e por um enfoque observacional qualitativo. 

Além de tais especulações, o enfoque bemetológico presta-se muito 
para questões de estabilidade e consistência em uma base intra-indi- 
vidual ampla. Se os perfis encontrados são característicos de uma 
criança, eles devem ser estáveis no tempo e nas situações. Isto foi es- 
tudado dividindo-se todo o período em quatro intervalos. Duas si- 
tuações sociais (grupo velho versus grupo novo) foram comparadas 
para computar consistência trans-situacional. Dentro de cada situa- 
ção, uma divisão posterior foi feita para avaliar a estabilidade tem- 
poral (ver o debate sobre consistência: Mischel, 1968; 1973; Epstein, 



— 178 — 




7. Bemetologia... 



F1 observada por AeC 

Q. 40 1 - • • 




í 2 3 4 5 6 7 

Categorias de sociabilidade 



50 1 — 

F2 observada por B e D 




12345 6 783 

Categorias de sociabilidade 



50 




1 2 3 4 5 6 7 

Categorias de sociobilidade 



50 ■; 

M4 observada por F e H 




Categorias de sociabilidade 



Figura 7.1- Percentual de tempo despendido em cada categoria de sociabilidade du- 
rante todo o período. 



179 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



1979; 1980). Os intervalos consecutivos resultantes foram: período 
do grupo velho 1 (2 1 de abril a 28 de maio), período do grupo velho 
2 (29 de maio a 4 de junho), feriados (5 de junho a 17 de agosto), pe- 
ríodo do grupo novo 3 (18 de agosto a 10 de setembro), e período do 
grupo novo 4 (11 de setembro a 24 de outubro). Correlacionando 
intra-individualmente o perfil de cada um dos intervalos com cada 
um dos outros, tem-se como resultado seis comparações por criança. 
Duas comparações se referem à estabilidade temporal, e quatro à 
consistência trans-situacional. Isto é o que Cattell (1957) chama de 
técnica-O. A Tabela 7.2 apresenta os resultados. 

Tabela 7.2 — Correlação intra-individual entre quatro ocasiões em diferentes 
categorias: técnica-O de correlação (medida: percentual de tempo despendido em 
1 0 categorias) 



Estabilidade temporal Consistência trans-situacional 





Grupo 


Grupo 


Velho- 


Velho- 


Velho- 


Velho- 




velho 


novo 


novo 


novo 


novo 


novo 




Período 


Período 


Período 


Período 


Período 


Período 




1-2 


3-4 


1-3 


2-4 


2-3 


1-4 


Criança 


r P 


r P 


r P 


r P 


r P 


r P 



Fl 


0.83 


ss 


0.92 


sss 


0.79 


Ss 


0.90 


sss 0.83 


ss 


0.86 


ss 


F2 


0.75 


s 


0.59 




0.85 


Ss 


0.19 


0.74 


s 


0.69 


s 


F3 


0.99 


sss 


0.81 


ss 


0.71 


S 


0.98 


sss 0.70 


s 


0.96 


sss 


M4 


0.92 


sss 


0.65 


s 


0.74 


S 


0.50 


0.61 




0.78 


ss 



s: se r>.63, então p<.05, ss: se r>.76, então p<.01, sss: se r>.87, então 
<. 001 . 



A tabela é aberta a muitas interpretações e especulações. Três 
delas devem ser imediatamente apontadas porque elas demonstra- 
ram a utilidade do enfoque bemetológico . Primeiro, a estabilidade do 
comportamento social parece ser uma característica individual das 
quatro crianças durante o período observado. Duas crianças (Fl, F3) 
parecem mostrar um comportamento muito estável, e duas (F2, M4) 
são neste ponto menos estáveis. Em segundo lugar, como era de se 
esperar, a renovação parcial do jardim resultou em uma desestabili- 
zação dos perfis de comportamento social (comparações dos perío- 
dos 1 e 3, 2 e 3). Isto acontece provavelmente porque as estruturas 
sociais dentro do grupo tiveram de ser negociadas com os que che- 
gavam. Em terceiro lugar, no fim do período de observação, as es- 



— 180 — 



7. Bemetologia... 



truturas originais dos perfis das quatro crianças sênior pareceram ser 
restabelecidas (comparações dos períodos 1 e 2, 1 e 4). 

Conclusão: demos uma chance à descoberta e à mudança 

Argumentou-se que as leis empíricas podem ser interpretadas 
como uma agregação de enormes quantidades de acontecimentos 
de probabilidade. Pelo que sabemos, não existe em ação tais quanti- 
dades de eventos durante o funcionamento psíquico concreto, como 
é o caso na Física Clássica. Isto pode explicar por que nós não encon- 
tramos leis naturais estritas na psicologia. 

Mas a noção de fatores de personalidade latente como dimen- 
sões, isto é, de objetos quantitativos, pressupõe que leis psicológicas 
sejam características existentes nos bastidores, disfarçadas por com- 
portamentos de superfície que são interpretados como sendo, até 
certo ponto, acontecimentos aleatórios. Conseqüentemente, instru- 
mentos de medida são projetados para detectar estes estados está- 
veis. Se abandonarmos esta conjetura, que na verdade provém da 
antiga noção filosófica de identidade de uma pessoa, não há mais 
necessidade de procurar fatores gerais de personalidade que se su- 
punham válidos, estáveis e os mesmos para todos os indivíduos. De- 
vido ao fato de que não se pode responder empiricamente à pergun- 
ta sobre que cognições, motivos, sentimentos e comportamentos de- 
vem ser vistos como facetas da personalidade, podemos, ao invés 
disso, decidir esta questão através da convenção. A emocionalidade, 
sociabilidade ou quaisquer outros aspectos psicológicos são prova- 
velmente chamados de fatores de personalidade pelo fato de, em 
nossa cultura e sociedade, serem estimados como características im- 
portantes. Esta decisão quase arbitrária, mas fundamentada cultu- 
ralmente, não ignora a possibilidade de constância. Ela apenas sig- 
nifica, em primeira mão, a concessão de que eventos psicológicos 
envolvem negociação. 

Apesar disso, a constância é ainda possível em três diferentes ní- 
veis de generalidade. O mais geral é a regularidade, que deve ser vá- 
lida para todos os seres humanos. Existem dúvidas se algum dia en- 
contraremos uma lei psicológica neste sentido estrito. O segundo ní- 
vel de generalidade pode ser chamado individualidade: ele é o pon- 
to de vista diferencial que procura por leis que são válidas para de- 
terminada cultura, determinada classe de pessoas ou talvez apenas 
para alguns indivíduos. O terceiro e o mais baixo nível de generali- 



— 181 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



dade é a peculiaridade. Como Schrõdinger apontou, leis não são có- 
pias-carbono impressas através de todas as camadas de resolução. 
Por isso os três níveis de generalidade — regularidade, individualida- 
de e peculiaridade, ou “o tripé RIP” - não devem formar uma unida- 
de funcional de tal modo que sejam dependentes um do outro. 

Deste ponto de vista, peculiaridade não tem nada em comum 
com o que geralmente é chamado de lei. Na verdade, peculiaridades 
são estabilidades bem firmadas dentro da psicopatologia. Encontra- 
mos ali, em base individual, todas as variedades de comportamentos 
estranhos, mas estáveis, e por isso mesmo previsíveis, como estereó- 
tipos de movimentos, reações paranóides, reverberações lingüísti- 
cas, alucinações, cognições esquizóides e assim por diante. 

O ponto importante que nós temos ignorado até agora é que 
dentro do espectro da normalidade existem também peculiaridades 
que são provavelmente mais estáveis do que nós admitimos à pri- 
meira vista. Que Maria tem um andar balanceado, que a identifica 
claramente dos outros, que ela tipicamente mantém sua cabeça em 
uma posição levemente inclinada, senta-se na cadeira em uma pos- 
tura cerimoniosa, olha com um olhar extasiado de inocência, ves- 
te-se de uma maneira que chama a atenção, leva a vida a sério, admi- 
ra Schopenhauer, come com a faca na sua mão esquerda e o garfo na 
mão direita, embora use a direita, que ela não gosta de torta de li- 
mão, mas gosta de torta de maçã, que ela é fascinada pela cultura e 
pelo povo Inca, que sua cor favorita é azul-escuro, que ela seguida- 
mente coça sua cabeça quando começa a dizer algo: todas estas são 
características peculiares e estáveis dela. 

Conseqüentemente, constância em termos de peculiaridade é 
um fato muito comum da vida normal. Mas qual de nossos anôni- 
mos comportamentos estáveis peculiares, embora normais, possui o 
maior impacto em nossas vidas individuais, não pode ser respondi- 
do de maneira geral. Alguns comportamentos são irrelevantes, en- 
quanto outros são decisivos. Seria imprudente concluir que peculia- 
ridades normais são fatos superficiais cuja importância está além dos 
regulares, considerados como residindo nas profundezas desconhe- 
cidas de nossas mentes. Rotinas idiossincráticas, comportamentos 
estranhos ou atividades extravagantes de uma pessoa são, muitas ve- 
zes, mais influentes em nossas vidas que qualquer outro fator dos 
cinco grandes. Mas enquanto que os cinco grandes são acessíveis de- 
vido a procedimentos padrões estabelecidos de pesquisa, as leis pe- 
culiares não o são. 



— 182 — 




7. Bemetologia... 



Para captá-las, necessitamos de estratégias de pesquisa e eventu- 
almente de teorias que dêem espaço para acontecimentos de mu- 
dança e de probabilidade, e elas podem ser descritas, talvez ilusoria- 
mente, como qualitativas. A razão pela qual nos sentimos muitas ve- 
zes desconfortáveis em aceitar tal enfoque como científico provavel- 
mente reside em nossa noção implícita do que são leis: algumas pou- 
cas forças quantitativas ondulando homogeneamente por detrás dos 
bastidores de nosso mundo fenomenal e em oposição à sua desor- 
dem superficial. Fugindo desta noção, e vendo leis como uma agre- 
gação massiva de acontecimentos aleatórios, abre-se uma perspecti- 
va alternativa. O enfoque bemetológico tenta fazer isto, começando na 
base do tripé RIP. Embora ambíguo, o RIP não significa o fim pacífi- 
co dos empreendimentos científicos. Levado a sério, ele dá uma 
chance à descoberta e à mudança. 



Passos em direção a uma bemetologia 

1. Selecione um comportamento ou experiência que ocorre natu- 
ralmente para estudo; decida se vai seguir o modelo circulatório 
ou estacionário de observação. 

2. Decida se vai coletar os dados como observador ou com um pro- 
tocolo pessoal. 

3. Decida se vai registrar as observações com lápis e papel, ou usan- 
do dispositivos eletrônicos de gravação (computador pessoal). 

4. Observe uma unidade singular: uma pessoa, uma díade, um gru- 
po interagindo, ou uma situação. 

5. Ao nível do predicador, observe um comportamento/experiência 
da unidade que ocorre naturalmente. 

6. Ao nível dos valores do predicador, observe relativamente pou- 
cos valores qualitativos desse comportamento. 

7. Observe continuamente durante etapas de tempo, repetidamen- 
te por longos períodos de tempo. 

8. Agregue as observações através de unidades, predicadores, valo- 
res de predicador ou no decorrer do tempo, dependendo das 
exigências da análise. 



— 183 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



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186 — 






Parte II 

Enfoques analíticos 
para texto, imagem 
e som 







8 

Análise de conteúdo clássica: 

UMA REVISÃO 



/vlarfín W. Bouer 



Palavras-chave : ambigüidade; indicadores culturais; semana ar- 
tificial; dicionário; CAQDAS; palavra-chave no contexto (KWIC); li- 
vro de codificação; palavra-chave fora do contexto (KWOC); valor 
de codificação; lematização; referencial de codificação; métrica: por 
categoria, ordinal, de intervalo, de razão; patologias de codificação; 
modularidade folha de codificação; delineamento paralelo; unida- 
de de codificação; amostragem aleatória; coerência; dilema fidedig- 
nidade-validade; análise com auxílio de computador; unidade de 
amostragem; concordância; co-ocorrência. 



A grande maioria das pesquisas sociais se baseia na entrevista: os 
pesquisadores perguntam às pessoas sobre sua idade, o que fazem 
para viver, como vivem, o que elas pensam ou sentem sobre X, Y e Z; 
ou pedem que contem sua história ou narrem fatos. A entrevista, es- 
truturada ou não, é um método conveniente e estabelecido de pes- 
quisa social. Mas assim como as pessoas expressam seus pontos de 
vista falando, elas também escrevem - para fazer relatórios, para 
planejar, jogar ou se divertir, para estabelecer normas e regras, e 
para discutir sobre temas controvertidos. Deste modo. os textos, do 
mesmo modo que as falas, referem-se aos pensamentos, sentimen- 
tos, memórias, planos e discussões das pessoas, e algumas vezes nos 
dizem mais do que seus autores imaginam. 

Os pesquisadores sociais têm a tendência de subestimar materiais 
textuais como dados. Os métodos de pesquisa passam por ciclos de 
moda e de esquecimento, mas a World Wide Web (www) e os arqui- 



189 — 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



vos on-line para jornais, programas de rádio e t elevisão, criaram 
uma grande oportunidade para os dados em forma de textos. À 
medida que o esforço de coletar informações está tendendo a zero, 
estamos assistindo a um renovado interesse na análise de conteúdo 
(AC) e em suas técnicas, em particular em técnicas com o auxílio de 
computador. 

Como diferem, em suas reportagens sobre ciência e tecnologia, os 
jornais populares e especializados? A televisão comercial trata sua au- 
diência de maneira diferente que uma televisão pública? Como foi 
tratado o mito da destruição da Bastilha pelas notícias da época? 
Quando, e como, o tema desempenho começou a aparecer nos livros 
para crianças? Que informação trazem os memorandos internos de 
uma organização comei ciai? Podemos reconstruir mudanças nos va- 
lores sociais através de colunas de jornais do estilo “corações solitários” 
ou em obituários? Estas são apenas algumas das questões que foram 
discutidas pelos pesquisadores através da análise de conteúdo. 

A análise de conteúdo é apenas um método de análise de texto 
desenvolvido dentro das ciências sociais empíricas. Embora a maior 
parte das análises clássicas de conteúdo culminem em descrições nu- 
méricas de algumas características do corpus do texto, considerável 
atenção está sendo dada aos tipos”, qualidades”, e “distinções” no 
texto, antes que qualquer quantificação seja feita. Deste modo, a 
análise de texto faz uma ponte entre um formalismo estatístico e a 
análise qualitativa dos materiais. No divisor quantidade/qualidade 
das ciências sociais, a análise de conteúdo é uma técnica híbrida que 
pode mediar esta improdutiva discussão sobre virtudes e métodos. 

No século dezessete, uma corte suíça classificou, contou e com- 
parou os símbolos usados nos cantos de uma seita religiosa, mas não 
conseguiu encontrar provas de heresia (Krippendorff, 1980: 13). No 
final do século dezenove, a AC demonstrou a “decadência moral” na 
cobertura de notícias na recém-emergente imprensa amarela (Speed, 
1893). Na Alemanha, Max Weber (1965 [1911]) imaginou uma soci- 
ologia cultural engajada na análise dejornais. Mais tarcle, muitas co- 
missões reais sobre imprensa da Inglaterra continham análises com- 
parativas do conteúdo das notícias publicadas (McQuail, 1977) A 
AC da propaganda inimiga serve aos serviços de informação em 
tempos de guerra e ajuda aos interesses comerciais em sua versão ci- 
vil de monitoramento das corporações da mídia. Durante a década 
de 1960, o advento do computador intensificou o nível de reflexão 



— 190 — 




8. ANÁLISE DE CONTEÚDO CLÁSSICA... 



metodológica (ver Stone et ai, 1966; Gerbner et ai, 1969; Holsti, 
1968; 1969; Drippendorff, 1980; Merten, 1995). 

A interpretação de textos sagrados ou nobres, críticas literárias 
de valores estéticos, investigação filológica empenhada na reconsti- 
tuição de textos “originais”, ou na revelação de textos “fraudulen- 
tos”, ou a análise semiótica de comerciais, isto tudo aumenta a com- 
plexidade de um texto: um parágrafo fornece a oportunidade para 
comentários extensos explorando todas as ambiguidades e nuanças 
da linguagem. A análise de conteúdo, contrastando a isso, reduz a 
complexidade de uma coleção de textos. A classificação sistemática e 
a contagem de unidades do texto destilam uma grande quantidade 
de material em uma descrição curta de algumas de suas característi- 
cas. Uma biblioteca pode estar contida em um único gráfico: AC é 
um meio de caracterizar diferenças em aproximadamente 700.000 
itens escritos sobre ciência e tecnologia na imprensa britânica do 
pós-guerra (Bauer et aL, 1995). A leitura de todos estes artigos seria 
um trabalho que levaria mais que uma vida. 

As definições na Tabela 8.1 realçam algumas características da 
AC. Ela é uma técnica para produzir inferências de um texto focal 
para seu contexto social de maneira objetivada. Este contexto pode 
ser temporariamente, ou em princípio, inacessível ao pesquisador. A 
AC muitas vezes implica em um tratamento estatístico das unidades 
de texto. Maneira objetivada refere-se aos procedimentos sistemáti- 
cos, metodicamente explícitos e replicáveis: não sugere uma leitura 
válida singular dos textos. Pelo contrário, a codificação irreversível de 
um texto o transforma, a fim de criar nova informação desse texto. 
Não é possível reconstruir o texto original uma vez codificado; a irre- 
versibilidade é o custo de uma nova informação. A validade da AC 
deve ser julgada não contra uma “leitura verdadeira” do texto, mas 
em termos de sua fundamentação nos materiais pesquisados e sua 
congruência com a teoria do pesquisador, e à luz de seu objetivo de 
pesquisa. Um corpus de texto oferece diferentes leituras, dependendo 
dos vieses que ele contém. A AC não é exceção; contudo, ela traça um 
meio caminho entre a leitura singular verídica e o “vale tudo”, e é, em 
última análise, uma categoria de procedimentos explícitos de análise 
textual para fins de pesquisa social. Ela não pode nem avaliar a bele- 
za, nem explorar as sutilezas de um texto particular. 



— 191 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Tabela 8.1 - A/gumas definições de aná//se de conteúdo (ênfases acrescenfadasj 



A semântica estatístico do discurso político (Kaplan, 1943: 230). 

A técnica de pesquisa para a descrição objetiva , sistemática e quantitativa do 
conteúdo manifesto da comunicação (Berelson, 1952: 18). 

Toda técnica para fazer inferências através da identificação objetiva e sistemática de 
características específicas de mensagens (Holsti, 1969: 14). 

Processamento da informação em que o conteúdo da comunicação é 

transformado , através da aplicação objetiva e sistemática de regras de categorização 

(Paisley, 1 969). 

Uma técnica de pesquisa para produzir inferências replicáveis e práticas partindo dos 
dados em direção a sej contexto (Krippendorff, 1 980: 21). 

Uma metodologia de pesquisa que utiliza um conjunto de procedimentos para 
produzir inferências válidas de um texto. Essas inferências são sobre emissores, a 
própria mensagem, ou a audiência da mensagem (Weber, 1985: 9). 



Podemos distinguir dois objetivos básicos da análise de conteúdo 
ao refletir sobre a natureza tríplice da mediação simbólica: um sím- 
bolo representa o mundo; esta representação remete a uma fonte e 
faz apelo a um público (Buehler, 1934). Através da reconstrução de 
representações, os analistas de conteúdo inferem a expressão dos 
contextos, e o apelo através desses contextos. Se enfocarmos a fonte, 
o texto é um meio de expressão . Fonte e público são o contexto e o foco 
de inferência. Um corpus de texto é a representação e a expressão de 
uma comunidade que escreve. Sob esta luz, o resultado de uma AC é 
a variável dependente, a coisa a ser explicada. Textos atribuídos 
contêm registros de eventos, valores, regras e normas, entreteni- 
mento e traços do conflito e do argumento. A AC nos permite re- 
construir indicadores e cosmovisões, valores, atitudes, opiniões, pre- 
conceitos e estereótipos e compará-los entre comunidades. Em ou- 
tras palavras, a AC é pesquisa de opinião pública com outros meios. 

Quando o foco está no público, o texto é um meio de apelo: uma 
influência nos preconceitos, opiniões, atitudes e estereótipos das 
pessoas. Considerando os textos como uma força sedutora, os resul- 
tados da AC são variáveis independentes, que explicam as coisas. A 
modalidade desta influência é ainda controvertida; contudo, a AC 
fornece as variáveis independentes no delineamento de estudos so- 
bre efeito da mídia, sobre o estabelecimento da agenda ou em estu- 
dos de desenvolvimento. 

Os procedimentos da AC reconstroem representações em duas 
dimensões principais: a sintática e a semântica. Procedimentos sin- 
táticos se enfocam os transmissores de sinais e suas inter-relações. A 
sintaxe descreve os meios de expressão e influência - como algo é 



— 192 — 




8. Análise de conteúdo clássica... 



dito ou escrito. A freqüência das palavras e sua ordenação, o vocabu- 
lário, os tipos de palavras e as características gramaticais e estilísticas 
são indicadores de uma fonte e da probabilidade de influência sobre 
alguma audiência. O freqüente emprego de uma forma de palavras 
que não é comum pode identificar um provável autor e determinado 
vocabulário pode indicar um tipo provável de público. 

Os procedimentos semânticos dirigem seu foco para a relação en- 
tre os sinais e seu sentido normal - sentidos denotativos e conotativos 
em um texto. A semântica tem a ver com “o que é dito em um texto?”, 
os temas e avaliações. Palavras, sentenças e unidades maiores de texto 
são classificadas como exemplos de temas predefinidos e avaliações. 
A co-ocorrência freqüente de palavras dentro da mesma frase ou pa- 
rágrafo é tomada como indicador de sentidos associativos. Por exem- 
plo, entre 1973 e 1996, o tema biotecnologia se tornou mais e mais 
uma parte proeminente das notícias sobre ciência na mídia nacional; 
a cobertura se diferencia e as avaliações variam com o tratamento es- 
pecífico do que está em foco (Durant et ai, 1998). 

As características sintáticas e semânticas de um corpus de texto 
permitem ao pesquisador fazer conjeturas fundamentadas sobre fon- 
tes incertas, como falsas reivindicações de autoria ou audiências incer- 
tas, seja quando a informação sobre isso é inacessível ou porque os 
bons resultados podem ser conseguidos com menos custo através da 
AC. Tais conjeturas podem inferir os valores, atitudes, estereótipos, 
símbolos e cosmovisões de um texto sobre o qual pouco se sabe. Nós 
traçamos o perfil de um contexto de audiência de rádio ou nos guia- 
mos por um contexto de audiência de rádio cujo perfil já conhece- 
mos. Traçar um perfil ou comparar os perfis para identificar um con- 
texto, são inferências básicas de uma AC. E possível, por exemplo, 
medir a estrutura de valor, como sua estabilidade e mudanças, das 
instituições britânicas, analisando o Times de Londres nos últimos 100 
anos; ou avaliar os motivos básicos de uma pessoa através de cartas 
pessoais e anotações no diário. A idéia, contudo, de que alguém pode 
inferir uma intenção particular de um comunicador ou alguma inter- 
pretação específica de um público, é considerada a falácia da análise 
de conteúdo (Eco, 1994; Merten, 1995). Expressão e impressão são 
conseguidas apenas por agregação e probabilisticamente. 

Krippendorff (1980) distinguiu entre diferentes estratégias de 
pesquisa. Em primeiro lugar, alguém pode construir um corpus de 
texto como um sistema aberto, a fim de verificar tendências e pa- 



— 193 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e sow 



drões de mudança. Isto significa que o corpus de texto nunca está 
completo; textos adicionais são acrescentados continuamente. Esta 
é a prática do monitoramento da mídia. Uma amostra de produções 
da mídia é regularmente codificada para detectar mudanças na ên- 
fase e agrupamentos em um conjunto de temas, 

Em segundo lugar, as comparações revelam diferenças que po- 
dem ser observad as entre a cobertura de dif erentes jornais (compa- 
ração por fontes), em falas de um político a df erentes eleitorados 
(comparação por públicos), e entre jornais científicos e suas versões 
populai izadas (comparação por entrada e saída). Outras compara- 
ções consideiam os padrões como par :e de um processo de auditoria 
para identificar e avaliar desempenhos contra normas estabelecidas, 
por exemplo, sobre obscenidade, discriminação ou informação ob- 
jetiva. Isto pode ser relevante em uma ação judicial em que o propri- 
etário é acusado de distorcer a cobertura das notícias para que funci- 
onem como publicidade oculta. 

Em terceiro lugar, a AC é usada para construir índices. Um índi- 
ce é um sinal que é causalrr ente relacionado a outro fenômeno, as- 
sim como, por exemplo, a fumaça é um índice, ou um sintoma de 
fogo. Mudanças no vocabulário de colunas do tipo “corações solitá- 
rios” pelo espaço de 100 anos são urr índice de valores societais: o 
pressuposto é que a maneira como as pessoas se descrevem e a seus 
parceiros ideais é uma expressão do que é desejável em uma socie- 
dade. A quant idade de cobertura sobre ciência nos jornais pode ser 
uma medida da posição da ciência e tecnologia na sociedade, ou 
igualmente um indicador da incerteza da ciência sobre sua posição 
na sociedade. A consideração do conteúdo, juntamente com a inten- 
sidade, pode definir um índice. 

Finalmente, a AC pode reconstruir “mapas de conhecimento” à 
medida que eles estão corporificados em textos. As pessoas usam a 
linguagem para representar o mundo como conhecimento e autoco- 
nhecimento. Para reconstruir esse conhecimento, a AC pode neces- 
sitar ir além da classificação das unidades do texto, e orientar-se na 
direção de construção de redes de unidades de análise para repre- 
sentar o conhecimento não apenas por elementos, mas também em 
suas relações. 

Existem seis delineamentos de pesquisa de AC. O mais simples, 
e menos interessante, é o estudo puramente descritivo, que conta a 
freqüência de todas as características codificadas do texto. Mais inte- 



— 194 — 




8. ANÁLISE DE CONTEÚDO CLÁSSICA... 



ressantes são as análises normativas que fazem comparações com pa- 
drões, por exemplo, análise de informação objetiva e não distorcida. 
Nas análises trans-seccionais, a comparação empírica pode conter 
textos de diferentes contextos, por exemplo, dois jornais cobrindo 
uma notícia específica durante um mês. Nas análises longitudinais, 
as comparações abarcam o mesmo contexto por um período de tem- 
po mais longo. Isso nos permite detectar flutuações, regulares e irre- 
gulares, no conteúdo, e inferir mudanças concomitantes no contex- 
to. Estudos mais elaborados funcionam como indicadores culturais: 
eles podem considerar muitos contextos por um período de muitos 
anos, como diferentes esferas públicas em que a biotecnologia se tor- 
nou um tema de discussão (Durant et ai, 1998). Esse tipo de análise 
pode ser um substituto viável para pesquisa de opinião (ver Neisbitt, 
1976 ou Janowitz, 1976). Os delineamentos mais ambiciosos são os 
delineamentos paralelos envolvendo análises longitudinais em com- 
binação com outros dados longitudinais, tais como pesquisas de opi- 
nião, ou repetidas tentativas de entrevistas não estruturadas (ver, 
por exemplo, Neumann, 1989; Durant ela/., 1998). 

A organização de uma análise de conteúdo 

Considerações teóricas e textos 

Os métodos não são substitutos de uma boa teoria e de um pro- 
blema de pesquisa sólido. A teoria e o problema - que carregam em 
si os preconceitos do pesquisador - serão responsáveis pela seleção e 
categorização dos materiais de texto, tanto implícita, como explici- 
tamente. Ser explícito é uma virtude metódica. Digamos que um 
pesquisador quer atribuir ou disputar a autoria de um texto. Um 
pressuposto implícito sugere que a autoria do texto é importante; o 
pesquisador terá, então, de formular explicitamente uma teoria 
convincente sobre como a individualidade se manifesta no texto. 

A AC trabalha tradicionalmente com materiais textuais escritos, 
mas procedimento semelhante pode ser aplicado a imagens (ver 
Rose, cap. 14, neste volume) ou sons (ver Bauer, cap. 15 neste volu- 
me). Há dois tipos de textos: textos que são construídos no processo 
de pesquisa, tais como transcrições de entrevista e protocolos de ob- 
servação; e textos que já foram produzidos para outras finalidades 
quaisquer, como jornais ou memorandos de corporações. Os mate- 
riais clássicos da AC são textos escritos que já foram usados para al- 
gum outro propósito. Todos esses textos, contudo, podem ser mani- 
pulados para fornecer respostas às perguntas do pesquisador. 



— 195 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Há alguns anos, alguns colegas e eu, começamos a mapear o tra- 
tamento dado pela mídia à biotecnologia, entre 1973 e 1996, na Eu- 
ropa e na América do Norte. Em um estudo trans-nacional e longi- 
tudinal, nós analisamos a cobertura da mídia sobre biotecnologia 
em 1 2 países europeus. Tal cobertura da mídia constitui uma repre- 
sentação lingüística, e às vezes também pictórica, de uma nova tec- 
nologia na sociedade (Bauer & Gaskell, 1999). As variações na co- 
bertura da mídia no tempo e no espaço são comparadas, em um de- 
lineamento paralelo, com as percepções públicas e os processos de 
políticas públicas, a fim de explicar a trajetória tecnológica em dife- 
rentes contextos. Nós analisamosjornais de primeira linha como re- 
presentantes da cobertura da mídia sobre biotecnologia. Agregados 
por um longo período, eles representam um aspecto importante da 
opinião pública nas sociedades modernas. 

Definição e amostragem de unidades de texto 

A AC emprega, muitas vezes, uma amostra aleatória para selecio- 
nar seus materiais (Krippendorff, 1980; Holsti, 1969; Bauer &Aarts, 
cap. 2 deste volume). Há três problemas com referência à amostra- 
gem: sua representa tividade, o tamanho da amostragem e a unidade 
de amostragem e codificação. 

A amostragem estatística fornece um racional para estudar um 
pequeno número de textos e assim mesmo poder tirar conclusões 
sobre a coleção completa dos textos. A história da AC no estudo de 
jornais confirmou esse racional. Textos impressos podem ser facil- 
mente estratificados em uma tipologia hierárquica, por exemplo, 
jornais diários e revistas semanais, de direita e de esquerda dentro 
de uma orientação política, cifras de circulação altas ou baixas, dis- 
tribuição nacional ou regional, populares e especializados, ou de 
acordo com a propriedade. 

Uma estratégia comum de amostra para publicações regulares é 
a “semana artificial”. As datas do calendário são um referencial de 
amostragem confiável, de onde se pode extrair uma amostra estrita- 
mente aleatória. Datas aleatórias, contudo, podem incluir domin- 
gos, quando alguns jornais não são publicados, ou os jornais podem 
fazer publicações em um ciclo, como por exemplo, a página sobre 
ciência ser publicada às quartas-feiras. Em tais casos, então, a fim de 
evitar distorções na amostragem de notícias sobre ciência, seria ne- 
cessário garantir uma distribuição eqüitativa de quartas-feiras na 



— 196 — 




8. ANÁLISE DE CONTEÚDO CLÁSSICA... 



amostra. Uma semana tem sete dias, desse modo, escolhendo cada 
terceiro, quarto, sexto, oitavo ou nono, etc. dia, por um longo perío- 
do, e criada uma amostra sem periodicidade. Para cada edição sele- 
cionada, todos os artigos relevantes são selecionados. 

A amostragem de jornais por datas, quando os artigos, ou mes- 
mo as frases, são a unidade de análise, constitui uma amostragem de 
agrupamento (cluster). Em amostras de agrupamento, a unidade 
aleatoriamente selecionada, nesse caso um jornal, é maior que as 
unidades de análise, dos artigos e das frases, todas elas coletadas. 

A amostragem aleatória exige uma lista completa de unidades de 
onde se possa fazer uma seleção. As vezes a lista já existe, como com 
números seriais ou datas do calendário, e às vezes temos de criá-la. 
Consideremos o caso de se fazer uma amostragem de artigos de im- 
prensa sobre genética, a partir de um banco de dados como o FTPro- 
file. Digitando a palavra genetic*, podemos ter 5.000 artigos em um 
espaço de alguns anos. Se você somente pode analisar 200 deles, re- 
gistre ou imprima todos os títulos dos 5.000 artigos e numere-os de 1 
a 5.000. Decida, então, por um procedimento de amostragem: ou 
gere 200 números aleatórios entre 1 e 5.000, ou decida tomar, diga- 
mos, um artigo de cada 25. Artigos irrelevantes podem ser rejeitados 
em favor de outros artigos, à medida que você vai prosseguindo. 

Sempel (1952) mostrou que 12 edições, selecionadas aleatoria- 
mente, de um jornal diário, fornecem uma estimativa confiável do 
perfil de suas notícias anuais. Uma amostra pequena, sistematica- 
mente selecionada, é muito melhor do que uma grande amostra de 
materiais escolhidos ao acaso. No final das contas, todas as conside- 
rações sobre o tamanho da amostra dependem da possibilidade prá- 
tica. Quantos artigos pode o pesquisador analisar? Quantos códigos 
e variáveis são empregadas? Qual a distribuição adequada de uma 
variável para uma análise de multivariância? 

As unidades da amostragem são normalmente definidas fisica- 
mente, como um jornal, um livro, uma notícia de televisão e assim 
por diante. A exclusão, ou inclusão, de uma ou outra dessas unida- 
des é irrelevante; o pressuposto é que as unidades de amostragem 
sejam substituíveis umas pelas outras. As unidades de gravação são, 
na maioria das vezes, iguais às unidades de amostragem, exceto no 
caso de amostra de agrupamento. Muitas Tezes é mais fácil fazer 
amostragem de edições de jornal, e tomar todos os artigos relevan- 
tes de cada edição. Nestes casos, a unidade de registro, o artigo, está 
contida na unidade de amostragem, a edição do jornal. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Krippendorff (1980: 61s) distinguiu os seguintes tipos de unida- 
des de amostragem e de registro: 

• Unidades físicas : são livros, cartas, programas de televisão, fil- 
mes e assim por diante. 

• Unidades sintáticas: são aparentemente blocos sólidos naturais: 
capítulos em um livro; títulos, artigos ou frases em um jornal; 
cenas de filme ou tomadas em um filme. A unidade sintática 
mais óbvia é uma palavra. 

Unidades pTOposicionais: são núcleos lógicos de frases. Proposi- 
ções complexas são desconstruídas em núcleos na forma sujei- 
to/verbo/objeto. Observe a frase: “Biotecnologia, a mais recen- 
te entie as tecnologias de base do pós-guerra, entra na arena 
pública na década de 1990”. Ela pode ser separada em muitas 
outras frases: “Biotecnologia entra na arena pública na década 
de 1990”, “Biotecnologia é uma tecnologia de base”, “Biotec- 
nologia é uma tecnologia de base do período do pós-guerra”, 
“Biotecnologia é a mais recente tecnologia de base”. Muitos 
programas de computador para análise de texto conseguem 
fazer a segmentação automática de unidades sintáticas tais 
como parágrafos, frases ou palavras-chave singulares fora do 
contexto; programas mais especializados conseguem fazer a 
desconstrução de frases complexas em núcleos proposicionais. 

• Unidades temáticas ou semânticas: são definidas como caracterís- 
ticas dos textos que implicam um juízo humano. Por exemplo, 
histórias de fada podem ser classificadas a partir de motivos 
básicos; cartas podem ser classificadas como cartas de amor ou 
comerciais. A definição das unidades de amostragem implica, 
muitas vezes, tais julgamentos de estratificação. Unidades te- 
máticas separadas a partir de fundamentos teóricos são muitas 
vezes contrastadas com materiais residuais irrelevantes 

A representação, o tamanho da amostra e a divisão em unida- 
des dependem, em última instância, do problema de pesquisa, 
que também determina o referencial de codificação. O que apare- 
ce como uma seqüência, da teorização para a amostragem e para a 
codificação é, na verdade, um processo interativo, e saber condu- 
zi-lo é fundamental. Mas essa direção e revisão tem de parar, ao 
menos temporariamente, se a análise tem como finalidade apre- 
sentar resultados. 



— 1 98 — 



8. ANÁLISE DE CONTEÚDO CLÁSSICA... 



Em nosso estudo sobre notícias de biotecnologia decidimos fazer 
uma amostra de jornais líderes de opinião entre 1973 e 1996. O cri- 
tério “jornal líder de opinião” é uma decisão teórica feita logo no 
início do estudo. Cada equipe identifica um ou dois jornais-chave: 
aqueles que os jornalistas e os políticos mais provavelmente lêem. O 
procedimento de amostragem ano a ano varia de país para país, e os 
arquivos exigem diferentes técnicas: manuseio manual de cópias 
originais de jornais; emprego de um índice de entrada com pala- 
vras-chave, tais como o índice do The Times ; acessar bancos de dados 
on-line; uso de coleções existentes de recortes de jornais; e assim 
por diante. Durante alguns anos, as equipes selecionaram edições 
de jornais e fizeram amostras de materiais relevantes na forma de 
agrupamentos. Nos anos seguintes, eles usaram pesquisa on-line, 
acessaram todos os artigos relevantes e extraíram uma amostra alea- 
tória estrita de um número fixo de artigos em cada ano. Outras equi- 
pes criaram uma semana artificial e tomaram os jornais como uma 
amostra de agrupamento. O corpus de texto internacional final con- 
tém 5.404 artigos de jornal sobre biotecnologia, de 12 países, por 
um espaço de 24 anos (Bauer, 1998a). Pensa-se em atualizar o corpus 
até o ano 2001. A amostra, principalmente para estudos internacio- 
nais, pode ir à frente apenas de maneira pragmática, tentando fazer 
o melhor a partir de circunstâncias imperfeitas e diferenciadas. 



Categorias e codificação 

A codificação e, conseqüentemente, a classificação dos materiais 
colhidos na amostra, é uma tarefa de construção, que carrega consi- 
go a teoria e o material de pesquisa. Esse casamento não é consegui- 
do de imediato: o pesquisador necessita dar tempo suficiente para 
orientação, emendas e treinamento do codificador. A construção de 
um referencial de codificação é um processo interativo e, se diversos 
codificadores estão implicados, um processo coletivo, que a certa al- 
tura tem de terminar. 

Um referencial de codificação é um modo sistemático de compa- 
ração. Ele é um conjunto de questões (códigos) com o qual o codifi- 
cador trata os materiais, e do qual o codificador consegue respostas, 
dentro de um conjunto predefinido de alternativas (valores de codi- 
ficação). Embora o corpus de texto esteja aberto a uma multidão de 
possíveis questões, a AC interpreta o texto apenas à luz do referenci- 
al de codificação, que constitui uma seleção teórica que incorpora o 
objetivo da pesquisa. A AC re-presenta o que éjá uma representa- 



— 199 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



ção, ligando os pesquisadores a um texto e a um projeto de pesquisa 
(Bauer & Gaskell, 1999). A AC não é a última palavra em nenhum 
texto, mas um encontro objetivado através da sistematicidade e refe- 
renciação para além de si, em direção a outros textos e atividades de 
pesquisa (Lindkvist, 1981). No final das contas, contudo, até mesmo 
o enfoque positivista de contar as unidades de texto é apenas outra 
contribuição à interpretação aberta de um corpus de texto. 

Categorias e categorização 

Diversas considerações entram em jogo na construção de um re- 
ferencial ou sistema de categorias: a natureza das categorias, os tipos 
de variáveis de código, os princípios organizadores do referencial de 
codificação, o processo de codificação e o treinamento para codifica- 
ção. Cada código, no referencial, possui um número finito de valo- 
res de código. No nosso exemplo na Tabela 8.2, o código “tamanho” 
pode ter os valores de pequeno, médio e grande; ou o código “for- 
mato da notícia” pode incluir “últimas notícias”, “reportagem”, “en- 
trevista”, “comentário”, “editorial”, “revista” e “outro”. Enquanto 
que os valores de “tamanho” são senso comum, os valores de “for- 
mato da notícia” são o resultado de extenso trabalho piloto de ler 
jornais em diferentes países e tentar definir um número finito de 
formatos de reportagem em jornais de primeira linha. Alguém pode 
ser capaz de se basear em categorias padronizadas se um código se- 
melhante já tenha sido empregado em uma pesquisa anterior. 

Tabela 8.2 - Exemplo de categorias para artigos de imprensa 



cl tamanho (escala ordinal) 

1 = pequeno 

2 = médio 

3 = grande 

c2 formato das notícias (escala categorial) 

1 = últimas notícias 

2 = reportagem 

3 = entrevista 

4 - comentário 

5 = editorial 

6 = revista 

7 = outro 

c3 contagem de palavras (escala de intervalo e proporcional) 
100, 165, 367 ou 658 palavras 



— 200 — 






8. ANÁLISE DE CONTEÚDO CLÁSSICA... 



Cada unidade de texto deve se ajustar a um código, e nenhuma 
pode ser excluída. Acrescentando o valor “outro”, ou “não se apli- 
ca”, garante-se que todas as unidades terão seu lugar. Os códigos de- 
vem ser exclusivos: para cada unidade é atribuído um único valor 
em cada código, por exemplo, um artigo é ou pequeno ou grande, 
mas nunca os dois. Os códigos são independentes um do outro: a co- 
dificação do tamanho não tem influência direta na codificação do 
formato da notícia (a observação que os editoriais são maiores que as 
últimas notícias pode aparecer como um “fato” empírico). A mistura 
de categorias deve ser evitada: os códigos devem se originar de uma 
única dimensão, por exemplo, classificar “vermelho” ao lado de 
“pequeno”, viola esse princípio. Do mesmo modo, o valor “notícia 
de televisão” junto com um formato de notícia, iria violar o princí- 
pio: isso confunde o princípio de notícia como meio, e o princípio 
de formato de notícia. Confusões desse tipo são normalmente resol- 
vidas dividindo-as em dois códigos: meio massivo (televisão, rádio e 
imprensa), e formato das notícias (reportagem, entrevista, etc.). Fi- 
nalmente, os códigos devem ser criados teoricamente e refletir o ob- 
jetivo da pesquisa. Tanto “tamanho” como “formato da notícia” são 
códigos originados de uma teoria de que o tamanho de uma história 
expressa a importância editorial atribuída a ela, e serve como um in- 
dicador dos valores existentes nas redações. Por outro lado, o tama- 
nho pode ter um formato específico. O código “formato da notícia” 
origina-se de uma idéia sobre as diferentes funções que os diferentes 
formatos possuem nos debates públicos. 

Por razões estatísticas, atribuem-se números aos valores de códi- 
go, como mostrado na Tabela 8.2 (onde 2 = “últimas notícias”). O 
sentido destes números varia. Variáveis categoriais apenas distin- 
guem, e os números não possuem significância maior: no código 2, 
“5 = editorial”, poderia ser também “7 = editorial". As escalas ordi- 
nais ou proporcionais, ao contrário, preservam uma ordem entre os 
valores: pequeno, médio e grande são mapeados em uma escala 1, 2, 
3 onde 3>2e2>l.A contagem de palavras para cada artigo cons- 
titui uma escala que preserva a diferença entre os valores; um artigo 
de 165 palavras é 65 por cento maior que um artigo de 100 palavras. 
O tipo de métrica tem conseqüências nos tipos de análises estatísti- 
cas que podem ser aplicadas. 

A AC é um sistema de codificação que implica valores teóricos 
(Franks, 1999). Uma unidade de texto A pode ser codificada “co- 
mentário” em relação a determinada teoria implícita na categoria 



— 201 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



“formato da notícia”. A unidade de texto A pode ser algo mais: ela 
não é, por natureza, “comentário”. Contudo, a unidade de texto A 
será ou “comentário”, ou “últimas notícias”, mas não ambos. Distin- 
ções nítidas entre unidades são uma regra de trabalho que nos per- 
mitem ignorar diferenças nebulosas e ambiguidades no mundo dos 
jornais. O treinamento do codificador e a prática coletiva farão com 
que a unidade de texto A se mostre naturalmente como “comentá- 
rio”, e qualquer ambiguidade remanescente poderá se mostrar em 
problemas relacionados à fidedignidade. Esta imposição implícita 
de um sistema de códigos é uma ação de violência semântica que 
deve ser justificada por resultados surpreendentes, em vez de ser 
condenada de imediato. 



0 pTOCCSSO de codificação: papel e lápis ou computador 

A codificação concreta pode ser feita tanto com papel e lápis, ou 
diretamente no computador. No formato de papel e lápis, o codifi- 
cador receberá instruções na forma de um livro de codificação (ver 
abaixo), o material textual e as folhas de codificação. Uma folha de 
codificação é uma página quadriculada com uma célula reservada 
para cada código. O codificador irá colocar seu julgamento para 
cada código na célula designada. Uma vez completa a codificação, 
todas as folhas de codificação são juntadas e colocadas em um com- 
putador para análise dos dados. A codificação computadorizada 
permite ao codificador fazer seu julgamento diretamente no com- 
putador. CAPI, CA TI (Computer-assisted personal ou telephone in- 
terviewing- auxílio do computador pessoal para entrevista, ou auxí- 
lio do computador para entrevista por telefone), ou NUD*IST, ou 
ATLAS/ti (ver Kelle, cap. 1 6 neste volume) dão conta do processo de 
codificação diretamente. No caso do CAPI ou CATI, é criada uma 
estrutura que mostra uma seqüência de telas ao codificador, uma 
para cada código, com todas as instruções necessárias e um campo 
para registrar o julgamento da codificação. NUD*IST e ATLAS/ti 
tomam textos on-line e o codificador etiqueta as unidades de texto 
com um código predefinido, não perdendo, com isso, a ligação en- 
tre o código e a unidade de texto, e ligando unidades de texto com o 
código. Um arquivo de saída para análise estatística será criado au- 
tomaticamente. E sempre importante criar um código adicional 
com o número em série da unidade de texto, e identificar o codifica- 
dor nos casos em que diversos codificadores estão trabalhando. A 
AC de grandes corpora de textos, com muitos codificadores, como o 



— 202 




8. Análise de conteúdo clássica... 



monitoramento contínuo dos meios de comunicação, poderá se 
constituir em um empreendimento de escala industrial, exigindo 
organização, treinamento, coordenação e controle de qualidade. 

Qualidade na análise de conteúdo 

A análise de conteúdo é uma construção social. Como qualquer 
construção viável, ela leva em consideração alguma realidade, neste 
caso o corpus de texto, e ela deve ser julgada pelo seu resultado. Este 
resultado, contudo, não é o único fundamento para se fazer uma 
avaliação. Na pesquisa, o resultado vai dizer se a análise apresenta 
pioduções de interesse e que resistam a um minucioso exame; mas 
bom gosto pode também fazer parte da avaliação. A metodologia da 
analise de conteúdo possui um discurso elaborado sobre qualidade, 
sendo suas preocupações-chave a fidedignidade e a validade, pro- 
vindas da psicometria. As limitações desses critérios, contudo, se 
mostram no dilema fidedignidade-validade. Eu acrescento coerên- 
cia e transparência como dois critérios a mais para a avaliação de 
uma boa prática na AC. 

Coerência: a beleza de um referencial de codificação 

A maioria das AC opera com muitos códigos. A construção de um 
referencial de codificação, ou sistema de categorias, é um tema teóri- 
co que está relacionado com o valor estético da pesquisa. O analista de 
conteúdo amadurecido pode muito bem desenvolver um senso de be- 
leza: um referencial de codificação gracioso é aquele que é interna- 
mente coerente e simples, de tal modo que todos os códigos fluem de 
um único princípio, ao invés de estarem enraizados na meticulosida- 
de de um empiricismo que codifica tudo o que vem à cabeça. Coerên- 
cia na construção de um referencial de codificação provém de idéias 
superiores, que trazem ordem ao referencial de codificação. 

A Tabela 8.3 compara diversos conceitos e apresenta noções pri- 
márias que fornecem coerência na construção de um referencial de 
codificação. Cada noção primária é derivada de um princípio, e 
pode ser posteriormente especificada por códigos secundários. North 
et ai (1963) investigaram intercâmbios diplomáticos no começo da 
I Grande Guerra. Seu princípio organizador foi “ações e sua percep- 
ção”: quem percebe que ações com que efeitos e com que qualifica- 
ções. Unidades temáticas, parafraseadas a partir dos textos origi- 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



nais, foram codificadas para a) perceptores, b) atores, c) efeitos nos 
objetivos, d) descritores avaliativos desses efeitos. 



Tabela 8.3 - Conceitos que trazem coerência na construção de um referencial de 



codificação 


Conceito 


Noções primárias derivadas 


Sistema de mensagem pública (p. ex. 
Gerbner et aí., 1969) 


Atenção, ênfase, tendência, estrutura 


Percepção da ação (p. ex. North et 
a/., 1963) 


Perceptor, atores, efeitos em mira, avaliação 


Retórica (p. ex. Bauer,1998b) 


Marcadores de logos, ethos, pathos 


Argumentos (p. ex. Toulmin, 1958) 


Exigência, dados, garantia, apoio, refutação, 
qualificador 


Narrativa (p. ex. Bauer ef a/., 1995; 
Rose, cap. 1 4 neste volume) 


Narrador, ator, acontecimento, antecedentes, 
conseqüências, ética 



A retórica é outro princípio útil de análise. Logos, pathos e ethos 
são os “três mosqueteiros” da persuasão (Goss, 1990). Logos se refere 
à extração de conclusões das premissas e observações; pathos agita as 
emoções do público; e o ethos se refere à apresentação da autoridade 
pessoal do locutor, e à pretensão de reputação. Estes três conceitos 
podem ser empregados para codificar unidades de texto em termos 
de argumentação (marcadores de logos), sua função de atrair a aten- 
ção de um ouvinte/leitor (marcadores d e pathos), ou referências à au- 
toridade e reivindicação de reputação do que fala/escreve (marcado- 
res de ethos) (Bauer, 1998b; Leach, cap. 12 neste volume). A análise 
de argumentação inspirou a análise de conteúdo. A análise de Toul- 
min (1958) sobre uma argumentação prática fornece um princípio 
pelo qual se podem classificar unidades de texto como exigências, ga- 
rantias, apoios, dados, qualificadores e refutações (ver Leach, cap. 12 
deste volume). Estes conceitos podem ser empregados para analisar 
argumentações atribuídas a diferentes atores na mídia, ou em docu- 
mentos de políticas, tanto para comparar diferentes atores, como para 
avaliar a complexidade da argumentação em diferentes arenas pú- 
blicas (Liakopoulos, cap. 9 neste volume). Finalmente, a narrativa é um 
princípio estimulador. Considerar notícias como uma história sugere 
imediatamente uma quantidade de noções primárias: um contador de 
história, um ator, acontecimentos, uma situação de fundo, conseqüên- 
cias e uma ética. Rose (cap. 14 neste volume) aplicou o princípio de 
narrativa para analisar a retratação da doença mental em novelas. 



— 204 — 







8. Análise de conteúdo clássica... 



A construção de módulos é um estratagema na construção de um 
referencial de codificação que garante tanto a eficiência, como a coe- 
rência. Um módulo é um bloco bem estruturado de um referencial 
de codificação que é usado repetidamente. Tomemos, por exemplo, 
um conjunto de códigos secundários que especifiquem a noção pri- 
mária de ator em uma narrativa: tipo de ator (individual, coletivo), 
gênero (masculino, feminino, desconhecido) e esfera de atividade 
(privada, semiprivada, pública, etc.). Estes três códigos constituem 
um módulo para especificar atores. Atores estão presentes em dife- 
rentes funções em uma narrativa: como o autor, o ator principal, o 
ator auxiliar; como catalisador das conseqüências dos acontecimen- 
tos; ou como alvo da ética da história. O módulo ator pode agora ser 
empregado para especificar cada uma das diferentes funções dos 
atores na narrativa. A construção modular aumenta a complexidade 
do referencial de codificação sem aumentar o esforço de codificação, 
e ainda mantém sua coerência; ela também torna tanto a codifica- 
ção, como o treinamento, mais fáceis. Uma vez que o módulo seja 
memorizado, a repetida aplicação exige pouco esforço adicional e a 
fidedignidade será reforçada. 

O referencial de codificação para a análise da cobertura de notí- 
cias sobre biotecnologia compreendia, ao final, 26 códigos, organi- 
zados dentro do princípio da narrativa: autor, ator, temas, aconteci- 
mentos, local dos acontecimentos e conseqüências em termos de ris- 
co e benefícios. A construção de módulos foi empregada, para codifi- 
car múltiplos atores e múltiplos temas. O processo de codificação foi 
desenvolvido pelo período de um ano: as 12 equipes se encontraram 
duas vezes para negociar e revisar a estrutura do referencial de codi- 
ficação. O processo completo de amostragem, desenvolvimento de 
um processo de codificação seguro, estudo piloto e codificação do 
corpus em cada país demoraram dois anos e meio (Bauer, 1998a). 

Transparência durante a documentação 

Um referencial de codificação é normalmente apresentado como 
um folheto que serve tanto como guia para os codificadores, como um 
documento do processo de pesquisa. Este folheto irá normalmente 
incluir: a) uma lista sumária de todos os códigos; b) a distribuição de 
frequência para cada código, cada um com o número total de códigos 
(iV). Cada código será apresentado com uma definição intrínseca, 
com seu número de codificação (por exemplo, c2), sua etiqueta de co- 
dificação (por exemplo, formato da notícia), e uma unidade cie texto 



— 205 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



ilustrativa que se aplica a cada código. Um folheto completo de codifi- 
cação irá incluir c) uma explicação com respeito ao problema da fide- 
dignidade do codificador, tanto no que se refere a cada código, quan- 
to para o processo de codificação como um todo, e uma nota sobre o 
tempo exigido para se conseguir um nível de fidedignidade aceitável. 
Isto serve como uma estimativa quanto ao treinamento que é exigido 
para esse referencial de codificação específico. A documentação deta- 
lhada do processo de codificação assegura uma prestação pública de 
contas, e serve para que outros pesquisadores possam reconstruir o 
processo caso queiram imitá-lo. A documentação é um ingrediente 
essencial da objetividade dos dados. 

Fidedignidade 

A fidedignidade é definida como uma concordância entre intér- 
pretes. Estabelecer fidedignidade implica alguma duplicação de es- 
forço: a mesma pessoa pode fazer uma segunda interpretação de- 
pois de um intervalo de tempo (para determinar fidedignidade in- 
tra-pessoal, consistência, estabilidade), ou duas ou mais pessoas po- 
dem interpretar o mesmo material simultaneamente (fidedignidade 
interpessoal, concordância, reprodutibilidade). índices de fidedig- 
nidade - phi , kappa ou alpha - medem a concordância entre codifica- 
dores em uma escala de 0 (não concordância) a 1 (concordância ple- 
na), ponderados em relação à probabilidade (Scott, 1955; Krippen- 
clorff, 1980: I29s; Holsti, 1969: 135s). 

A maioria dos projetos de análise de conteúdo enfrenta dois pro- 
blemas de fidedignidade: a demarcação de unidades dentro de uma 
seqüência de materiais e a codificação dos conteúdos. Unidades de 
análise semânticas são uma questão de julgamento. Suponhamos 
que tenhamos selecionado aleatoriamente algumas datas para revis- 
tas antigas e estejamos folheando essas edições à procura de artigos 
sobre biotecnologia. Embora tenhamos definido biotecnologia com 
cuidado como “reportagem sobre intervenção ao nível do gene”, 
permanece ainda espaço para desacordo. Para a análise de imagens 
em movimento, a unidade de análise é muitas vezes uma questão de 
julgamento: alguns selecionadores podem demarcar uma cena para 
começar vários quadros antes, ou terminar vários quadros depois, 
diferentemente de outros (ver Krippendorff, 1994). 

Nenhum analista de conteúdo espera perfeita fidedignidade quan- 
do estão implicados julgamentos humanos, e desse modo a questão 



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8. ANÁLISE DE CONTEÚDO CLÁSSICA... 



de um nível aceitável de fidedignidade vem à tona Sendo que dife- 
rences medidas produzem diferemes valores de fidedignidade, kap- 
pa e alpha são mais conservadores qu ephi) diferentes padrões têm de 
ser definidos para diferentes medidas. Ainda mais. a fidedignidade 
pode ser diferente entre os códigos, sendo alguns mais ambíguos 
que outros. Como determinar a fidedignidade nos diversos códigos? 
Pela simples média, pela média ponderada, oor um co ajunte de va- 
lores, ou pelo menor valor? A baixa fidedignidade contribui para a 
margem de erro das medidas estatísticas derivadas dos daclos. Os 
critérios devem levar em consideração as possíveis conseqüências de 
uma crescente margem de erro: resultados que influenciam decisões 
de vida ou morte exigem alta fidedignidade; mas para estuc.os cue 
pretendem apenas conclusões tentativas ou cautelosas o critério 
pode ser abrandado. A fidedignidade é geralmente considerada 
como sendo muito alta quando r > 0.90, alta quando r > 0.80, e acei- 
tável na amplitude 0.66 < r < 0.79. 

Os pesquisadores devem levar em conta a fidedignidade para 
melhorar seu processo de codificação. A fidedignidade depende da 
quantidade de treinamento, da definição das categorias, da comple- 
xidade do referencial de codificação e do material. Baixa fidedigni- 
dade pode significar muitas coisas. Primeiro, que os codificadores 
necessitam de treinamento. O treinamento intensivo dos codifica- 
dores irá, provavelmente, conduzir a uma fidedignidade mais alta 
devido à construção de um pensar comum entre os codificadores, 
com respeito ao material em análise. Em segundo lugar, a fidedigni- 
dade poderá ajudar a ordenar as categorias segundo seu grau de 
ambigüidade. Alguns códigos podem estar muito mal definidos e o 
acréscimo de exemplos irá melhorar a concordância entre os codifi- 
cadores. Em terceiro lugar, os codificadores inevitavelmente irão 
memorizar seus códigos e agilizar sua codificação. Quanto mais di- 
versos e numerosos os códigos, menor a facilidade de poderem ser 
memorizados, mais treinamento será exigido e mais freqüentes se- 
rão as ambigüidades e os erros devido ao cansaço. Por isso a fidedig- 
nidade está limitada pela complexidade do referencial de codifica- 
ção. Finalmente, a fidedignidade pode ser um indicador da polisse- 
mia do texto. Baixa fidedignidade pode indicar que as delimitações 
dos valores do código são muito vagas. Além do mais, os referenciais 
de codificação complexos aumentam a probabilidade de leituras 
consistentes, mas diversificadas, das mesmas unidades de texto. 



— 207 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Validação 

A validade tradicionalmente se refere a até que grau o resultado 
representa corretamente o texto, ou seu contexto. A distinção de 
Krippendorff (1980) entre a validade dos dados, os resultados e os 
procedimentos é útil. Com relação aos dados, devemos garantir que 
os códigos se refiram às palavras usadas no texto (validade semânti- 
ca), e que a amostra represente o corpo inteiro do texto (validade da 
amostragem). Os resultados podem ser validados através da correla- 
ção com critérios externos. Resultados prévios podem validar uma 
análise de conteúdo, por exemplo, comparando um procedimento 
simples e um complexo. Isto é, contudo, tautológico, e nem sempre 
desejável. Por outro lado, poder-se-iam predizer pesquisas de opinião 
publica a partir da cobertura feita pela imprensa, e testar essa predi- 
ção sob circunstâncias específicas (validade preditiva). Finalmente, 
um referencial de codificação necessita incorporar a teoria subjacente 
à análise (validade de construto). A natureza, contudo, da interpreta- 
ção sugere que resultados questionadores, conseguidos metodica- 
mente, poderão ter valor independentemente da corroboração exter- 
na. Muitas vezes a coerência interna é suficiente para mostrar credibi- 
lidade. Na verdade, resultados inesperados, mas conseguidos metodi- 
camente, podem fornecer informação significativa. 

A falácia principal da análise de conteúdo é a interferência de in- 
tenções particulares, ou compreensões, a partir unicamente do texto 
(Merten, 1995; Eco, 1994). As intenções e a recepção são caracterís- 
ticas da situação comunicativa e não dependem apenas do texto: 
elas são co-determinadas por variáveis situacionais. Leituras especí- 
ficas são um assunto para estudos de audiência; intenções específicas 
são um assunto para estudos de produção. Os textos estão abertos 
para diferentes leituras, dependendo dos pré-julgamentos. Poderá 
ser possível excluir determinadas leituras ou intenções, especial- 
mente se os codificadores partilham uma compreensão do mundo 
com o emissor ou o público. Nenhuma leitura particular de um pú- 
blico, contudo, ou uma intenção particular de um comunicador, 
permanece apenas dentro do texto. Na melhor das hipóteses, a aná- 
lise de conteúdo mapeia o espaço das leituras e das intenções através 
da exclusão ou da tendência, mas nunca a situação concreta da coisa. 

Dilemas 

Os pesquisadores da AC enfrentam vários dilemas. O primeiro é 
entre a amostragem e a codificação: um projeto de pesquisa deverá 



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8. Análise de conteúdo clássica... 



equilibrar o esforço colocado na amostragem e o tempo investido no 
estabelecimento dos procedimentos de codificação. Uma amostra 
perfeita é de pequeno valor se ela não deixa tempo suficiente para 
desenvolver um referencial de codificação, ou para instruir os codifi- 
cadores a fim de que se possa realizar um processo fidedigno. 

O segundo dilema é entre o espaço de tempo e a complexidade da 
codificação, em outras palavras, entre poucas observações em um lon- 
go período de tempo, e muitas observações em um curto período. 
Quanto mais complexo o referencial de codificação, mais probabili- 
dade haverá de ele se adequar a apenas um pequeno espaço de tem- 
po. Talvez não compense o esforço de adaptar um referencial de co- 
dificação complexo a diferentes contextos históricos. Conseqüente- 
mente, um referencial de codificação simples é indicado para um es- 
tudo longitudinal, a fim de evitar anacronismos na codificação, pois 
os codificadores teriam de ir além da memória de seu tempo vivido 
(ver Boyce, cap. 18 neste volume). Diferentemente de uma pesquisa 
de levantamento, onde um delineamento de painel enfrenta enormes 
complicações, a análise de conteúdo se adapta muito bem a análises 
longitudinais. A análise de conteúdo irá, por isso, muitas vezes prefe- 
rir amostras prolongadas a procedimentos de codificação complexos. 

O terceiro dilema é entre a fidedignidade e a validade. Em psico- 
metria, a validade manifestamente nunca pode exceder a fidedigni- 
dade. Na análise de conteúdo, contudo, nós temos uma negociação 
entre as duas. A AC não pode supor um “valor verdadeiro” do texto, 
que pode sofrer perturbação devido à inexatidão da codificação: a 
codificação é o valor. A fidedignidade apenas indica uma interpreta- 
ção objetiva, que não é uma condição necessária para uma interpre- 
tação válida. A interobjetividade defende o pesquisador contra a ale- 
gação de arbitrariedade ou extravagância. Diferentemente da psico- 
metria, contudo, a baixa fidedignidade não invalida uma interpreta- 
ção (Andren, 1981): as ambigüidades do material são parte da análi- 
se. Uma codificação simplificada pode permitir resultados fidedig- 
nos, mas pouca informação. Por outro lado, uma alta fidedignidade 
é difícil de ser conseguida pai a uma codificação complexa, embora 
os resultados provavelmente sejam mais relevantes para a teoria e 
para o contexto prático. 

Análise de conteúdo com auxílio de computador 

O advento da computação estimulou o entusiasmo para a AC, e 
existem diversos tipos de análises com auxílio de computador para 



209 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



materiais textuais. A última onda de entusiasmo para o emprego de 
computadores foi simultânea à proliferação de bancos de dados com 
textos, tais como Reuters ou FT-Profile. Devido à extensa literatura 
especializada sobre este assunto (ver Nessan & Schmidt, 1995; Fiel- 
ding & Lee, 1998), irei apenas caracterizar brevemente três corren- 
tes básicas. 

A primeira corrente de AC com auxílio de computador é KWOC 
(Keyword Out of Context: palavra-chave fora do contexto - conta- 
dor de palavras) que classifica palavras singulares em conceitos. Ele 
se coloca na tradição do General Inquirer (Stone et ai, 1966). Um 
computador pode facilmente listar todas as palavras de um texto e 
agrupá-las em um dicionário. Esta é uma lista de conceitos teorica- 
mente interessantes, onde cada conceito é definido por uma lista de 
símbolos. Por exemplo, palavras como “aproximar-se”, “ataque”, e 
comunicar podem ser símbolos de “ação socioemocional”. Um 
computador reconhece facilmente seqüências de letras como pala- 
vras-símbolo, relaciona-as a um conceito de acordo com o dicioná- 
rio, e conta as freqüências dos conceitos em um texto. O General 
Inquirer sobrevive no pacote de computador TEXTPACK. O estudo 
mais ambicioso que empregou este enfoque foi o projeto de indica- 
dor cultural, de Namenswirth & Weber (1987), que detectou longas 
ondulações de valores políticos em discursos de políticos na Ingla- 
terra e nos Estados Unidos nos últimos 400 anos. 

O principal problema com o KWOC é que no dicionário os sím- 
bolos podem ser relacionados a apenas um conceito. Esta é uma li- 
mitação fundamental, pois as palavras são ambíguas. Este problema 
enfraqueceu muito o entusiasmo inicial do enfoque automático. 

A segunda corrente de computadorização é a análise de concor- 
dância e co-ocorrência, que considera palavras-chave em seu con- 
texto (KWIC - keywords in context - palavras-chave dentro do contex- 
to). Uma concordância apresenta uma lista de palavras junto com o 
co-texto. Muitos pacotes de análise de texto oferecem concordâncias 
como uma sub-rotina, e eles são muito úteis para explorar o sentido 
das palavras em um corpus, ou para conferir a relevância dos materi- 
ais. Por exemplo, a rotina de concordância iria rapidamente ajudar 
a distinguir artigos sobre o BSE (the Bombay Stock Exchange) de 
um estudo de cobertura de imprensa do BSE (Bovine Spongiform 
Enchphalopathy, ou doença da vaca louca). 



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8. Análise de conteúdo clássica... 



A análise de co-ocorrência, por outro lado, é uma análise estatís- 
tica de freqüentes pares de palavras em um corpus de texto. O proce- 
dimento supõe que a ocorrência freqüente de duas palavras juntas 
seja semanticamente significante. Programas de co-ocorrência, tais 
como ALCESTE, começam com a rotina de identificação de premis- 
sas (“lematização”) e estabelecem o vocabulário do corpus de texto. 
Em seguida, eles excluem palavras muito freqüentes e muito raras, e 
contam as co-ocorrências de palavras dentro de uma unidade de 
texto definida estabelecendo uma matriz. A partir daí, um algoritmo 
irá extrair uma representação geométrica, onde pontos são palavras 
agrupadas em grupos de associações (ver Kronberger e Wagner, 
cap. 17 deste volume). Tais programas podem manipular mais ou 
menos quantidades de texto em apenas determinadas línguas; eles 
podem alterar os parâmetros da análise, alterar os algoritmos para 
extrair uma solução de agrupamento, e escolher uma impressão tex- 
tual ou gráfica. 

A terceira corrente de AC com auxílio de computador é CAQDAS 
(Computer-assisted Qualitative Data Analysis Software - software 
para análise de dados qualitativos com auxílio de comutador). Este é 
o mais recente desenvolvimento para auxílio na análise de texto (ver 
Kelle, cap. 16 deste volume; Fielding & Lee, 1998). CAQDAS com- 
porta a etiquetação, a codificação e a indexação de textos, dando 
conta por isso da segmentação, ligação, ordenação e reordenação, 
estruturação e a busca e reapresentação de textos para fins de análi- 
se. Uma função inovadora é a produção de memorandos: o codifica- 
dor pode fazer comentários em cada ação de etiquetação, manten- 
do, desse modo, um protocolo para reflexão durante a codificação. 
Estes memorandos podem mais tarde ser empregados para regis- 
trar a reflexão ocorrida durante o processo de pesquisa: o pesquisa- 
dor mostra como ele foi se transformando durante a ação. Bons pro- 
gramas oferecem operadores de busca booleana para consultar seg- 
mentos de texto gráficos para mapear ligações no texto, e interfaces 
para análise estatística dos dados. CAQDAS e a análise clássica de 
conteúdo se encontram no codificador humano. 

Os professores muitas vezes dão as boas-vindas ao CAQDAS 
como um controlador, para instilar disciplina nos estudantes inex- 
perientes, que podem pensar que pesquisa qualitativa significa um 
vale-tudo. Seu amplo emprego, contudo, pode favorecer práticas in- 
desejáveis, tais como a proliferação de estruturas ramificadas na re- 



— 211 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



presentação dos dados da entrevista ou várias patologias de codifica- 
ção aberta (Fielding & Lee, 1998: 1 19s). O analista, ao ordenar e re- 
ordenar seus códigos e ligações, perde de vista o objetivo da pesqui- 
sa. Quando a análise enlouquece - por exemplo, com 2.000 códigos 
para seis entrevistas - o projeto entra em crise. 



Computadores, por mais úteis que sejam, são incapazes de subs- 
tituir o codificador humano. A análise de conteúdo permanece um 
ato de interpretação, cujas regras não podem ser realisticamente im- 
plementadas com um computador dentro de limitações práticas. O 
codificador humano é capaz de fazer julgamentos complicados rápi- 
da e fidedignamente, se auxiliado. 



Forças e fraquezas da análise de conteúdo 

-A -AC foi desenvolvida, na pesquisa social, para a análise de materi- 
ais textuais, especificamente material impresso. É um enfoque bastante 
geral, e o espectro de dados se ampliou no decorrer dos anos, chegan- 
do a abarcar praticamente todo artefato cultural (Gerbner et ai, 1969). 
A importância principal da AC talvez tenha sido continuar desafiando 
a curiosa primazia dos dados da entrevista na pesquisa social. 

As vantagens da AC são que ela é sistemática e pública; ela faz 
uso principalmente de dados brutos que ocorrem naturalmente; 
pode lidar com grandes quantidades de dados; presta-se para dados 
históricos; e ela oferece um conjunto de procedimentos maduros e 
bem documentados. 

A AC faz uso de materiais que ocorrem naturalmente: ela encon- 
tra traços da comunicação humana em materiais estocados nas biblio- 
tecas. Estas informações remanescentes foram criadas para outros 
fins, e empregando-as para pesquisa, a AC é, por isso, cuidadosa 
(Webb et al, 1966). “Que ocorrem naturalmente” não implica que o 
pesquisador não invista na construção de uma interpretação: o pes- 
quisador caminha através da seleção, criação de unidades e categori- 
zação dos dados brutos, embora evitando a reatividade direta do res- 
pondente durante a coleta de dados primários. 

A AC pode construir dados históricos: ela usa dados remanes- 
centes da atividade passada (entrevistas, experimentos, observação 
e levantamentos estão condicionados ao presente). Por conseguinte, 
ela pode ser um caminho barato para estabelecer tendências sociais. 



— 212 




8. ANÁLISE DE CONTEÚDO CLÁSSICA... 



com apenas pequena parcela do custo de um levantamento. O as- 
pecto negativo disso é que a AC apresenta primariamente dados a 
nível coletivo, caracterizando, desse modo, algo coletivo através de 
dados remanescentes de comunicação e expressão. 

O enfoque sistemático e o emprego de computadores permitem 
aos pesquisadores lidar com grandes quantidades de material. O ta- 
manho não é em si mesmo uma virtude, mas a quantidade de mate- 
rial sobre alguns tópicos pode chegar a ser esmagador. Por exemplo, 
minha estimativa para nosso estudo sobre ciência na imprensa nacio- 
nal da Inglaterra foi de que necessitaríamos investigar até 700.000 ar- 
tigos. Isso exigia um enfoque sistemático. Longe de ser a última pala- 
vra em um corpos, a AC pode ser o primeiro passo na ordenação e ca- 
racterização dos materiais em um enorme esforço de pesquisa. 

Muitas fraquezas da AC foram realçadas na sua curta história. 
Kracauer (1952) mostrou que a separação de unidades de análise in- 
troduz inexatidões de interpretação: citações fora de contexto podem 
facilmente ser enganadoras. Embora seja sempre preferível conside- 
rar uma unidade singular dentro do contexto do corpos inteiro, os co- 
dificadores irão fazer seus julgamentos dentro do co-texto imediato e 
através de uma familiaridade geral com o material. Codificar con tex- 
tualmente é importante para cada unidade de análise, seja ela um ar- 
tigo, um parágrafo, uma frase, ou uma palavra. Nesse caso, a codifica- 
ção automática e computadorizada mostrou suas limitações, e o codi- 
ficador/intérprete humano está longe de ser dispensado. 

A AC tende a focalizar freqüências, e desse modo descuida do que 
é raro e do que está ausente: respeitados analistas introduzem códigos 
teóricos que podem muito bem mostrar ausências relevantes no texto. 
Este é um problema de enfoque: devemos estar atentos ao presente, 
ou ao ausente? Em princípio, a AC faz ambas as coisas (ver Rose, cap. 
14 deste volume), embora tenha um viés para o presente. 

A relação entre unidades de texto segmentadas, codificadas em 
uma distribuição de freqüência, e o texto original, fica perdida na 
AC: a categorização perde a seqüencialidade da linguagem e do tex- 
to (ver Penn, cap. 13 deste volume). O momento em que algo foi dito 
pode ser mais importante que o que foi dito. Alguém poderia argu- 
mentar que a AC constrói paradigmas de sentido potencial, em vez 
de compreender o sentido real. A análise longitudinal re-introduz 
alguma forma de seqüência, onde a estrutura de um período pode 
ser comparada com a estrutura de outro, enquanto que as tendên- 
cias são estabelecidas. 



213 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A procura de uma análise de conteúdo automática - texto dentro, 
interpretação fora — mostrou ser absurda: a codificação semântica pri- 
vilegia o codificador humano eficiente (Markoff et ai, 1974). Grande 
parte da AC com codificadores humanos sofre de um exagero de mi- 
nuciosidade no exame - que às vezes se aproxima se uma fidedignida- 
de fetichista. Na análise da maioria das entrevistas e pesquisas de opi- 
nião, os pesquisadores atribuem confiantemente a variância observa- 
da aos respondentes, enquanto que eles escondem em uma caixa-pre- 
ta os vários efeitos dos entrevistadores, as situações e estruturas da 
pergunta, no controle de qualidade. Os analistas de conteúdo devem 
esenvolver igual preocupação em seus procedimentos, e atribuir 
também a variância observada às diferenças do texto. 

Como métodos de pesquisa social, o levantamento por amostra- 
gem, a entievista e a análise de conteúdo têm praticamente a mesma 
idade, como explicar, então, seu status diferente no arsenal das ciên- 
cias sociais científicas? Neumann (1989) aponta para vários proble- 
mas institucionais que contaminaram a AC durante muito tempo de 
sua curta história. A AC não conseguiu estimular um interesse aca- 
dêmico contínuo, movendo-se para um “gueto metodológico”, com 
ocasionais eclosões de atenção externa na década de 1940, 1970 e 
1990. Ela se ressente de uma convergência de atividades de pesqui- 
sa. Não existem arquivos de dados para armazenar e tornar acessí- 
veis dados brutos para análise secundária. Pesquisadores individuais 
constróem sua própria amostra e seu próprio referencial de análise. 
A AC sofreu as conseqüências de muita pesquisa rápida e nebulosa 
que deixou a impressão de que a AC pode provar tudo. Concepções 
simplistas, escalas de tempo limitadas e questões de pesquisa insig- 
nificantes confinaram a AC a projetos de pequena escala realizados 
por estudantes. Um método não é um substituto para idéias. O uso 
descritivo de muita AC reflete as dificuldades do problema de infe- 
rência: o que isso nos diz, sobre quem? A lacuna entre o possível e a 
realidade deve ser convenientemente superada com delineamentos 
de pesquisa paralelos, com múltiplos métodos: pesquisa longitudi- 
nal coordenada, incluindo levantamentos de opinião, entrevistas 
não estruturadas e corpora de textos é o caminho que se abre, inte- 
grando assim pesquisa qualitativa e quantitativa, em grande escala. 
A conversação e a escrita são ambas manifestações de opinião públi- 
ca; e opinião pública que é reduzida a apenas um de seus constituin- 
tes tem muita probabilidade de ser falsa. 




8. Análise de conteúdo clássica... 



Passos na análise de conteúdo 

1 . A teoria e as circunstâncias sugerem a seleção de textos específicos. 

2. Faça uma amostra caso existirem muitos textos para analisá-los 
completamente. 

3. Construa um referencial de codificação que se ajuste tanto às 
considerações teóricas, como aos materiais. 

4. Faça um teste piloto, revise o referencial de codificação e defina 
explicitamente as regras de codificação. 

5. Teste a fidedignidade dos códigos, e sensibilize os codificadores 
para as ambigüidades. 

6. Codifique todos os materiais na amostra, e estabeleça o nível de 
fidedignidade geral do processo. 

7. Construa um arquivo de dados para fins de análise estatística. 

8. Faça um folheto incluindo a) o racional para o referencial de co- 
dificação; b) as distribuições de freqüência de todos os códigos; c) 
a fidedignidade do processo de codificação. 



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— 217 



9 

Análise argumentativa 



Miltos Liakopoulos 



Palavras-chave: argumentação; refutação; apoio; retórica; pro- 
posição; garantia; dados. 



Conforme Aristóteles, nós somos “animais políticos”, e com isso, 
ele queria dizer que os humanos estão organizados em sociedades 
de acordo com princípios comuns e com práticas de comportamento 
comumente negociadas. Política foi o nome dado à instituição que 
permitia a elaboração e organização de práticas comuns na socieda- 
de. A forma principal de comunicação dentro dessa instituição era a 
fala, mas não qualquer tipo de fala: havia um tipo específico de fala 
formal, empregada na política, chamada retórica. 

Os sentidos das palavras política e retórica mudaram desde os 
tempos de Aristóteles, mas a maneira como as pessoas se organizam 
em sociedade e discutem sobre isso é ainda a mesma. Os debates sur- 
gem a respeito de assuntos de interesse social e, como a era da infor- 
mação está alcançando maturidade, mais e mais pessoas estão se tor- 
nando ativas nestes debates. O fato de grande quantidade de pes- 
soas estarem tomando parte nos debates sociais possui uma conse- 
qüência importante: a forma preferida de fala está se tornando me- 
nos formal. Apesar de estar mudando sua forma, toda fala que inclui 
debate se desenrola ao redor de um bloco básico: o argumento. O 
argumento forma a espinha dorsal da fala. Ele representa a idéia 
central ou o princípio no qual a fala está baseada. Ainda mais, ele é 
uma ferramenta de mudança social, na medida em que pretende 
persuadir uma audiência em foco. 

Este capítulo trata da análise argumentativa. Trata de trazer o 
argumento para o primeiro plano da pesquisa social sobre debates 



— 218 — 





9. Análise argumentativa 



públicos. Tem como objetivo oferecer uma visão metodológica 
compreensiva da análise das estruturas da argumentação, com pro- 
pósito de compreender melhor os parâmetros que influenciam os 
debates públicos. 

O termo argumentação se refere a uma atividade verbal ou escrita 
que consiste em uma série de afirmações com o objetivo de justificar, 
ou refutar, determinada opinião, e persuadir uma audiência (van Ee- 
meren etal., 1987). O objetivo da análise da argumentação é documen- 
tar a maneira como afirmações são estruturadas dentro de um texto 
discursivo, e avaliar sua solidez. A análise normalmente se centra na in- 
teração entre duas ou mais pessoas que apresentam argumentos como 
parte de uma discussão ou debate, ou sobre um texto dentro do qual a 
pessoa constrói um argumento (van Eemeren et al., 1997). 

O enfoque tradicional vê os argumentos tanto como um proces- 
so e como um produto. O processo se refere à estrutura inferencial 
do argumento: ele é uma série de afirmações usadas como proposi- 
ções, junto com outra série de afirmações usadas como justificativas 
das afirmações anteriores. O argumento como produto se refere à 
maneira como os argumentos se tornam parte de uma atividade 
dentro do contexto geral do discurso. As características básicas de 
um argumento são (Burleson, 1992): 

a) a existência de uma asserção construída como proposição. 

b) uma estrutura organizativa ao redor da defesa da proposição. 

c) um salto inferencial no movimento que vai da justificativa 
para a asserção. 

A teoria de argumentação e Toulmin 

No passado, as teorias da argumentação focalizavam a lógica da 
estrutura de argumentação, e procuravam delinear regras que expu- 
nham as falácias no pensar (Benoit, 1992). A teoria do raciocínio de 
Aristóteles, por exemplo, foi um enfoque influente na avaliação de 
um argumento a partir da perspectiva da lógica formal. Desse ponto 
de vista, o argumento é tão válido quanto é o raciocínio existente 
por detrás dele, e existem determinadas regras universais que po- 
dem ser usadas na avaliação da lógica do argumento. 

Na era moderna de influência dos meios de comunicação de 
massa, onde a argumentação alcança muito mais pessoas, em vez de 
apenas alguns privilegiados, novas teorias se desenvolveram. Estas 
teorias se deslocaram para uma visão interacional da argumentação, 



— 219 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



passando a ser seu foco o uso informal dos argumentos na fala do 
dia-a-dia e dentro de um contexto específico. Um notável exemplo 
desse novo tipo é a teoria da argumentação de Stephen Toulmin, 
que é apresentada em seu livro The Uses ofArguments (1958). Ela é o 
exemplo de uma teoria de lógica informal que se adapta melhor à 
era moderna da interação informal, da propaganda e da publicida- 
de. A ênfase de Toulmin na persuasão e no convencimento sobre a 
validade formal, e seu tratamento mais funcional da linguagem, tor- 
naram sua teoria um referencial muito influente para a pesquisa na 
área da argumentação (Antaki, 1994). 

Toulmin propõe uma analogia entre um argumento e um orga- 
nismo, e caracteriza a ambos como tendo uma estrutura anatômica e 
fisiológica. A estrutura anatômica de um argumento, do mesmo modo 
que um organismo, pode ser representada de uma forma esquemá- 
tica. A representação esquemática da estrutura do argumento é a 
base para sua avaliação crítica e solidez (isto é, sua função psicológi- 
ca). Neste sentido, o mérito de um argumento éjulgado com funda- 
mento na função de suas partes inter-relacionadas, e não com fun- 
damento em sua forma. 

O argumento mais simples toma a forma de uma proposição ou 
de uma conclusão precedida por fatos (dados) que a apoiam. Mas 
muitas vezes um qualificador dos dados é exigido: em outras pala- 
vras, uma premissa que nós usamos para defender que os dados são 
legitimamente empregados para apoiar a proposição. Esta premissa 
é chamada de garantia. Garantias são cruciais na determinação da 
validade do argumento, porque elas justificam explicitamente o pas- 
so que se deu dos dados para a proposição, e descrevem o processo 
em termos de por que esse passo pode ser dado. Uma representação 
gráfica da estrutura do argumento é apresentada na Figura 9.1 
(adaptada de Toulmin, 1958). 



'Dados' 



t 



■> Desse modo, 'Qualificador', 'Proposição' 

1 

A não ser que 'Refutação' 



Pois há 'Garantia' 



V 



Por conta do 'Apoio' 



Figura 9.1 - Estrutura do argumento ( adaptada de Toulmin, 1958). 



— 220 — 




9. Análise argumentativa 



Toulmin admite que em alguns argumentos é difícil distinguir 
entre dados e apoios, embora a distinção seja crucial na análise do 
argumento. Uma maneira de distingui-los é considerar que em ge- 
ral os dados são explícitos, enquanto que as garantias são implícitas. 
Enquanto que os dados são usados para legitimar a conclusão com 
referência explícita aos fatos, as garantias são usadas para legitimar 
o processo que vai dos dados à proposição, e para encaminhá-la de 
volta para outros passos implicados nessa legitimação - passos cuja 
legitimidade é pressuposta. 

Diferentes tipos de garantias dão força diferente à proposição. 
Às vezes há necessidade de fazer uma referência específica à força 
do processo que vai dos dados à proposição, através de uma garan- 
tia. Essa referência é chamada de um qualificador, e toma a forma 
de palavras tais como necessariamente, presumivelmente, provavel- 
mente, etc. 

O processo que vai da garantia até a proposição pode muitas ve- 
zes ser condicional (por exemplo, a proposição é provavelmente 
verdadeira a menos que...). Isto se refere a condições sob as quais a 
garantia não tem controle. Em tais casos, refutações são usadas 
como afirmações condicionais semelhantes aos qualificadores. 

Em um argumento mais complexo, há necessidade de explicar 
por que a garantia usada tem poder. Nesse caso, a garantia necessita 
um apoio (ver Figura 9.1). Normalmente, apoios são afirmações ca- 
tegóricas ou fatos (tais como leis), não diferentes dos dados que con- 
duzem inicialmente à proposição. A aparição de apoios para garan- 
tia depende de a garantia ser aceita, ou não, como não tendo proble- 
mas. Apoios de garantia não são usados muitas vezes em uma discus- 
são porque isso tornaria uma discussão prática tão complexa que a 
tornaria impossível. 

A natureza categórica dos apoios cria certas semelhanças com a 
parte dos dados do argumento. A diferença entre dados e apoio é, 
em geral, que dados são particulares, e apoio é uma premissa uni- 
versal. Por exemplo, onde dados têm a ver com um referencial dire- 
tamente relacionado com a proposição, um apoio consistiria de uma 
afirmação geral que se aplicaria a muitos outros casos. / 

Na visão de Toulmin, a argumentação é um ato social incluindo 
toda atividade que diz respeito a formular proposições, apoiá-las, 
fundamentá-las com razões, etc. (Toulmin et al., 1979). Por esta razão, 
ele introduz a noção de campos do argumento. Ele sugere que alguns 



— 221 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



aspectos do argumento são basicamente os mesmos, apesar do con- 
texto em que eles são desenvolvidos; esses são invariantes com refe- 
rência ao campo. Por ouro lado, alguns outros aspectos diferem de 
contexto para contexto, e como tais são dependentes do campo. 
Exemplos de campos são a política, a justiça e a arte. Cada campo 
possui seus próprios critérios para desenvolver e compreender os ar- 
gumentos, com a conseqüência que discordâncias entre campos são 
difíceis de resolver, pois eles acontecem em diferentes esferas. 

A noção de campos de argumento, ou contextualização da argu- 
mentação, está diretamente ligada com a de validade formal e o tipo 
do argumento. Existem diferentes tipos de argumentos, de acordo 
com Toulmin, e sua classificação está baseada nas diferentes quali- 
dades de seus componentes. A distinção mais importante é entre ar- 
gumentos substanciais e analíticos. A diferença é que o argumento 
analítico contém apoio para a garantia, cuja informação autoriza, 
explícita ou implicitamente, a própria conclusão. Em outras pala- 
vras, uma compreensão do argumento pressupõe uma compreensão 
de sua legitimidade. Neste caso, a garantia é usada na forma tradi- 
cional de reforço do processo da lógica que vai dos dados à proposi- 
ção, mas sendo independente deles. O típico argumento científico é 
o do tipo encontrado na lógica, ou matemática, onde a conclusão é 
necessariamente resultado das premissas. A avaliação desses argu- 
mentos segue as regras da validade formal. 

Toulmin, entretanto, afirmou que a validade formal não é nem 
condição necessária, nem suficiente da solidez de um argumento. 
Por exemplo, em um argumento substancial a conclusão não está 
necessariamente contida, ou implicada, nas premissas, porque as 
premissas e a conclusão podem ser de diferentes tipos lógicos. Com- 
preender a evidência e a conclusão pode não ajudar a compreender 
o processo, e desse modo garantias e apoios de outro tipo lógico são 
usados para fechar a lacuna de compreensão. Conseqüentemente, o 
uso de qualificadores tais como “possivelmente”, ou “com probabili- 
dade”, se torna inevitável. Um exemplo deste argumento poderia 
incluir a conclusão sobre o passado, com premissas contendo dados 
sobre o presente. Neste caso, a discrepância lógica entre premissas e 
conclusão só pode ser preenchida pela referência ao campo específi- 
co em que o argumento está se desenvolvendo. 

A teoria da argumentação de Toulmin tem sido influente no 
campo da pesquisa sobre argumentação, na medida em que significa 



— 222 — 



9. ANÁLISE ARGUMENTATIVA 



uma ruptura com o rígido sujeito da lógica formal e oferece uma for- 
ma básica e flexível, quase geométrica, de análise de argumentação. 
Suas idéias foram exploradas em uma quantidade de estudos. Por 
exemplo, na área da argumentação formal textual, Weinstein (1990) 
empregou o esquema de Toulmin para analisar a estrutura da argu- 
mentação típica da ciência. Bali (1994) usou uma adaptação compu- 
tadorizada do modelo de Toulmin para analisar argumentos de po- 
lítica pública. Na psicologia do desenvolvimento, de Bemardi & 
Antolini (1996), compararam o tipo de argumentação e estrutura 
em trabalhos de escolas de diferentes graus. Putnam & Geist (1985) 
estudaram o processo de negociação entre professores de escola e 
administradores, em uma escola distrital local, a fim de examinar a 
maneira como a argumentação configura os resultados. De maneira 
semelhante, Chambliss (1995) e Gamer (1996) empregaram a estru- 
tura de Toulmin para pesquisar o efeito sobre os leitores de um tex- 
to persuasivo/argumentativo sobre a Guerra do Golfo. 

O modelo de Toulmin é uma generalização derivada de uma 
teoria desenvolvida no contexto do direito, como ele explica: 

Nos estudos que seguem, então, a natureza do processo racional 
será discutida com a “analogia jurisprudencial” em mente: nosso 
tema será oprudencial, não simplesmente do jus, porém mais usu- 
almente da ratio... Nossas proposições extralegais devem ser justi- 
ficadas, não diante dos Juízes de Sua Majestade, mas diante da 
Corte da Razão ( 1958 : 8 ). 

As proposições de Toulmin, contudo, concernentes à generali- 
dade de seu modelo, foram questionadas por outros estudiosos da 
argumentação. O modelo foi criticado como sendo demasiadamen- 
te simples para a análise de estruturas complexas que ocorrem no 
mundo concreto (Bali, 1994); e como sendo mal definido em termos 
de suas partes estruturais e seus tipos (Van Eemeren et ai, 1987). 
Hample (1992) chegou até a afirmar que o modelo não se mostra 
verdadeiro nem para os exemplos que Toulmin apresenta em seu li- 
vro The Uses ofArguments. 

A flexibilidade da estrutura do argumento de Toulmin, que per- 
mite várias interpretações dos componentes da argumentação, é ou- 
tro problema. Por exemplo, argumentou-se que os termos “apoio” e 
“garantia” de Toulmin não são claramente distinguíveis, e também 
que ele não oferece um modo consistente de se conseguir “dados” a 
partir da “garantia” (Hample, 1992; Van Eemeren et al., 1987). 



— 223 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Toulmin reconhece essas limitações no modelo. Ao empregar 
exemplos de argumentos a partir de uma área de estudo específica 
(direito), ele evita o problema das inconsistências em sua definição 
das partes do argumento. Apesar disso, como foi dito acima, ele in- 
troduz uma importante noção de especificidade de contexto em seu 
modelo. As inconsistências aparentes podem ser resolvidas se al- 
guém leva em consideração a noção de Toulmin do contexto em que 
o argumento é empregado. Em outras palavras, o contexto irá for- 
necer a estrutura em que a identificação dos componentes do argu- 
mento se torna clara (Burleson, 1992). 

Estudo de caso e definição das partes do argumento 

Nesta seção, irei ilustrar a análise de argumentação em um estu- 
do de caso. O caso se refere à soja geneticamente modificada (GM), 
que entrou no mercado europeu em outubro de 1996, e conduziu ao 
primeiro debate público na Inglaterra sobre aplicações da biotecno- 
logia moderna. 

Como foi discutido acima, as definições das partes do argumento 
(dados, reivindicações, garantias, apoios e refutações) não são sempre 
claras. Os pesquisadores, usando o método de Toulmin, acharam 
apropriado criar suas definições próprias das partes do argumento, 
baseadas na conceptualização de Toulmin (ver de Bemardi & Antoli- 
ni, 1996; Marouda, 1995; Simosi, 1997). Suas definições dependem 
do contexto em que a pesquisa tem lugar (por exemplo, uma situação 
organizacional ou educacional), e dos meios para descobrir a estrutu- 
ra da argumentação (por exemplo, ensaios ou entrevistas). 

No estudo do debate sobre a soja, a estrutura da argumentação 
está localizada nos artigos de jornais. A formalidade do assunto e as 
forças da argumentação permitem uma aproximação menos contro- 
versa com respeito ao tópico da definição e à identificação das partes 
do argumento, pois os próprios atores têm toda razão de serem for- 
mais e estritos no seu esquema de argumentação. Isto porque em um 
debate público que envolve sérios problemas, tais como saúde públi- 
ca, grandes ganhos financeiros e até mesmo relações internacionais 
(como foi o caso no debate sobre soja), cada participante é muito cui- 
dadoso em articular e empregar apoios claros e adequados para suas 
reivindicações. Por isso nossas definições das partes do argumento 
dar-se-ão no contexto de um debate social formalizado, que se fun- 
damenta em fatos explícitos e com vistas a apoiar tomadas de deci- 



— 224 — 



9. ANÁLISE ARGUMENTATIVA 



são legais, não diferentes do contexto em que Toulmin desenvolveu 
seu modelo original. 

Nossa unidade de análise é composta de textos escritos (artigos 
de jornal) que se referem explicitamente a pontos de vista, crenças e 
convicções de atores no debate sobre soja. Um ator é definido como 
qualquer parte interessada no debate que expresse uma opinião es- 
truturada. Sendo que os pontos de vista dos atores estão algumas ve- 
zes dispersos no artigo, dependendo do espaço disponível e do esti- 
lo jornalístico, achamos necessário sinteüzar os pontos de vista em 
um parágrafo que foi subseqüentemente usado como a fonte para a 
desconstrução da argumentação. 

Além do mais, e à luz do que foi dito acima, nós definimos as par- 
tes do argumento como um ponto de referência para o codificador 
que necessita desconstruir determinado argumento. Achamos as 
tentativas de definir as partes do argumento de de Bemardi & Anto- 
lini (1996), e de Simosi (1997) particularmente úteis, e as adaptamos 
para nossos próprios fins: 

• Proposição: uma afirmação que contém estrutura e é apresenta- 
da como o resultado de um argumento apoiado por fatos. Poderão 
existir numerosas proposições em uma unidade de análise, mas nos- 
so interesse reside na proposição central que é parte da estrutura da 
argumentação. 

Exemplos de proposições são: 

A biotecnologia é a solução para a fome do mundo. 

Alimentos gerados geneticamente possuem efeitos imprevisíveis 
sobre a saúde a longo termo. 

A avaliação do risco da soja geneticamente criada não é apropriada. 

• Dados: fatos ou evidência que estão à disposição do criador do 
argumento. Os dados podem se referir a acontecimentos passados, 
ou à situação, ação ou opinião atuais, mas de qualquer modo eles se 
referem à informação que está relacionada com a proposição central 
do argumento. 

Exemplos de dados são: 

O crescimento da população é rápido e há falta de alimento. 

Os reguladores na Comissão Européia já aprovaram plantações 
geneticamente criadas. 



— 225 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Noventa e três por cento do público respondeu sim à pergunta: 
“Você acredita que alimentos que contêm alimento geneticamente 
produzido devem ser rotulados?” 

Algumas vezes os dados podem ser proposições que foram vali- 
dadas em argumentos precedentes. Por exemplo, em argumentos 
que são gerados a partir de uma fonte científica, os dados podem ser 
o resultado (proposição) de um antigo experimento científico. Por 
exemplo: 

Genes estranhos podem passar às células intestinais (dados), por 
isso alimentos geneticamente criados podem alterar o DNA daque- 
les que os comem [proposição]. 

É também no campo do argumento científico que afirmações po- 
dem desempenhar os papéis tanto de dados, como de garantia, ao 
mesmo tempo. Isto se deve ao estilo autoritativo dos argumentos ci- 
entíficos (Weinstein, 1990). Por exemplo: 

Os cientistas descobriram que genes estranhos em plantações 
geneticamente criadas podem se incorporar às ervas daninhas, des- 
se modo a soja geneticamente criada pode transmitir o gene resis- 
tente à peste, também para outras plantas (proposição). 

Neste argumento, fica claro que a primeira afirmação é tanto a 
evidência em que a proposição está fundamentada, como também o 
apoio para a validade do processo de passagem dos dados para a 
proposição. 

• Garantia: uma premissa consistindo de razões, autorizações e 
regras usadas para afirmar que os dados são legitimamente utiliza- 
dos a fim de apoiar a proposição. Ela é o passo lógico que conduz à 
conclusão, não por meio de uma regra formal, mas pela regra da ló- 
gica do argumento específico. 

Por exemplo: 

A avaliação do risco de alimentos geneticamente criados não in- 
clui a avaliação do impacto total no meio ambiente. 

Nossa sociedade tem a habilidade de discernir entre os custos e 
os benefícios da nova tecnologia e decidir sobre isso. 

Tais afirmações incluem uma regra e um raciocínio pessoal res- 
pectivamente, que são reivindicações elas próprias, se vistas a partir 
do contexto do argumento, mas são usadas para legitimação das 
conclusões do argumento (o porquê ou por conseguinte que prece- 
dem a conclusão). 



— 226 — 




9. Análise argumentativa 



• Apoio: uma premissa que é usada como um meio de ajudar a ga- 
rantia no argumento. Ele é a fonte que garante a aceitabilidade e a au- 
tenticidade da razão, ou regra a que a garantia se refere. Semelhante 
no estilo aos dados, ela normalmente oferece informação explícita. 

Por exemplo: 

Os químicos desenvolveram o cloro e os físicos desenvolveram a 
bomba atômica 

É usado para legitimar a garantia: 

Os cientistas são responsáveis pelas conseqüências de seu traba- 
lho e a ciência não é eticamente neutra. 

É também comum que os apoios não sejam explicitamente colo- 
cados, mas que apenas a eles se aluda, ou que sejam deixados para 
serem presumidos pelo leitor do argumento (Govier, 1987). Por 
exemplo, a garantia: 

A avaliação de risco de alimentos geneticamente criados não in- 
clui uma avaliação do impacto total no meio ambiente. 

Alude às regulamentações da avaliação do impacto total no meio 
ambiente que incluem artigos X, Y, etc. 

A incorporação na argumentação de premissas ocultas como es- 
tas é deixada à decisão do pesquisador e depende da necessidade 
que ele tem de incluí-las em sua análise. No nosso caso, decidimos 
incluir estas premissas ocultas em nossa representação esquemática 
dos argumentos, sempre que se fazia alusão a elas, pois fazem parte 
da estrutura implícita do argumento, e por isso auxiliam nosso es- 
forço de compreender o processo da argumentação. 

• Refutação: uma premissa que autoriza a refutação da generalida- 
de da garantia. Ela mostra a exceção da regra que é afirmada no argu- 
mento, ou as condições sob as quais o argumento não possui legitima- 
ção e por isso a reivindicação não se sustenta como verdadeira. 

Por exemplo: 

A reação do consumidor pode minar a tendência da biotecnologia 
é usada como uma refutação da proposição de que 

A tendência da biotecnologia é inevitável, pois ela propicia enor- 
mes ganhos financeiros. 

As refutações não são usadas muitas vezes na argumentação for- 
mal, como o foram no nosso caso, porque elas podem minar a pró- 



— 227 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



pria essência do argumento, que é persuadir o público da legitimi- 
dade da conclusão. Esta é uma diferença dos exemplos de Toulmin 
sobre o direito, onde as refutações contêm até mesmo premissas de 
apoio separadas, pois cada lei tem também regras para exceções. 

Do texto para Toulmin: um exemplo 

Apresentarei agora um exemplo de identificação e decomposi- 
ção dos argumentos que foram encontrados no material da mídia 
impressa sobre o tópico da soja geneticamente criada. O exemplo 
provém de uma carta ao editor que apareceu no Financial Times de 
27 de junho de 1996, um pouco antes da introdução da soja geneti- 
camente criada no mercado: 

Prezado senhor , a coluna de Henri Millers Viewpoint “A esquer- 
da se colocando a favor da revolução agrícola ” contém várias afir- 
mações que merecem ser questionadas . 

1. A geração de plantas e animais geneticamente modificados 
(“transgênicos”), implica a integração aleatória do material gené- 
tico buscado no DNA do organismo hospedeiro , e por isso dificil- 
mente pode-se afirmar que ela seja precisa. Este procedimento re- 
sulta no rompimento da planta genética do organismo com conse- 
quências totalmente imprevisíveis a longo termo. 

2. O enfoque transgênico de gerar novas variedades de alimentos a 
partir das plantas e animais não pode ser visto como uma extensão 
natural dos métodos clássicos de procriação , pois ele permite que as 
barreiras normais da espécie sejam burladas. Deste modo , até mes- 
mo as proteínas animais podem agora ser criadas em plantas. 

3. Gêneros alimentícios de fontes criadas geneticamente já causa- 
ram problemas de saúde (e, ao menos em um caso , fatal ) devido à 
produção imprevisível de substâncias tóxicas (metabólitos como o 
tryptophan de bactérias criadas) e reações alérgicas (a proteína da 
noz brasileira na soja). 

4. A maioria das plantas transgênicos (57 por cento) que estão em 
desenvolvimento estão sendo criadas para serem resistentes a her- 
bicidas que permitem o uso mais liberal de agroquímicos , e não sua 
diminuição , como é afirmado. 

5. Já se descobriu que plantações transgênicos criadas para serem 
resistentes a herbicidas (por exemplo, batatas, sementes de colza) se 
transpolinizam com espécies relacionadas de tipo selvagem, geran- 
do potenciais superplantas. Estes problemas ambientais ameaçam 
minar louváveis iniciativas tais como as do esquema LEAF de ge- 
renciamento integrado de plantações, no qual a maioria das ca- 
deias de supermercados britânicos agora se inscreveu. 



228 — 




9. Análise argumentativa 



Infelizmente, a União Européia parece estar seguindo o exemplo 
dos Estados Unidos e está inclinada a introduzir dezenas de dife- 
rentes variedades de plantas geneticamente modificadas em um fu- 
turo próximo, sem os exames adequados de segurança e sem a preo- 
cupação com o impacto destas plantas no meio ambiente a longo 
prazo. Além do mais, não há exigência de selo obrigatório de ali- 
mentos geneticamente criados. Seguramente, devido aos problemas 
que já apareceram, até mesmo precaução maior é necessária, com 
uma legislação mais estrita com respeito à avaliação e à segurança 
do que sejam realmente alimentos “ experimentais ”. 

A etiquetação clara destes novos alimentos irá também garantir 
que o consumidor não apenas tenha a escolha, mas também, caso 
problemas imprevistos surgirem, a fonte possa ser mais facilmente 
descoberta. Deveria ser óbvio a necessidade de uma política aberta 
e honesta para construir uma confiança do consumidor com respei- 
to a estes produtos e assegurar um futuro econômico saudável. 

Professor PhD. de Biologia Molecular. 

Primeiro, nós identificamos a fonte da argumentação porque é 
dada uma indicação dos atores no debate. É comum na tradição jor- 
nalística de grandes jornais, dar uma explicação completa das pers- 
pectivas sobre um tópico específico, antes que o jornalista apresente 
as suas. Como tal, um único artigo pode conter diferentes fontes, para 
os diferentes argumentos. Neste caso, o autor do texto é identificado 
como um doutor (PhD) e professor de Biologia Molecular. Por isso a 
fonte da argumentação neste texto é identificada como ciência. 

Como um auxílio prático de decomposição do argumento, nós 
sumarizamos a seguir os pontos principais. Isso ajuda tanto a coletar 
as partes dispersas da argumentação em um texto contínuo, como 
identificar possíveis conexões que podem não ser tão óbvias em uma 
primeira leitura do artigo. 

A produção de alimento geneticamente criado emprega técnicas 
aleatórias que rompem a planta genética de um organismo e por 
isso há conseqüências imprevisíveis a longo prazo. 

A engenharia genética não é um processo natural, porque ela 
permite burlar as barreiras da espécie transportando proteínas 
animais para plantas. 

A aprovação da União Européia de plantações geneticamente 
modificadas não está baseada em exames apropriados de segu- 
rança, no que se refere aos efeitos a longo termo sobre a saúde e 
sobre o meio ambiente, pois os gêneros alimentícios que provêm 
de fontes geneticamente criadas causaram problemas de saúde. 



— 229 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



como no caso de reações alérgicas ao soja com a proteína da noz 
do Brasil, e foi descoberto que plantações geneticamente criadas 
se trans-polinizam com espécies selvagens semelhantes. 

Nos termos da representação esquemática do argumento de Toul- 
min, podemos representar os argumentos adma como na Tabela 9. 1 . 



Tabela 9.1 - Corta sobre soja CM: representação dos argumentos 

Argumento I 
Dados 

A produção de alimento geneticamente 
criado usa técnicas aleatórias 

Garantia (pois) 

As técnicas rompem a planta genética do 

organismo 

Argumento II 

Proposição (deste modo) 

A engenharia genética não é um processo 
natural 

Garanf/a (pois) 

A engenharia genética permite burlar a 
barreira da espécie 

Apoio (porque) 

A engenharia genética pode ser usada 
para levar proteínas animais para as 
plantas 

Argumento 111 

Dados 

A União Européia aprovou plantações 
geneticamente modificadas 

Garanf/a (po/s) 

Alimentos geneticamente criados 
causaram problemas de saúde e 
plantações geneticamente criadas se 
transpolinizaram com espécies selvagens 

Apoio (porque) 

Soja geneticamente modificada com a 
proteína de uma noz do Brasil causou 
reações alérgicas 



Proposição (desse modo) 

A União Européia não fez os exames 
adequados de segurança para efeitos a 
longo prazo sobre a saúde e o meio 
ambiente 



Proposição (deste modo) 

Alimentos geneticamente criados têm 
imprevisíveis conseqüências a longo 
termo 



— 230 — 







9. Análise argumentativa 



Uma nota sobre a fidedignidade da argumentação do esquema 
de codificação 

Discuti acima os problemas da definição e, conseqüentemente, 
da identificação das partes da análise da argumentação. Vimos que o 
modelo de Toulmin foi criticado por lhe faltar definições claras, e 
como o conceito de “contextualização” pode ser de grande ajuda na 
superação de dificuldades de identificação. As definições que nós 
demos às partes do argumento foram uma tentativa de resolver os 
problemas de identificação e para criar um referencial de codifica- 
ção objetivo que pode ser usado por muitos codificadores. 

Uma medida de objetividade é a “fidedignidade intercodificado- 
res”, pela qual os codificadores empregam o mesmo referencial de 
codificação para codificar independentemente as mesmas unidades. 
A quantia de concordância entre eles é uma estimativa da fidedigni- 
dade intercodificador (ver também Krippendorff, 1980). Em uma 
tentativa de esclarecer o processo metodológico que nós seguimos 
neste estudo, desenvolvemos um teste de fidedignidade intercodifica- 
dor. A fidedignidade geral na codificação de dois codificadores inde- 
pendentes, neste estudo, foi 0.77 (a fidedignidade para conceitos in- 
dividuais flutua entre 0.69 e 0.89). Este é um resultado satisfatório, 
pois ele mostra uma clareza significativa na definição das partes do 
material do texto que estamos usando para nossa investigação. 

Alguns resultados do estudo de caso 

Tendo explicado o processo de identificação e desconstrução 
dos argumentos a partir de material textual com base na representa- 
ção esquemática de Toulmin, podemos agora voltar-nos para o 
exemplo de um estudo de caso de análise da argumentação. Nosso 
estudo de caso, como no exemplo acima, refere-se ao debate público 
que surgiu a partir da introdução do primeiro alimento GM - a soja 
- no mercado europeu. 

A análise do debate da soja nos artigos de jornal foi parte de uma 
tese de doutorado do autor deste capítulo (Liakopoulos, 2000). O 
primeiro nível de análise foi a identificação da estrutura de argu- 
mentação de cada parte interessada na controvérsia. Com este fim, 
identificamos artigos da mídia que se referiam ao problema da soja, 
durante o período de sua introdução no mercado (outubro de 1996 
ajaneiro de 1997), e seguindo o procedimento discutido acima, des- 
contruímos a argumentação para cada ator principal do debate. 



— 231 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Identificamos um total de 37 artigos que continham material de 
argumentação. A desconstrução da argumentação resultou em 59 
argumentos principais. Os argumentos foram então sintetizados 
para cada ator no debate (fonte de argumentação). Aqui estão al- 
guns resultados preliminares de três atores no debate: indústria, 
grupos ambientais e ciência. 

Argumentação da indústria 

A síntese da argumentação da indústria, a partir da representa- 
ção esquemática de Toulmin, é mostrada na Tabela 9.2. 



Tabela 9.2 - Argumentação da indústria sobre a soja GM 



Dados 


Proposições (desse modo provavelmente) 


A soja GM foi aprovada pela EU 


A segregação do soja não é necessária 


A população mundial está crescendo 


A soja GM não é nova 


O mundo tem falta de alimento 


A soja GM é segura 

Não é necessário etiquetar a soja GM 

Biotecnologia é a solução para a fome do 

mundo 

Biotecnologia é a chave para o 
desenvolvimento sustentável 
Os consumidores devem aprender mais 
sobre biotecnologia 
A tendência de investimento na 
biotecnologia é inevitável 


Garantia (sendo que) 


Refutação (a não ser que) 


As mesmas técnicas foram usadas por 
centenas de anos 


A reação dos consumidores irá minar a 
tendência da biotecnologia 


A soja GM foi aprovada como segura por 
fiscalizadores em todo o mundo 
A etiquetação implicaria que a soja GM é 
diferente 

A biotecnologia assegura plantações mais 
baratas e compatíveis com o meio 
ambiente 

A biotecnologia promete grandes lucros 




Apoio (porque) 


Apoio (porque) 


A soja GM é idêntica ao soja normal 


A reação do consumidor se baseia na 
ignorância e em mal-entendidos 


As plantações GM produzem 20% mais e 
necessitam menos pesticidas 





— 232 — 






9. Análise argumentativa 



Vimos que a argumentação da indústria para a soja GM segue 
uma variedade de linhas paralelas. A soja GM é primeiramente vista 
como um produto seguro e econômico, e um progresso, como a eli- 
minação da fome no mundo. O apoio para essas proposições pro- 
vém do resultado do processo legal e dos dados de experimentos. O 
problema da imagem é também reconhecido e é atribuído à igno- 
rância e aos mal-entendidos. Ainda mais, os dados são também usa- 
dos como garantias de proposições: por exemplo, o fato de que a 
soja foi aprovada pelas autoridades legais é usado como uma garan- 
tia devido a seus credenciais de segurança. No geral, a estrutura do 
argumento é clara, com apoios e uma simplicidade que pode agra- 
dar ao raciocínio do senso comum. 

A instância oficial reguladora para a soja GM, como representada 
no raciocínio nas partes que dizem que o Food and Drug Admirústration 
dos Estados Unidos aprovou a soja, é refletida nessa argumentação. 
Ela é usada como uma garantia das proposições de sua segurança. 

A única refutação na argumentação da indústria é a questão da 
aceitação pelo consumidor. A indústria vê claramente a aceitação por 
parte do consumidor como um impedimento à promessa da biotec- 
nologia, reconhecendo, por isso, a necessidade de uma informação e 
uma campanha de imagem (na verdade, a indústria de biotecnologia 
européia lançou uma grande campanha de informação e de imagem). 

No que se refere à clareza da argumentação, sua compreensão e 
aceitação dependem da aceitação de seus pressupostos implícitos. 
Estes pressupostos podem ser lacunas no raciocínio dedutivo do argu- 
mento (isto é, premissas que estão faltando), ou simplesmente verda- 
des universais sobre a realidade do contexto particular em que o ar- 
gumento tem lugar (Govier, 1987). De qualquer modo, estes pressu- 
postos fornecem pistas importantes para a validade do argumento. A 
argumentação da indústria deixa certos fatos e garantias sem explica- 
ção, pelo fato de pressupor que o leitor está de acordo com sua verda- 
de ipso facto. Estes pressupostos podem ser sintetizados como segue: 

1 . O processo legal para a aprovação de novos alimentos é rigo- 
roso e impecável (pois a aprovação legal é igualada, no argu- 
mento, à segurança do produto). 

2. A fome do mundo é resultado da falta de alimento (pois plan- 
tações maiores e mais baratas, propiciadas pela biotecnologia, 
são vistas como a solução para a fome do mundo). 

3. A biotecnologia é um processo natural e benigno (pois a bio- 
tecnologia é vista como idêntica aos métodos de produção tra- 
dicional). 



— 233 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



4. Os riscos podem ser quantificados (pois a soja GM é apresen- 
tada como idêntica à soja ordinária, porque eles são semelhan- 
tes em mais de 99 por cento de sua estrutura genética). 

A argumentação da ciência 

O argumento da ciência pode ser representado na Tabela 9.3. 

Tabela 9.3 - Argumento da ciência com respeito à soja GM 

Dados Proposição (deste modo provavelmente) 

A produção de alimento GM emprega Os alimentos GM produzem efeitos 
técnicas aleatórias imprevisíveis a longo termo 

Os legisladores aprovaram a soja GM GM não é um processo natural 

Genes estranhos podem passar às células O processo de regulamentação não está 
intestinais fazendo exames apropriados de 

segurança 

As pessoas se preocupam com GM A soja GM pode alterar o DNA dos que a 

comem 

A soja GM pode transmitir o genes 
resistente à peste às outras plantas 

Os cientistas devem reagir às 
preocupações das pessoas 

Garantia (po/s) 

As técnicas de GM não são precisas 

GM permite a passagem de proteínas 

animais para plantas 

As plantações GM já causaram 

problemas de saúde 

Seres vivos são muito complicados e 

imprevisíveis 

A avaliação do risco de alimentos GM 
deve incluir todo o impacto no meio 
ambiente 

Os cientistas são responsáveis pelas 
conseqüências de seu trabalho 

Apoio (porque) 

Na natureza não há transposição da 
barreira entre espécies 
Um experimento com soja GM do Brasil 
com uma proteína de noz causou 
problemas de saúde para pessoas com 
alergia à noz brasileira 
Os cientistas foram responsáveis por 
descobertas destrutivas, tais como o gás 
cloro e a bomba atômica 



234 — 






9. Análise argumentativa 



A argumentação da ciência é bastante técnica, como se poderia 
esperar. Ela se refere a aspectos técnicos específicos da soja GM, à 
segurança legal dos procedimentos de exame e à pesquisa da enge- 
nharia genética anterior. Ela questiona a naturalidade da tecnologia 
da modificação genética, a integridade dos procedimentos regula- 
dores para a aceitação dos produtos da biotecnologia, e até mesmo 
os credenciais éticos da pesquisa científica. 

Bem de acordo com a argumentação científica oficial, os dados 
são também empregados como garantias das reivindicações, pois eles 
às vezes constituem uma descoberta em si mesmos (ver também Weins- 
tein, 1990). Por exemplo, a descoberta de que genes estranhos são 
transmitidos às células intestinais é usada tanto como dado e como 
garantia da reivindicação da segurança da engenharia genética. 

A fala completa de refutações é um indicativo da natureza autori- 
tária do argumento científico. Baseada em fatos concretos, a única 
coisa que pode desqualificar, ou trazer alguma dúvida sobre a reivin- 
dicação científica, é outra pesquisa sobre o assunto. Poder-se-ia, en- 
tão, incluir uma refutação geral colocando a menos que outras pes- 
quisas provem que isso seja falso. 

No geral, o argumento da ciência está bem construído, com sóli- 
do apoio que deixa muito pouco espaço para pressupostos. O único 
pressuposto geral desta argumentação pode ser o de que o paradig- 
ma da pesquisa científica é objetivo e confiável. Ainda mais, os argu- 
mentos atacam diretamente a linha oficial das autoridades regula- 
doras, especialmente as proposições de que a soja GM é idêntica à 
soja comum e provavelmente não produzirá nenhum efeito colate- 
ral negativo para o consumo humano. 

O argumento ambientalista 

A representação sintética do argumento ambientalista é apre- 
sentado na Tabela 9.4. 



235 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Tabela 9.4 - O argumento ambientalista com respeito à soja GM 

Dados Proposição fdesfe modo provavelmente) 

Os consumidores querem etiquetação Alimentos GM colocam riscos 
(resultados de levantamento) desconhecidos 

A soja GM passou pelos testes de É improvável que a soja GM seja 

regulamentação etiquetada 

Deveria haver etiquetação dos alimentos 
GM 

GM não é um procedimento natural 

O processo de regulamentação não é 
confiável 

Garantia (pois) Refutação (a não ser que) 

GM causou problemas de saúde no É negado ao público o direito de escolher 

passado 

Monsanto não separou a soja GM 

Muitas pessoas querem etiquetar 
alimentos GM 

GM permite que proteínas animais 
passem às plantas 

Os processos reguladores testam efeitos 
de curto termo e não de longo termo 

Apoio (porque) 

Um experimento da soja GM com uma 
proteína de noz do Brasil causou 
problemas de saúde para pessoas com 
alergia à noz brasileira 

Monsanto é uma companhia 
irresponsável 

A natureza não permite a transposição da 

barreira da espécie 

Vemos que a argumentação ambientalista se desenvolve em três 
níveis. Um é o nível da ciência, onde vemos a repetição de alguns ar- 
gumentos que foram originalmente desenvolvidos pela parte cientí- 
fica. Por exemplo, a proposição de que os alimentos GM colocam 
riscos desconhecidos, baseada no fato de que experimentos com ali- 
mento GM (soja) provaram que seu genes estranho produziu alergi- 
as em algumas pessoas, é uma clara repetição do argumento científi- 
co. O segundo nível de argumentação se refere às credenciais da tec- 
nologia como um todo. Novamente a tecnologia é retratada como 
não natural, e o apoio para esta reivindicação vem de seus procedi- 



— 236 





9. Análise argumentativa 



mentos técnicos (o fato de que o gene de um animal pode ser trans- 
ferido para uma planta). O terceiro nível tem a ver com a ética de to- 
madas de decisão políticas sobre a soja GM, e especialmente com a 
questão da etiquetação. A proeminência desse argumento é tão clara 
que se poderia dizer que o argumento ambientalista está centrado 
ao redor da etiquetação de alimentos GM aprovados em geral, e da 
soja GM em particular. Há muitas razões possíveis para isso. Primei- 
ro, a questão da etiquetação está associada a uma clara e forte atitu- 
de pública, pois muitos levantamentos mostraram uma impressio- 
nante maioria de pessoas querendo etiquetar os alimentos GM. Em 
segundo lugar, a etiquetação é um argumento ético que vai além dos 
impasses da argumentação técnica. Em terceiro lugar, é um tema 
que traz à superfície muitos outros problemas políticos próximos à 
agenda ambiental (tais como a relação entre a indústria e os legisla- 
dores, e o conhecimento público e as atitudes com respeito aos pro- 
cedimentos de regulamentação). 

De maneira geral, o argumento ambientalista está construído in- 
teligentemente, com suporte apropriado para cada nível, e com um 
raciocínio simples. A refutação é usada não como uma negação da 
garantia, mas ao contrário, como um alerta da dimensão ética da 
questão. Há dois pressupostos implicados no argumento que podem 
ser sintetizados como segue: 

1 . A condição atual das plantações é natural (pois o acrésci- 
mo de um único gene os transforma em não naturais). 

2. A utilidade de um desenvolvimento tecnológico tem me- 
nos valor que seus aspectos éticos e de risco (pois o uso de 
soja GM nem sequer merece uma menção no argumento). 

A análise de argumentação como uma forma de análise de 
conteúdo 

A análise de conteúdo é um exercício de redução de dados onde 
o texto é codificado em determinadas categorias. A transformação 
do texto original em categorias quantificadas é feita através de um 
referencial de codificação que abrange todo aspecto importante do 
material de pesquisa. O desafio é reduzir uma grande quantidade de 
material em unidades significativas de análise, sem perder a essên- 
cia (conteúdo, intenção) do material escrito original (Bauer, cap. 8 
neste volume). Medidas de fidedignidade, tais como a fidedignida- 
de inter e intracodificador, foram desenvolvidas para avaliar a obje- 
tividade durante o processo de transformação. 



— 237 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A análise de argumentação pode também ser teorizada como 
uma forma de análise de conteúdo. Ambas as análises tentam redu- 
zir grandes quantidades de material, captando certos aspectos im- 
portantes do texto e transformando-os em unidades de análise. Ne- 
cessita-se apenas considerar as partes do argumento (dados, propo- 
sição, garantia, apoio, refutação) como categorias, e a análise de 
conteúdo se torna um processo alternativo viável. Por exemplo, um 
exercício típico de análise de conteúdo resultaria em uma tabela 
com variáveis de categoria v e de casos c: 



cl 

c2 

c3 

c4 



vl 

x 

X 

X 

X 



v2 v3 v4 

X x x 
X x x 
X x x 
X x x 



Na análise de argumentação a mesma tabela iria consistir das 
partes do argumento (dados D, proposições P, garantias G, apoios A, 
e refutações F) e casos c: 



D P 
cl x X 
c2 x X 
c3 x X 
c4 x X 



GAP 

XXX 

XXX 

XXX 

XXX 



É claro que nem todas as células, em tais tabelas, seriam preen- 
chidas com dados, pois cada parte do argumento poder-se-ia relacio- 
nar a mais de uma das outras partes do argumento. Por exemplo, a 
tabela acima poderia parecer como a que segue: 

D P G A F 




— 238 — 



9. Análise argumentativa 



Neste exemplo, os mesmos dados levam a diferentes, mas talvez 
semelhantes, proposições. Por sua vez, diferentes garantias apoiam 
uma única proposição e assim por diante. Este é um retrato realísti- 
co de uma estrutura de argumentação provinda de uma grande 
quantidade de texto. Tal retrato nos permite uma descrição das re- 
lações entre as categorias: por exemplo, que tipos de dados produ- 
zem determinadas proposições e garantias, que tipo de apoios se 
adequam a certas garantias, e assim por diante. 

O desafio é identificar um processo que iria dar conta de todas as 
relações entre as categorias como retratadas acima. Uma folha de da- 
dos comum, do tipo SPSS, não conseguiria, na nossa opinião, funcio- 
nar adequadamente, pois não seria possível dar conta de todas as com- 
binações possíveis entre as categorias. Um pacote software de análise 
de conteúdo, como o ATLAS/ti, seria mais adequado, pois ele permite 
uma apresentação esquemática das relações das categorias. 

Virgil é um programa de bancos de dados para informação qua- 
litativa, não diferente do ATLAS/ti, que é um primeiro passo para a 
completa implementação da análise da argumentação como análise 
de conteúdo. Bali (1994) usou o Virgil dentro do HyperCard 2.0 
para analisar argumentos de políticas dentro do modelo de Toul- 
min. O software pode analisar o enfoque esquemático de Toulmin 
com argumentos relativamente simples, permitindo a apresentação 
de muitos elementos (como por exemplo as partes do argumento) 
ao mesmo tempo, e em diferentes versões. Na versão simples, o ar- 
gumento é representado em uma forma concisa de acordo com ele- 
mentos, com a possibilidade de acrescentar notas extensas para cada 
elemento. Na forma complexa, cada elemento é referido a partes 
anteriores do texto original, contextualizando-o, deste modo, de 
acordo com a teoria de Toulmin. 

De resultados preliminares para uma análise completa 

Os resultados preliminares da análise da argumentação do estu- 
do de caso mostrado acima constituem um primeiro passo para uma 
melhor compreensão da estrutura do argumento em debate. A des- 
crição do conteúdo do argumento e a análise das premissas implíci- 
tas no argumento são apenas uma maneira de nos aproximarmos da 
questão. Outras perspectivas de onde se poderia abordar a análise 
dos argumentos são as que se seguem. 

A completude das partes do argumento 

O exemplo de Toulmin de um argumento contém todas as par- 
tes (dados, proposição, garantia, apoio, refutação) dentro de um 



— 239 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



todo significativo. Em um texto usual, não é comum encontrar um 
argumento “completo”, pois muitas partes são deixadas à interpre- 
tação do leitor. Poder-se-ia argumentar que um argumento bem-su- 
cedido é o que não deixa espaço para interpretação subjetiva, mas 
ao contrário inclui todas as partes relevantes. Uma medida da “com- 
pletude” da argumentação seria, então, uma indicação da força do 
argumento. Tal medida poderia tomar a forma de uma comparação 
entre a argumentação grupai no debate, como uma função de seu 
“índice de completude” (por exemplo, o percentual de argumentos 
que contém todas as premissas necessárias, menos os argumentos que 
não são necessários). 

Tipos de garantia 

A importância da garantia na argumentação é indiscutível. Ela é 
a mais importante justificação lógica da proposição. Diferenças na 
estrutura da argumentação são também refletidas nos tipos de ga- 
rantias. Brockriede & Ehninger (1960) oferecem três categorias de 
argumentos, de acordo com a maneira como as garantias são usadas: 

• Em um argumento substantivo, a garantia nos está dizendo 
algo sobre as relações das coisas no mundo, a nosso respeito. 

• Em um argumento motivacional, as garantias nos dizem algo 
sobre as emoções, valores ou motivos que tomam a proposição 
aceitável pela pessoa a quem o argumento é dirigido. 

• No argumento autoritativo, as garantias dizem algo sobre a fi- 
dedignidade da fonte de onde os dados foram tomados. 

A comparação entre tipos de garantia na argumentação grupai 
irá fornecer uma visão melhor do emprego pretendido do argumen- 
to na esfera pública. 

Logos, ethos, pathos 

As palavras acima se relacionam com a idéia aristotélica de que 
existem três qualidades principais em uma fala: logos (razão, lógica), 
ethos (moralidade, código moral, ética), e pathos (emoção, afeição). 
Cada estrutura de argumento dá especial peso a um destes três prin- 
cípios, conforme o público alvo que ela quer influenciar. Por exem- 
plo, Aristóteles acreditava que a fala pública estava compelida a con- 
ter mais pathos, pois o componente emocional possui uma influência 
forte nas pessoas leigas. 



— 240 — 




9. Análise argumentativa 



Transportando essa idéia para a análise de nossos dias, podería- 
mos buscar uma comparação da estrutura do argumento baseada 
nestas três características. A cada argumento pode ser conferido um 
valor numérico em três escalas ( logos , ethos, pathos ) que, contanto que 
elas se mostrem fidedignas, podem ser usadas para comparações 
descritivas. 

Leitura semiótica e análise de argumentação 

É verdade, como mostrou Aristóteles, que o argumento pode 
também ter um componente emotivo que funciona em um nível di- 
ferente da pura razão. Em debates que introduzem novos conceitos 
no campo público, metáforas e imagens são constituintes importan- 
tes da estrutura da argumentação que funcionam ao nível emotivo. 
A semiótica é a ciência da compreensão e da análise de tais conceitos 
simbólicos no discurso cotidiano. Uma combinação útil entre semió- 
tica e análise da argumentação poderia fornecer uma compreensão 
mais profunda da dinâmica que afeta o desenvolvimento do discurso 
público (Manzoli, 1997). Por exemplo, representações pictóricas (fo- 
tografias documentárias, desenhos, gráficos, etc.) comumente usa- 
das em textos de mídia podem ser analisadas como partes de uma 
estrutura do argumento (por exemplo, como garantias para a rei- 
vindicação principal). 



Passos na análise argumentativa 

1 . Colete uma amostra representativa que incorpore os pontos de 
vista de todas as partes interessadas no debate. 

2. Sintetize os pontos principais em um parágrafo, parafraseando o 
mínimo. 

3. Identifique as partes usando as definições apresentadas e teste-as 
quanto a sua fidedignidade. 

4. Compare todas as partes do argumento em uma apresentação es- 
quemática a fim de que elas possam ser lidas em relação umas 
com as outras. 

5. Apresente uma interpretação em termos do contexto geral e do 
mérito da completude do argumento. 



— 241 — 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



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9. Análise argumentativa 



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— 243 — 



10 

Análise de discurso 

Rosalind GUI 



Palavras-chave: orientação da ação; organização retórica; cons- 
trução; leitura cética; discurso; fala/texto como circunstancial; re- 
flexividade. 



Análise de discurso é o nome dado a uma variedade de diferen- 
tes enfoques no estudo de textos, desenvolvida a partir de diferentes 
tradições teóricas e diversos tratamentos em diferentes disciplinas. 
Estritamente falando, não existe uma única “análise de discurso”, 
mas muitos estilos diferentes de análise, e todos reivindicam o 
nome. O que estas perspectivas partilham é uma rejeição da noção 
realista de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de re- 
fletir, ou descrever o mundo, e uma convicção da importância cen- 
tral do discurso na construção da vida social. Este capítulo discutirá 
um enfoque da análise de discurso que foi influente em campos tão 
diversos como a sociologia da ciência, os estudos da mídia, estudos 
de tecnologia, psicologia social e análise de políticas. 

O capítulo é dividido em quatro grandes seções. Na primeira, 
discuto o contexto intelectual do desenvolvimento da análise de dis- 
curso, e apresento seus princípios centrais. Na segunda, discuto a 
prática da análise de discurso. A terceira seção é um estudo de caso 
do uso desse enfoque para analisar um pequeno texto de um artigo 
de jornal. Ele dá uma indicação do tipo de material gerado pela aná- 
lise de discurso e apresenta elementos de compreensão aos leitores, 
para se fazer uma análise de discurso. Finalmente, este capítulo 
apresenta uma avaliação da análise de discurso, enfatizando algu- 
mas de suas vantagens e desvantagens. 



— 244 






10. Análise de discurso 



Apresentando a análise de discurso 

Contexto intelectual 

O crescimento extraordinariamente rápido do interesse pela 
análise de discurso, nos últimos anos, é tanto uma conseqüência, 
como uma manifestação da “virada lingüística” que ocorreu nas ar- 
tes, humanidades e nas ciências sociais. A “virada lingüística” foi 
precipitada por críticas ao positivismo, pelo prodigioso impacto das 
idéias estruturalistas e pós-estruturalistas, e pelos ataques pós-mo- 
dernistas à epistemologia (Burman, 1990; GUI, 1995; Parker, 1992; 
Potter, 1996a). As origens da análise de discurso a partir de críticas à 
ciência social tradicional significam que ela possui uma base episte- 
mológica bastante diversa de algumas outras metodologias. Isso é às 
vezes chamado de construcionismo social, construtivismo, ou sim- 
plesmente construcionismo. Não há uma definição única concorde 
desses termos, mas as características-chave destas perspectivas são: 

1. A postura crítica com respeito ao conhecimento dado, 
aceito sem discussão e um ceticismo com respeito à visão de 
que nossas observações do mundo nos revelam, sem proble- 
mas, sua natureza autêntica. 

2. O reconhecimento de que as maneiras como nós normal- 
mente compreendemos o mundo são histórica e cultural- 
mente específicas e relativas. 

3. A convicção de que o conhecimento é socialmente cons- 
truído, isto é, que nossas maneiras atuais de compreender o 
mundo são determinadas não pela natureza do mundo em 
si mesmo, mas pelos processos sociais. 

4. O compromisso de explorar as maneiras com os conheci- 
mentos - a construção social de pessoas, fenômenos ou pro- 
blemas - estão ligados a ações/práticas (Burr, 1995). 

Uma conclusão dessa posição epistemológica é que a análise de 
discurso não pode ser usada para tratar os mesmos tipos de questões 
como os enfoques tradicionais. Ela sugere, ao invés, novas questões, 
ou maneiras, de reformular as antigas (ver abaixo). 

57 variedades de análise de discurso 

Os termos “discurso” e “análise de discurso” são muito discuti- 
dos. Para afirmar que determinado enfoque é um discurso analítico, 



-245 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



alguém deve necessariamente dizer algo mais; não é apenas uma 
questão de definição, mas implica assumir uma posição dentro de 
um conjunto de argumentos muito questionado - mas importante. 
Embora existam provavelmente ao menos 57 variedades de análise 
de discurso, um modo de conseguir dar conta das diferenças entre 
elas é pensar em tradições teóricas amplas. Discutirei três delas. 

Primeiro, há uma variedade de posições conhecidas como lingüís- 
tica crítica, semiótica sociai ou crítica, estudos de linguagem (Fovdev et 

al., 1979; Kress & Hodge, 1979; Hodge & Kress, 1988; Fairclough, 
1989). Comparada a muitos tipos de análise de discurso, esta tradição 
possui uma estreita associação com a disciplina da lingüística, mas seu 
compromisso mais claro é com a semiótica e com a análise estrutura- 
lista (ver Penn, cap.13 neste volume). A idéia semiológica central de 
que o sentido de um termo provém não de alguma estrutura inerente 
da relação entre significante e significado, mas do sistema de oposi- 
ções em que ele está inserido, coloca um desafio fundamental às dis- 
cussões sobre “palavra-objeto” da linguagem, que era vista como um 
processo de dar nome a algo. Esta questão foi desenvolvida em recen- 
te trabalho lingüístico crítico, que tem uma preocupação explícita 
com a relação entre linguagem e política. A tradição está bem repre- 
sentada nos estudos de mídia, particularmente na pesquisa sobre im- 
prensa, e enfatizou - entre outras coisas - as maneiras como formas 
lingüísticas específicas (tais como a anulação do sujeito, passivização 
ou nominalização) podem ter efeitos dramáticos sobre a maneira 
como um acontecimento ou fenômeno é compreendido. 

Uma segunda e ampla tradição é a que foi influenciada pela teo- 
ria do ato da fala, etnometodologia e análise da conversação (ver 
Myers, cap. 1 1 neste volume; Garfinkel, 1967; Sacks et al., 1974; 
Coulthard e Montgomery, 1981; Heritage, 1984; Atkinson e Herita- 
ge, 1984). Estas perspectivas acentuam a orientação funcional, ou a 
orientação da ação, que o discurso possui. Em vez de olhar como as 
narrações se relacionam com o mundo, elas se interessaram naquilo 
que estas narrações têm como objetivo conseguir, e perscrutam em 
detalhe a organização da interação social. 

O terceiro conjunto de trabalho, que às vezes se identifica como 
análise de discurso, é o associado com o pós-estruturalismo. Pós-es- 
truturalismo rompeu com as visões realistas da linguagem e rejeitou 
a noção do sujeito unificado coerente, que foi por longo tempo o co- 
ração da filosofia ocidental. Entre os pós-estruturalistas, Michel 



246 



1 0. Análise de discurso 



Foucault (1977; 1981) é muito conhecido por caracterizar suas genea- 
logias da disciplina e sexualidade como análises de discurso. Em 
contraste com a maioria da análise de discurso, este trabalho está in- 
teressado não nos detalhes de textos falados e escritos, mas em olhar 
historicamente os discursos. 

Temas da análise de discurso 

O enfoque que será elaborado aqui se inspira em idéias de cada 
uma dessas três tradições delineadas acima, bem como do campo 
crescente da análise retórica (ver Leach, cap. 12 neste volume; Bil- 
lig, 1987; 1988; 1991; ver Potter & Wetherell, 1987, para uma dis- 
cussão mais completa das diferentes influências sobre a análise de 
discurso). Desenvolvido inicialmente em trabalhos da sociologia do 
conhecimento científico e da psicologia social, ele está agora produ- 
zindo análises dentro de um conjunto diverso de campos, e constitui 
um enfoque teoricamente coerente com a análise de fala e textos. 

É proveitoso pensar a análise de discurso como tendo quatro te- 
mas principais: uma preocupação com o discurso em si mesmo; uma 
visão da linguagem como construtiva (criadora) e construída; uma ên- 
fase no discurso como uma forma de ação; e uma convicção na orga- 
nização retórica do discurso. Em primeiro lugar, então, ela toma o 
próprio discurso como seu tópico. O termo “discurso” é empregado 
para se referir a todas as formas de fala e textos, seja quando ocorre 
naturalmente nas conversações, como quando é apresentado como 
material de entrevistas, ou textos escritos de todo tipo. Os analisas 
de discurso estão interessados nos textos em si mesmos, em vez de 
considerá-los como um meio de “chegar a” alguma realidade que é 
pensada como existindo por detrás do discurso - seja ela social, psi- 
cológica ou material. Este enfoque separa claramente analistas de 
discurso de alguns outros cientistas sociais, cujo interesse na lingua- 
gem é geralmente limitado a descobrir “o que realmente aconte- 
ceu”, ou qual é realmente a atitude de um indivíduo com respeito a 
X, Y ou Z. Ao invés de ver o discurso como um caminho para outra 
realidade, os analisas de discurso estão interessados no conteúdo e 
na organização dos textos. 

O segundo tema da análise de discurso é que a linguagem é cons- 
trutiva. Potter & Wetherell (1987) mostram que a metáfora “constru- 
ção” realça três facetas do enfoque. Primeiro, ela chama a atenção 
para o fato de que o discurso é construído, ou manufaturado, a par- 
tir de recursos lingüísticos preexistentes: 



— 247 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Linguagem e práticas linguísticas oferecem um depósito de siste- 
mas de termos, formas de narrativas, metáforas e citações, da qual 
é possível organizar um relato específico (Potter et al., 1990). 

Em segundo lugar, a metáfora ilustra o fato de que a “monta- 
gem” de um conjunto implica em escolha, ou seleção, de um núme- 
ro diferente de possibilidades. É possível descrever até mesmo o 
mais simples dos fenômenos em uma multiplicidade de maneiras. 
Qualquer descrição específica dependerá da orientação do locutor 
ou escritor (Potter & Wetherell, 1987; Potter et al., 1990). 

Finalmente, a noção de construção enfatiza o fato de que nós li- 
damos com o mundo em termos de construções, e não de uma ma- 
neira mais ou menos “direta”, ou imediata; em um sentido verda- 
deiramente real, diferentes tipos de textos constroem nosso mun- 
do. O uso construtivo da linguagem é um aspecto da vida social 
aceito sem discussão. 

A noção de construção marca, pois, claramente uma ruptura 
com os modelos de linguagem tradicionais “realistas”, onde a lin- 
guagem é tomada como sendo um meio transparente - um caminho 
relativamente direto para as crenças ou acontecimentos “reais”, ou 
uma reflexão sobre a maneira como as coisas realmente são. 

A terceira característica da análise de discurso que desejo realçar 
aqui é sua preocupação com a “orientação da ação”, ou “orientação da 
função” do discurso. Isto é, os analistas de discurso vêem todo discur- 
so como prática social. A linguagem, então, não é vista como um mero 
epifenômeno, mas como uma prática em si mesma. As pessoas em- 
pregam o discurso para fazer coisas - para acusar, para pedir descul- 
pas, para se apresentar de uma maneira aceitável, etc. Realçar isto é 
sublinhar o fato de que o discurso não ocorre em um vácuo social. 
Como atores sociais, nós estamos continuamente nos orientando pelo 
contexto interpretativo em que nos encontramos e construímos nosso 
discurso para nos ajustarmos a esse contexto. Isso fica muito claro em 
contextos relativamente formais, tais como hospitais e tribunais, mas 
é igualmente verdadeiro também para todos os outros contextos. 
Para tomar um exemplo concreto, alguém pode dar uma explicação 
diferente do que fez na noite anterior, dependendo do fato de que 
quem pergunta é sua mãe, seu chefe ou seu melhor amigo. Não se tra- 
ta de que alguém está sendo deliberadamente fingido em algum des- 
ses casos (ao menos não necessariamente), mas simplesmente de que 
estaríamos dizendo o que parece “certo”, ou o que “vem naturalmen- 



— 248 — 




10. Análise de discurso 



te” para aquele contexto interpretativo particular. Ações ou funções 
não devem ser pensadas em termos cognitivos, por exemplo, como 
relacionadas às intenções de alguém; muitas vezes elas podem ser glo- 
bais ou ideológicas, e são melhor pensadas como práticas culturais, do 
que como confinadas na cabeça de alguém. Os analistas de discurso 
argumentam que todo discurso é circunstancial. 

É importante notar que a noção de “contexto interpretativo” não 
é fechada ou mecanicista. Ele é empregado não simplesmente para 
se referir aos amplos parâmetros de uma interação, tais como onde e 
quando ela tem lugar, e a quem a pessoa está falando ou escrevendo, 
mas também para atingir características mais sutis da interação, in- 
cluindo os tipos de ações que estão sendo realizadas, e as orientações 
dos participantes. Como um analista de discurso, a pessoa está en- 
volvida simultaneamente em analisar o discurso e em analisar o con- 
texto interpretativo. 

Até mesmo a descrição sonora aparentemente mais direta e neu- 
tra pode estar implicada em um conjunto completo de diferentes ati- 
vidades, dependendo do contexto interpretativo. Tomemos a seguin- 
te frase: “Meu carro quebrou”. Isto soa como uma frase diretamente 
descritiva sobre um objeto mecânico. Seu sentido, contudo, pode mu- 
dar dramaticamente em diferentes contextos interpretativos: 

1. Quando dito para um amigo na saída de uma reunião, isso 
pode ser um pedido implícito para uma carona. 

2. Quando dito a uma pessoa que lhe vendeu o carro há apenas 
alguns dias pode fazer parte de uma acusação ou repreensão. 

3. Quando dito para um professor para cuja aula você está meia 
hora atrasado, pode se constituir em uma desculpa ou explicação. 

E assim por diante. Uma maneira de testar nossa análise de dis- 
curso é olhar para a maneira como os participantes envolvidos res- 
pondem, e isso pode oferecer pistas analíticas valiosas. Por exemplo, 
se o vendedor de carro responde dizendo: “Bem, ele estava sem pro- 
blemas quando eu lho vendi”, isso indica que a frase foi ouvida como 
uma acusação - mesmo que nenhuma acusação explícita tenha sido 
feita. Mas o contexto interpretativo não varia simplesmente com res- 
peito a com quem alguém fala: pode-se falar com a mesma pessoa - e 
até mesmo usar as mesmas palavras - e gerar muitas interpretações 
diferentes. Pensemos na maneira como a pergunta “Você irá sair hoje 
à noite? ” pode ter múltiplos significados quando feita por alguém a 



— 249 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



seu namorado/a. O ponto central aqui é que não existe nada “sim- 
ples”, ou sem importância, com respeito à linguagem: fala e textos são 
práticas sociais, e até mesmo afirmações que parecem extremamente 
triviais, estão implicadas em vários tipos de atividades. Um dos objeti- 
vos da análise de discurso é identificar as funções, ou atividades, da 
fala e dos textos, e explorar como eles são realizados. 

Isto me leva ao quarto ponto: a análise de discurso trata a fala e 
os textos como organizados retoricamente (Billig, 1987; 1991). Diferen- 
temente da análise da conversação, a análise de discurso vê a vida so- 
cial como sendo caracterizada por conflitos de vários tipos. Como 
tal, grande parte do discurso está implicada em estabelecer uma ver- 
são do mundo diante de versões competitivas. Isto fica claro em al- 
guns casos - políticos, por exemplo, estão claramente tentando levar 
as pessoas a aderir a suas visões de mundo, e publicitários estão ten- 
tando nos vender seus produtos, estilos de vida e sonhos - mas é 
também verdade para outros discursos. A ênfase na natureza retóri- 
ca dos textos dirige nossa atenção para as maneiras como todo dis- 
curso é organizado a fim de se tornar persuasivo. 

A prática da análise de discurso 

É muito mais fácil discutir os temas centrais da análise de dis- 
curso do que explicar como concretamente fazer para analisar tex- 
tos. Seria muito agradável se fosse possível oferecer uma receita, ao 
estilo de manuais de cozinha, que os leitores pudessem acompa- 
nhar, metodicamente; mas isso é impossível. Em algum lugar entre 
a “transcrição” e a “elaboração do material”, a essência do que seja 
fazer uma análise de discurso parece escapar: sempre indefinível, 
ela nunca pode ser captada por descrições de esquemas de codifi- 
cação, hipóteses e esquemas analíticos. Contudo, exatamente por- 
que as habilidades dos analistas de discurso não se prestam a des- 
crições de procedimentos, não há necessidade de elas serem deli- 
beradamente mistificadas e colocadas acima do alcance de todos, 
com exceção dos entendidos. A análise de discurso é semelhante a 
muitas outras tarefas: os jornalistas, por exemplo, não são muito 
treinados para identificar o que faz com que um acontecimento 
seja notícia, mas depois de um pequeno tempo de experiência seu 
senso de “valor de notícia” se torna bem claro. Não há, na verdade, 
substituto para aprender fazendo. 



250 — 




1 0. ANÁLISE DE DISCURSO 



Fazendo perguntas diferentes 

\ 

A análise de discurso não é um enfoque que pode ser pego sim- 
plesmente da prateleira, como o substituto de uma forma mais tradi- 
cional de análise - por exemplo, análise de conteúdo ou análise esta- 
tística de dados de questionários. A decisão de usar análise de discur- 
so impõe uma mudança epistemológica radical. Como já indiquei, os 
analistas de discurso não vêem os textos como veículos para descobrir 
alguma realidade pensada como jazendo além, ou debaixo da lingua- 
gem. Ao invés disso, eles estão interessados no texto em si mesmo, e 
por isso fazem perguntas diferentes. Diante da transcrição de uma 
discussão entre vegetarianos, por exemplo, o analista de discurso não 
procuraria descobrir ali por que as pessoas implicadas deixaram de 
comer carne e peixe, mas ao invés disso, estaria interessado em anali- 
sar como a decisão de se tomar vegetariano é legitimada pelos por- 
ta-vozes, ou como eles respondem a críticas potenciais, ou como eles 
formam uma auto-identidade positiva (GUI, 1 996b). A possível lista de 
perguntas é interminável; mas, como se pode ver, elas são bem dife- 
rentes das convencionais perguntas sociocientíficas. 

Transcrição 

A não ser que se esteja analisando um texto de domínio público - 
por exemplo, um artigo de jornal, um relatório de uma companhia 
ou o registro de um debate parlamentar - a primeira exigência é 
uma transcrição. Uma boa transcrição deve ser um registro tão deta- 
lhado quanto possível do discurso a ser analisado. A transcrição não 
| pode sintetizar a fala, nem deve ser “limpada”, ou corrigida; ela 
deve registrar a fala literalmente, com todas as características possí- 
veis da fala. A produção de uma transcrição consome uma enormi- 
dade de tempo. Mesmo que apenas as características de maior realce 
da fala sejam anotadas - tais como a ênfase e hesitação - o desenvol- 
vimento da transcrição pode demorar até 10 horas para cada hora 
de material gravado. Os analistas da conversação, e alguns analistas 
de discurso, afirmam que essas transcrições muito detalhadas são es- 
senciais, se não se quiser perder as características centrais da fala. 
Um sistema de transcrição que anote a entonação, a fala sobreposta, 
respirações, etc. - como o delineado por Gail Jefferson - pode che- 
gar a uma proporção de tempo de 20:1 (ver cap. 11 deste volume). 
Contudo, como Jonathan Potter mostra, a produção de uma trans- 
crição não deve ser pensada como um tempo “perdido”, antes que a 
análise como tal comece: 



251 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Muitas vezes, algumas das intuições analíticas mais iluminadoras 
aparecem durante a transcrição, porque é necessário um engaja- 
mento profundo com o material para produzir uma boa transcri- 
ção (1996b: 136). 

Por essa razão, é sempre útil produzir notas analíticas enquanto 
se está fazendo a transcrição. 

Uma das coisas que impressionam mais fortemente a muitos no- 
vos analistas de discurso quando eles olham para - ou melhor, têm 
de produzir - uma transcrição, é a total confusão da fala. Aspectos da 
fala que são tão familiares a ponto de nós muitas vezes literalmente 
não os “ouvirmos”, se tornam visíveis nas transcrições. Isso implica 
múltiplos “remendos” na fala, mudanças no andamento ou tópico, 
pausas, sobreposições, interrupções e emprego livre de frases tais 
como “sabe”. Na verdade, fazer análise de discurso faz com que a 
pessoa imagine o quanto nós habitualmente “editamos” a fala que 
nós escutamos. A segunda coisa que chama a atenção é (aparente- 
mente de maneira contraditória) como a fala está em ordem. Repa- 
ros e mudanças no andamento acontecem quando os locutores se 
orientam para o contexto interpretativo; sobreposições e interrup- 
ções são devidas ao modo conversacional; e assim por diante (ver 
Myers, cap. 1 1 neste volume). 

O espírito da leitura cética 

Uma vez feita a transcrição (ou obtidos os outros dados), a análi- 
se pode começar. O ponto inicial mais útil é a suspensão da crença 
naquilo que é tido como algo dado. Isto é semelhante à regra de pro- 
cedimento dos antropólogos de “tornar o familiar estranho”. Tal 
prática implica em mudar a maneira como a linguagem é vista, a fim 
de enfocar a construção, organização e funções do discurso, em vez 
de olhar para algo atrás, ou subjacente a ele. Como Potter & Wethe- 
rell mostraram, o treinamento acadêmico ensina as pessoas a ler tex- 
tos buscando sua essência, mas isso é precisamente a maneira errada 
de nos aproximarmos da análise: 

Se alguém lê um artigo, ou livro, o objetivo usual é produzir uma 
síntese simples, unitária, e ignorar a nuança, as contradições e as 
áreas de imprecisão. 0 analista de discurso, contudo, está interes- 
sado no detalhe das passagens do discurso, embora fragmentadas e 
contraditórias, e com o que é realmente dito ou escrito, não com al- 
guma idéia geral que parece ser pretendida (1987: 168). 



252 



1 0. Análise de discurso 



Fazer análise de discurso implica questionar nossos próprios 
pressupostos e as maneiras como nós habitualmente damos sentido 
às coisas. Implica um espírito de ceticismo, e o desenvolvimento de 
uma “mentalidade analítica” (Schenkein, 1978) que não desaparece 
facilmente quando não se está sentado na frente de uma transcrição. 
Devemos perguntar a qualquer passagem dada: “Por que eu estou 
lendo isso dessa maneira?”, “Que características do texto produzem 
essa leitura?”, “Como ele está organizado para se tornar persuasi- 
vo?” e assim por diante. Na minha opinião, a análise de discurso de- 
veria trazer consigo um alerta sobre a saúde, semelhante aos que são 
colocados em comerciais de cigarros, porque fazer uma análise de 
discurso muda fúndamentalmente as maneiras como nós experien- 
ciamos a linguagem e as relações sociais. 

Codificação 

A semelhança dos etnógrafos, os analistas de discurso têm de 
mergulhar no material estudado. Uma boa maneira de começar é 
simplesmente ler e reler as transcrições até que nos familiarizemos 
com elas. Este processo é uma preliminar necessária para a codifica- 
ção. As categorias usadas para a codificação serão, obviamente, de- 
terminadas pelas questões de interesse. Às vezes elas irão parecer re- 
lativamente simples: por exemplo, uma parte de minha análise das 
entrevistas com locutores de rádio implicava o exame das explica- 
ções que eles davam para a ausência de mulheres trabalhando no rá- 
dio (Gill, 1993). A codificação inicial para isto implicou examinar as 
transcrições e realçar, ou selecionar, todas as ocasiões em que os lo- 
cutores se referiam às locutoras. Em outras ocasiões, a codificação 
pode ser muito mais difícil, e o fenômeno de interesse pode ficar cla- 
ro somente após alguma análise inicial. Potter e Wetherell (1987) 
descrevem como em seu estudo sobre as explicações que os habitan- 
tes brancos da Nova Zelândia davam sobre desigualdade racial, seu 
entendimento do que deveria ser codificado mudou repetidas vezes, 
à medida que sua análise se tornava mais sofisticada. E, de fato, em 
meu próprio estudo sobre as explicações sobre a ausência de mulhe- 
res DJs, ficou claro que muitos outros aspectos do material de entre- 
vista, além das referências diretas sobre mulheres locutoras, foram 
relevantes à análise: por exemplo, referências a “qualidades” que 
“todo bom DJ deve possuir” acabou mostrando conter uma quanti- 
dade de pressupostos ocultos sobre gênero. 



— 253 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Isto vem realçar um ponto importante sobre codificação: que, 
em suas fases iniciais, ela deve ser feita da maneira mais abrangen- 
te possível, de tal modo que todas as instâncias limítrofes possam 
ser incluídas, em vez de serem deixadas fora. As pessoas usam vá- 
rias estratégias para codificar, e cada pesquisador deve desenvol- 
ver a sua, mas essencialmente a codificação é uma maneira de or- 
ganizar as categorias de interesse. Por exemplo, se nós estamos 
interessados em examinar como as pessoas explicam sua decisão 
de se tornarem vegetarianas, então uma maneira de começar a co- 
dificar pode ser separar as transcrições em diferentes tipos de ex- 
plicações: algumas pessoas podem afirmar que elas pararam de 
comer carne devido a razões de saúde, outros podem discutir 
questões ligadas ao bem-estar dos animais, e ainda outras podem 
possuir preocupações éticas sobre o uso dos recursos globais de ali- 
mento e assim por diante. É importante notar que os indivíduos 
podem ser levados por diferentes explicações, ou combiná-las, e 
que o interesse do analista de discurso não é nas atitudes indivi- 
duais, mas na construção cultural do vegetarianismo. 

Analisando o discurso 

Tendo completado a codificação inicial - e com as pilhas de foto- 
cópias ou de folhas de registro em seu lugar - é tempo de começar a 
análise como tal. Pode ser útil pensar a análise como sendo construí- 
da em duas fases relacionadas. Primeiramente, há uma procura por 
um padrão nos dados. Isto vai se mostrar na forma tanto da variabili- 
dade (diferenças entre as narrações), quanto da consistência. Em se- 
gundo lugar, há a preocupação com a função, com a criação de hipó- 
teses tentativas sobre as funções de características específicas do dis- 
curso, e de testá-las frente aos dados (Potter & Wetherell, 1987). É 
claro que, colocadas as coisas dessa maneira, isso parece fácil, e são 
esquecidas de horas de frustração e aparentes impasses. Na prática, 
a identificação de padrões e funções do discurso é muitas vezes difí- 
cil e leva muito tempo. 

Uma estratégia analítica útil, sugerida porWiddicombe (1993), é 
a de considerar as maneiras como as coisas são ditas como sendo po- 
tenciais soluções de problemas. A tarefa do analista é identificar 
cada problema, e como o que é dito se constitui em uma solução. Em 
meu estudo sobre a maneira como os locutores de rádio explicavam 
o pequeno número de mulheres no rádio, um dos problemas discur- 



— 254 — 



10. Análise de discurso 



sivos para o qual os locutores tinham de prestar atenção era o de se- 
rem considerados como sexistas enquanto querendo ao mesmo tem- 
po apresentar razões “legítimas” pela ausência de mulheres. As trans- 
crições estão cheias de desaprovações (Hewitt & Stokes, 1975), tais 
como “Eu não sou sexista mas...”, que precederam a apresentação 
de considerações que poderiam ser facilmente consideradas sexis- 
tas. Ficando com nosso exemplo sobre vegetarianismo, podemos es- 
perar encontrar nossos locutores vegetarianos indicando uma varie- 
dade de críticas potenciais - por exemplo, sentimentalismo, “corre- 
ção política” e inconsistência. 

Embora sugestões como as de Widdicombe sejam úteis para pen- 
sar a análise, no final das contas não há como escapar do fato de que a 
análise de discurso é uma arte habilidosa, que pode ser difícil, e exige 
sempre muito trabalho. Como notaram Wetherell & Potter (1988), 
não é incomum trabalhar com um esquema analítico por vários dias, 
apenas para mudá-lo, ou descartá-lo, porque a evidência lingüística 
não se ajusta adequadamente. Diferentemente de outros estilos de 
análise que suprimem a variabilidade, ou simplesmente encobrem si- 
tuações que não se adaptam à história que está sendo contada, a análi- 
se de discurso exige rigor, a fim de produzir um sentido analítico dos 
textos a partir de sua confusão fragmentada e contraditória. 

Os analistas de discurso, ao mesmo tempo em que examinam a 
maneira como a linguagem é empregada, devem também estar sen- 
síveis àquilo que não é dito - aos silêncios. Isso, por sua vez, exige 
uma consciência aprimorada das tendências e contextos sociais, po- 
líticos e culturais aos quais os textos se referem. Sem essa compreen- 
são contextuai mais ampla: 

nós não seremos capazes de ver a versão alternativa dos aconteci- 
mentos, ou fenômenos que o discurso que estamos analisando pre- 
tendeu contrariar; não conseguiremos perceber a ausência (às ve- 
zes sistemática ) de tipos particulares de explicações nos textos que 
estamos estudando; e não conseguiremos reconhecer o significado 
do silêncio (Gill, 1996b: 147). 

Contudo, dizer que a familiaridade com o contexto é vital, não é 
sugerir que esse contexto possa ser descrito com neutralidade e sem 
problemas. Quando um analista de discurso discute o contexto, ele 
está também produzindo uma versão, construindo o contexto como 
um objeto. Em outras palavras, a fala dos analistas de discurso não é 
menos construída, circunstanciada e orientada à ação que qualquer 
outra. O que os analistas de discurso fazem é produzir leituras de 



— 255 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



textos e contextos que estão garantidas por uma atenção cuidadosa 
aos detalhes, e que emprestam coerência ao discurso em estudo. 

Estudo de caso: “ Morte do Pai” 

A fim de demonstrar os tipos de intuições produzidas pela análi- 
se de discurso, irei apresentar uma análise preliminar de uma curta 
passagem, extraída de um artigo de um jornal em voga (“Morte do 
Pai” de Melanie Phillips, The Observer, 2 de novembro de 1997). O 
artigo, que encontrei enquanto escrevia esse capítulo, é, de muitos 
modos, típico do tipo de “reflexões”, que se encontram em jornais 
britânicos dominicais. Relacionado com os debates sobre a atitude 
do governo Blair com respeito às mães solteiras, o artigo denuncia 
violentamente os arquitetos de uma crise que aparentemente amea- 
ça a sobrevivência da paternidade, dos homens em geral, e do pró- 
prio futuro da “família tradicional”. 

A curta passagem que extraí pode ser analisada de muitas ma- 
neiras diferentes. Meu objetivo é examinar como a natureza da ame- 
aça é discursivamente construída e tornada persuasiva. Ao anali- 
sá-la, como veremos, quero tocar sobre outras questões, começando 
com a maneira como Phillips constrói sua própria identidade, e indo 
à frente para explorar sua caracterização do alvo de seu ataque. O 
texto é o que segue: 

1 . Muitas mulheres querem trabalhar, e o fazem. Este não é um argu- 
mento 

2. para forçar as mulheres a ficarem em casa. Nem é este um argumento 

3. para “a dominação masculina”. Este é um argumento para 

4. reconhecer a necessidade de um equilíbrio de responsabilidades. 

5. Este desejo de erradicar as diferenças sexuais e de gênero 

6. a fim de re-criar os homens, surge de um tipo de feminismo 

7. que chegou até à Inglaterra procedente da América, para se tornar a 

8. ortodoxia entre os pesquisadores da ciência social, 

9. profissionais do setor público e a maioria dos grupos que gostam de 
palavrórios. 

10. Este feminismo vê as mulheres apenas como vítimas da dominação 
machista. 

1 1 . Ele defende o emprego do poder do estado para 



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10. ANÁLISE DE DISCURSO 



12. promover a independência das mulheres das parcerias 

IS. com os homens, ao menos até que os homens tenham redefinido 
seu papel 

14. e identidade, de tal modo que eles se tornem mais parecidos com as 
mulheres. 

15. Este supremacismo feminino, em vez de ser feminismo, 

16. fundamentalmente despreza, desconfia e não gosta dos homens. 

17. O supremacismo feminino colocou a própria idéia de 

1 8. paternidade em estado de sítio. Os homens em geral, e 

1 9. os pais em particular, são cada vez mais vistos como 

20. supérfluos na vida familiar. Não. existem mais papéis 

2 1 . centrais que somente os pais podem desempenhar. Na verdade, ele 
sustenta que 

22. a masculinidade é desnecessária, ou indesejável. Ele nos diz 

23. que os homens são importantes como novos pais. Mas ele corta 

24. isso pela base ao reivindicar que a paternidade solitária é perfeita- 
mente 

25. aceitável - e em alguns casos preferível. 

26. A paternidade deve se tornar uma maternidade substituta, e 

27. os pais e mães devem se transformar em pais unissex. 

28. Mas a maioria dos homens e das mulheres não quer ser pais unissex. 

29. E a razão disso é porque há diferenças sexualmente 

30. fundamentadas entre mães e pais. A maternidade é um 

3 1 . vínculo biológico, abastecido por hormônios e impulsos genéticos. 

32. A paternidade, por outro lado, é até certo ponto, uma 

33. construção social, mas fundada - crucialmente - em um fato bioló- 
gico. 

Construindo a identidade da escritora 

Nas primeiras poucas linhas do trecho, Phillips lança o funda- 
mento para seu argumento, dizendo a seus leitores o que não é: ele 
não é um argumento para forçar as mulheres a ficar em casa. Nem é 
um argumento para a “dominação do homem”. Este é um movimen- 
to retórico comum, que tem por objetivo proteger, ou “inocular” um 
argumento contra críticas, e oferecer uma ‘“leitura preferida”, indi- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



cando a maneira como o argumento deve ser interpretado. Implíci- 
ta nessas asserções está a idéia de que ela não é contra os direitos das 
mulheres, nem é ela contra o feminismo per se. Ela rejeita o extre- 
mismo daqueles que gostariam de forçar as mulheres a permanecer 
em casa, e ao invés disso se apresenta como moderada e racional - 
alguém que meramente apresenta um argumento a favor do “reco- 
nhecimento da necessidade de um equilíbrio de responsabilidades”. 

A noção de “equilíbrio” desempenha aqui uma função retórica 
considerável. Colocado no centro de uma organização discursiva 
que possui poucos (ou nenhum) sentidos negativos, e usado para 
vender tudo, desde água engarrafada e cereais para café da manhã, 
até religião e política, “equilíbrio” possui conotações de saúde, har- 
monia e, sobretudo, naturalidade. Do mesmo modo que “comunida- 
de ”, ele possui sentidos positivos irresistíveis, que podem ser mane- 
jados e retrabalhados em instâncias de emprego específicas. Aqui a 
noção é ligada a “responsabilidades”, uma palavra com ressonâncias 
particulares em discussões sobre paternidade solitária, um assunto 
muito empregado por políticos e jornalistas, quando falam da irres- 
ponsabilidade das pessoas. A idéia de um equilíbrio de responsabili- 
dades carrega, pois, um sentido de retidão moral, e, porque ela é 
virtualmente normal, é muito difícil de refutar: quem poderia criti- 
car “um equilíbrio de responsabilidades”? O caso de Phillips é refor- 
çado ainda mais pela sugestão de que aquilo que ela está demandan- 
do é unicamente um reconhecimento da necessidade de um equilí- 
brio, implicando, como é o caso, a existência de uma necessidade 
preexistente verdadeira, ou natural (que nós devemos simplesmente 
não mais negar). 

Os alvos do ataque: feminismo e ...o supremacismo feminino 

Como vimos, Phillips é cuidadosa ao construir seu argumento, 
como sendo um argumento que não é diretamente antifeminista. A 
passagem de abertura do extrato pode ser lida como uma maneira 
de repudiar uma identidade hostil à independência das mulheres. 
Nos termos de Widdicombe (1993), um dos problemas que ela pro- 
cura evitar é o de ser considerada como atacando as mulheres. 
Quando ela primeiramente elabora o alvo de sua crítica, torna-se 
claro por que esse repúdio é necessário, pois seu alvo é precisamente 
“um tipo de feminismo”. Não é, contudo, todo o feminismo que ela 
condena, mas um tipo específico que “chegou à Inglaterra vindo dos 



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1 0. Análise de discurso 



Estados Unidos”. Aqui o argumento “Estados Unidos” é invocado 
para marcar um receio antigo dos britânicos contra a insidiosa ame- 
ricanização, mas ele se refere também a preocupações mais recentes 
sobre a disseminação da “correção política”, e um tipo particular de 
“feminismo vítima” (linhas 10-22), que é freqüentemente visto como 
o acompanhando. 

Um dos pontos básicos defendidos pela análise de discurso é que 
a descrição e a avaliação não são atividades separadas. Na maioria 
dos discursos, são produzidas descrições que contêm avaliações. Um 
exemplo claro disso está na linha 15. Aqui, feminismo é reformula- 
do como “supremacismo feminino”, uma frase que já vem “facil- 
mente avaliada”, repleta com ressonâncias de racismo e fascismo e 
de organizações sombrias, cujo objetivo é colocar um grupo de pes- 
soas acima de outras. Não é identificado nenhum representante do 
supremacismo feminino no artigo, nem sequer é indicada alguma 
fonte de referência das idéias supremacistas femininas. Na verdade, 
parte da força retórica do “supremacismo feminino” é que ele evoca 
idéias de uma ameaça arrogante, totalizante, enquanto protege 
Phillips da crítica ao negar qualquer possibilidade de crítica. 

Ortodoxia e poder de estado 

Uma prática comum de atacar as idéias dos opositores é cha- 
má-las de dogmas, ideologias ou ortodoxias. Nesse contexto, contu- 
do, a noção de ortodoxia possui conotações significativas específicas, 
sugerindo um conjunto de idéias que não podem ser questionadas, 
mas devem ser aceitas e às quais se deve aderir sem pensar. Mais uma 
vez, os temores sobre a disseminação da “correção política”, com seu 
conhecido policiamento do pensamento e do comportamento, são 
conjurados, com a noção de que estas idéias, longe de serem um pon- 
to de vista de uma minoria, “se tornaram a ortodoxia entre os pesqui- 
sadores da ciência social, dos profissionais do setor público e da maio- 
ria dos grupos que gostam de palavrório” (linhas 7-9). 

Dois dos três grupos identificados por Phillips são importantes 
por serem considerados como locais centrais de campanhas para 
uma “correção política” nos Estados Unidos, sendo ao mesmo tem- 
po alvos familiares da imprensa de direita - identificados como soci- 
alistas, ou liberais progressistas que vivem posicionados fora do 
mundo “real” dos negócios e do mundo empresarial. O clímax da 
lista tríplice, “os grupos que gostam de palavrório”, é, retoricamente 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



falando, particularmente eficaz. Cunhado na década de 1980, parte 
da força dessa categorização é sua própria falta de explicitação. Sem 
referências claras, é uma categoria discursiva inteiramente flexível, 
que evoca imagens de uma elite afluente, na maior parte das vezes 
empregada na educação, na mídia e nas “profissões de bem-estar”, 
cuja tagarelice dos jantares é, simultaneamente, ineficaz, mas se cons- 
titui na fala do establishment liberal. 

A evocação das idéias supremacistas femininas, que já se torna- 
ram a ortodoxia entre um segmento importante - embora não origi- 
nal - da população, contém um sentido poderoso de ameaça. Ela 
constrói o supremacismo feminino como um projeto político, dis- 
tante apenas alguns momentos da tomada do “poder do estado”, 
com terríveis conseqüências para os pais e os homens em geral. 

A natureza da ameaça: homens e paternidade sob estado de sítio 

Até aqui, analisei como Phillips montou uma imagem retórica 
poderosa das pessoas que ela julga responsáveis por ameaçar a 
“morte do Pai”. Voltar-me-ei agora para a maneira como ela carac- 
teriza a natureza da própria ameaça. A primeira alusão à ameaça 
está nas linhas 5-7: um “desejo de erradicar diferenças sexuais e de 
gênero a fim de recriar os homens”. Essa é uma construção fascinan- 
te, pois ela inverte a ordem lógica da maioria das argumentações fe- 
ministas. O argumento de que os homens podem ter de mudar, a 
fim de se conseguir uma igualdade de gênero, é um argumento que 
seria familiar à maioria dos leitores reconhecidamente feministas. 
Phillips atribui, contudo, às supremacistas femininas outro projeto 
completamente novo - um projeto cujo “objetivo primeiro” é 
“re-criar os homens”. Em vez do desafio para que certo comporta- 
mento masculino se torne um meio de se conseguir um objetivo so- 
cialmente desejável (igualdade de gênero), a re-criação dos homens 
é colocada como o fim em si mesma. A implicação é que esse projeto 
nasceu de nada mais nobre que o ódio pelos homens. Isso fica claro 
nas linhas 15-16: “Este supremacismo feminino, em vez de ser femi- 
nismo, fundamentalmente despreza, desconfia e não gosta dos ho- 
mens”. O uso de outra lista tríplice (mostrada por estudos de falas 
políticas como sendo um formato retórico altamente persuasivo, 
que se constitui em um atrativo específico para o público), combina- 
do com o uso da aliteração (em inglês: despises, distrusts and disli- 
kes), enfatiza o impacto da afirmativa. 



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1 0. Análise de discurso 



A natureza da ameaça aos homens é posteriormente elaborada 
nas linhas 17-25. Uma das características mais marcantes dessa passa- 
gem é sua imprecisão. Chamei a atenção acima que a identidade de 
“supremacistas femininas” nunca ficou explícita; a mesma falta de ex- 
plicitação está presente na discussão de Phillips sobre a natureza da 
ameaça colocada por esse grupo clandestino. Ela fala de “paternidade 
sob estado de sítio”, de ‘homens e pais cada vez mais vistos como su- 
pérfluos na vida familiar”, e de masculinidade retratada como sendo 
“desnecessária e indesejável”, mas ela não apresenta nenhum exem- 
plo, nem evidência alguma dessas afirmações. A força de seu argu- 
mento permanece apenas na retórica. O significado poderoso da 
ameaça aos homens está contido no emprego de metáforas de guerra 
(“estado de sítio”), referências a movimentos supremacistas, e uma 
linguagem que cheira a um discurso fascista, com suas visões de al- 
guns grupos como “desnecessários”, “indesejáveis” e “supérfluos”. 

Não é o caso de que Phillips esteja deliberada ou conscientemente 
brandindo um discurso fascista - e como uma analista de discurso eu 
estou menos interessada em sua motivação interna do que no efeito 
de suas construções - mas trata-se do fato que talvez este seja o recur- 
so cultural mais poderoso acessível às democracias ocidentais para 
produzir ameaça. O emprego de tal linguagem, para caracterizar 
crenças feministas, não é novo: a noção de feminazis circulou nos Esta- 
dos Unidos por ao menos uma década, popularizada por comentado- 
res de direita e humoristas vulgares como Howard Stern. Tal lingua- 
gem é tão poderosa em suas fantasias, que ela parece não necessitar 
explicação ou justificação alguma. Na verdade, parte de sua força é 
sua própria imprecisão. Como mostraram outros analistas de discur- 
so (Drew & Holt, 1989; Edwards & Potter, 1992), quando ela é siste- 
maticamente apresentada, a imprecisão pode se constituir em uma 
defesa retórica importante, exatamente porque ela fornece uma bar- 
reira a questionamentos imediatos e ao início de refutações. Ainda 
mais, se isso falha, e questionamentos são feitos, os locutores podem 
negar o sentido específico atribuído a eles. 

A eficácia da passagem é também realçada pelo uso de formatos 
retóricos específicos, tais como estruturas de contraste. Em um dis- 
curso político como esse, uma forma típica é o contraste retóri- 
ca-realidade - quando a ação do oponente é comparada desfavora- 
velmente com sua retórica, como no exemplo seguinte: “Eles dizem 
que o serviço de saúde está seguro em suas mãos, mas eles cortaram 
seus gastos em 40 milhões de reais este ano.” No nosso extrato, o 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



contraste é um pouco diferente: nas linhas 22-25, é feito um contras- 
te entre o que diz o “supremacismo feminino” em algumas ocasiões, 
e como isso é “cortado pela base” pelo que diz em outras; “Ele nos 
diz que os homens são importantes como novos pais. Mas ele corta 
isso pela base ao afirmar que a paternidade solitária é perfeitamente 
aceitável - e, em alguns casos, preferível”. Essa é uma forma alta- 
mente eficaz de ataque, porque ela sugere simultaneamente que as 
supremacistas femininas são inconsistentes e contraditórias, e que 
até mesmo asserções aparentemente aceitáveis devem ser colocadas 
sob suspeita. Uma agenda oculta de ódio contra os homens subjaz a 
essas afirmativas inócuas de boas-vindas aos “novos pais”. 

Indo contra a natureza 

Na parte final desse estudo de caso vou retornar o olhar para as 
linhas 5-7 e para a afirmativa de Phillips de que esse “tipo de femi- 
nismo” tem como objetivo “recriar os homens”. A noção de “re-cria- 
Ção” desempenha aqui uma função discursiva importante. A palavra 
sugerè não simplesmente um desejo de mudar o homem, mas a vi- 
são que os homens devem ser tratados como objetos ou máquinas, 
que podem ser re-criados ou re-programados. Ela sugere um desejo 
- de intervenção que é agressivo e invasivo, e que fundamentalmente 
desumaniza os homens. Uma leitura psicanalítica pode até mesmo 
sugerir que está simbolicamente implícita uma castração. Ao afirmar 
que as feministas procuram recriar os homens, Phillips as apresenta 
como ásperas, duras e desumanas. A noção reforça também a impli- 
cação de tendências fascistas. No contexto da discussão do suprema- 
cismo, ela evoca imagens poderosas de eugenia nazista ou progra- 
mas de re-criação humana. 

Um novo discurso de experimentação genética e de tecnologias 
reprodutivas está também presente: a frase provoca implicitamente 
temores populares sobre a variedade de tecnologias biomédicas, 
desde a clonagem, até “bebês de proveta”. Embora isso não esteja 
colocado explicitamente no artigo, os debates sobre engenharia ge- 
nética - e especialmente sobre a introdução da eugenia “pela porta 
dos fundos” - constitui um recurso discursivo chave, do qual Phillips 
faz uso. Posteriormente no extrato (linhas 26-27), a idéia de substi- 
tuição é invocada, com a sugestão de que a re-engenharia tem como 
objetivo último transformar homens em mulheres (reforçando uma 
vez mais a descrição do supremacismo feminino). 



— 262 — 



10. Análise de discurso 



Subjacente a esse discurso está o pressuposto de que os homens 
estão ameaçados não simplesmente por uma organização política 
normal, mas por um movimento que procura nada mais que subver- 
ter a natureza. Os homens devem ser re-criados, os pais têm de se 
tornar mães: a própria natureza, como nós a conhecemos, está sob 
ameaça por parte dessas pessoas. A idéia de que elas estão indo con- 
tra a natureza se torna explícita apenas pelo fim do extrato (linhas 
28-33). Tendo construído a natureza da ameaça que confronta os 
homens, Phillips argumenta: “Mas a maioria dos homens e mulhe- 
res não quer ser pais unissex”. Este é um movimento retórico razoa- 
velmente comum, em que o locutor, ou escritor, afirma conhecer e 
articular os desejos de outra pessoa ou grupo. Ele é particularmente 
eficaz, na verdade, em construções de crises ou ameaças, pois ele su- 
põe também que o grupo (nesse caso, os homens) estão em perigo 
de não serem capazes de falar por si mesmos. Aqui, contudo, Phillips 
vai adiante explicando por que os homens e mulheres não querem 
se tornar pais “unissex”: “Isso é porque existem diferenças sexual- 
mente fundamentadas entre mães e pais” de natureza biológica, ge- 
nética e hormonal. O que as “supremacistas femininas” querem é ir 
contra essa realidade natural. Desse modo, pois, o suposto ataque 
das feministas à paternidade se constrói como um ataque contra a 
própria natureza. 

Espero que esse breve estudo de caso tenha fornecido alguma in- 
dicação do potencial da análise de discurso para analisar a lingua- 
gem e as relações sociais. Em síntese, o estudo tentou mostrar que 
até mesmo uma curta passagem, extraída de um artigo de jornal, é 
uma obra retórica complexa. Nesse caso, foi mostrado como um ar- 
tigo aparentemente liberal, que afirmava explicitamente que não 
era antifeminista, se mostra fortemente ideológico, construindo 
uma sociedade em que pais, homens em geral, e na verdade a pró- 
pria natureza, estão encurralados pelo feminismo. O significado po- 
deroso de ameaça, gerado por essa passagem, mostrou que ele é o 
resultado de uma ampla variedade de diferentes estratégias e for- 
matos retóricos. 

A avaliação da análise de discurso: questões e comentários 

Nesta seção final, passarei à avaliação da análise de discurso, que 
será estruturada em termos de perguntas freqüentemente feitas, e 
suas respostas. 



— 263 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Ela produz generalização empírica ampla ? 

A resposta curta é não: por exemplo, ela não procura discutir 
questões tais como por que algumas pessoas escolhem se tornar pais 
solteiros. A análise de discurso não procura identificar processos 
universais e, na verdade, os analistas de discurso criticam a noção de 
que tais generalizações são possíveis, argumentando que o discurso 
é sempre circunstancial - construído a partir de recursos interpreta- 
tivos particulares, e tendo em mira contextos específicos. 

É ela representativa ? 

Há ocasiões em que os analistas de discurso podem querer apre- 
sentar reivindicações de representatividade para suas análises. Por 
exemplo, se eu tivesse feito a necessária pesquisa empírica, poderia 
querer afirmar que o argumento de Phillips é representativo dos tipos 
de discursos que se encontram na literatura dos movimentos atuais 
dos homens ingleses (que, julgando pelo material acessível nos seus 
websites, parecem defender que as mulheres conseguiram domínio 
na sociedade, e estão vitimizando os homens de diferentes modos). 

Falando de maneira geral, contudo, os analistas de discurso es- 
tão menos interessados no tema da representatividade do que no 
conteúdo, organização e funções dos textos. Embora os analistas de 
discurso não rejeitem de modo algum a quantificação (e na verdade 
questionem a idéia de uma distinção nítida qualidade-quantidade), 
um pré-requisito para contar as instâncias de uma categoria particu- 
lar é uma explicação detalhada de como decidir se alguma coisa é, 
ou não, uma instância do relevante fenômeno. Isto normalmente 
mostra-se ser mais interessante e complexo do que tentativas apa- 
rentemente diretas de quantificação. 

Produz ela dados que são fidedignos e válidos? 

Os analistas de discurso têm sido extremamente críticos a res- 
peito dos muitos métodos existentes para assegurar fidedignidade 
e validade. Na psicologia, por exemplo, muita pesquisa experi- 
mental e qualitativa depende da supressão da variabilidade, ou da 
marginalização das instâncias que não se ajustam à história que es- 
tá sendo contada pelo pesquisador (ver Potter & Wetherell, 1987). 
Os próprios analistas de discurso estão empenhados em produzir 



— 264 — 



10. Análise de discurso 



novos e adequados testes para assegurar validade e fidedignidade. 
Jonathan Potter (1996b) afirma que os analistas de discurso podem 
fazer uso de quatro ponderações para avaliar a fidedignidade e va- 
lidade das análises: 

1 . Análise de casos desviardes : isto é, o exame de casos que parecem 
ir contra o padrão identificado. Isto pode servir para descon- 
firmar o padrão identificado, ou pode ajudar a acrescentar 
maior sofisticação à análise. 

2. Os entendimentos dos participantes: como já assinalei anterior- 
mente, uma das maneiras de conferir se nossa análise se sus- 
tenta é examinar como os participantes responderam. Isto é 
mais importante, é claro, em registros de interação, mas mes- 
mo no caso de artigos de jornal, cartas e respostas, isso pode 
oferecer testes úteis. 

3. Coerência: trabalho analítico do discurso, como a análise da 
conversação, está cada vez mais se aproveitando de intuições 
de trabalhos anteriores. Por exemplo, o conhecimento sobre a 
efetividade de listas tríplices, estruturas de contraste, formula- 
ções de casos extremos e assim por diante, se desenvolveu a 
partir de intuições de estudos anteriores. Como afirma Potter 
(1996b), há uma convicção de que cada novo estudo apresenta 
uma avaliação sobre a adequação de estudos anteriores. Estes 
novos estudos emprestam coerência, captando algo sobre o 
discurso que pode ser desenvolvido, enquanto outros prova- 
velmente são ignorados. 

4. As avaliações dos leitores: a maneira mais importante, talvez, 
para controlar a validade do analista, é a apresentação dos ma- 
teriais que estão sendo analisados, a fim de permitir aos leito- 
res fazer sua própria avaliação e, se eles quiserem, apresentar 
interpretações alternativas. Onde os editores acadêmicos per- 
mitem, os analistas de discurso apresentam transcrições com- 
pletas aos leitores. Quando isso não é possível, passagens ex- 
tensas serão sempre apresentadas. Nesse sentido, a análise de 
discurso é mais aberta que quase todas as outras práticas de 
pesquisa, que invariavelmente apresentam os dados “pré-teo- 
rizados” ou, como na pesquisa etnográfica, nos pedem para fa- 
zer observações e interpretações baseados na confiança. 



— 265 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Os analistas de discurso, como quaisquer outros pesquisadores, 
afirmam que “a validade não é uma mercadoria que pode ser com- 
prada com técnicas... Ao contrário, validade é como a integridade, o 
caráter e a qualidade, que deve ser avaliada em relação a objetivos e 
circunstâncias” (Brinberg & McGrath,1985: 13). Os pesquisadores 
estão iniciando a difícil tarefa de construir um enfoque para a valida- 
de, que não se apóie na retórica ou na norma da objetividade para 
sua justificação (ver Henwood, 1999, para uma discussão). 

Qual é então o status de uma análise ? 

Uma análise de discurso é uma leitura cuidadosa, próxima, que 
caminha entre o texto e o contexto, para examinar o conteúdo, or- 
ganização e funções do discurso. Os analistas de discurso tendem a 
ser pessoas muito humildes que não gostam de afirmações bombás- 
ticas, e nunca irão argumentar que sua maneira é a única maneira de 
ler um texto. Em uma análise final, a análise de discurso é uma inter- 
pretação, fundamentada em uma argumentação detalhada e uma 
atenção cuidadosa ao material que está sendo estudado. 

E que dizer da reflexividade? 

Os críticos da análise de discurso gostam de um esporte que é 
uma variante da tradicional competitividade acadêmica: o esporte 
implica em atacar o analista com um triunfante “Há! Te peguei!”, e 
dizendo que se toda linguagem é construtiva, então a linguagem dos 
analistas de discurso também o é, e que, conseqüentemente, suas 
análises são meras construções. Os analistas de discurso estão bem 
conscientes disso: na verdade, fomos nós que o dissemos a nossos 
críticos! Mas isso não acaba de modo algum com a questão da análise 
do discurso. De fato, ela serve unicamente para realçar o fato inegável 
de que a linguagem é construída e construtiva. Não há nada simples so- 
bre linguagem! Alguns analistas de discurso se tomaram particular- 
mente interessados nesse ponto reflexivo, e começaram a fazer expe- 
riências com diferentes maneiras de escrever, que fogem da autoridade 
tradicional, desencarnada, monológica dos textos acadêmicos tradi- 
cionais, e são mais divertidos e exploratórios (ver Ashmore, 1 989; 
Woolgar, 1988; GUI, 1995; 1998; Potter, 1996b; Myers et al. , 1995). 



— 266 — 




10. Análise de discurso 



Passos na análise de discurso 

1. Formule suas questões iniciais de pesquisa. 

2. Escolha os textos a serem analisados. 

3. Transcreva os textos em detalhe. Alguns textos, tais como mate- 
rial de arquivo, artigos de jornal, ou registros parlamentares, não 
necessitam de transcrição. 

4. Faça uma leitura cética e interrogue o texto. 

5. Codifique, tão inclusivamente quanto possível. Talvez você quei- 
ra revisar suas questões de pesquisa, à medida que surgirem cri- 
térios no texto. 

6. Analise, a) examinando regularidade e variabilidade nos dados, 
e b) criando hipóteses tentativas. 

7. Teste a fidedignidade e a validade através de: a) análise de casos 
desviantes; b) compreensão dos participantes (quando apropria- 
da): e c) análise da coerência. 

8. Descreva minuciosamente. 



Nota: Sou extremamente grata a Bruna Seu por seus comentários valio- 
sos sobre este capítulo. 



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— 270 — 




11 

Análise da conversação e da fala 

Greg Myers 



Palavras-chave : par adjacente; turno preferencial; avaliação; 
tópico; formulação; turno; expressão indéxica. 



Em quase todos os projetos de pesquisa em ciência social, o pes- 
quisador se defronta, a certa altura, com uma montanha de dados, 
empilhados em mesas, prateleiras e cadeiras, e espalhados em ar- 
quivos de armários. Muitas vezes estes dados são em forma de fala, 
ou escrita: fitas de áudio, transcrições, formulários de levantamen- 
tos, anotações de estudos de caso e anotações de campo. Para a 
maioria das metodologias, o problema é reduzir estes dados brutos a 
categorias e formas que o pesquisador possa usar em uma argumen- 
tação; os momentos reais da fala, ou as marcas na página, são deixa- 
dos de lado. Quando os manuais de pesquisa em ciências sociais fa- 
lam sobre a formulação de perguntas, ou sobre a condução de entre- 
vistas, ou sobre o registro de interações (ver, por exemplo, Robson, 
1993), eles estão normalmente interessados com a localização e eli- 
minação de possíveis fontes de vieses, ou influências, ou como tornar 
a situação de pesquisa o mais possível semelhante ao mundo real. 
Irei argumentar que é, às vezes, apropriado voltar à montanha de fa- 
las nos materiais da pesquisa, e tratá-los como falas, olhando para 
interações específicas em suas situações particulares. Discutirei, pri- 
meiro, alguns problemas práticos; apresentarei, em seguida, um 
curto exemplo para mostrar os tipos de características que podem 
ser estudadas em tal análise; finalmente, levantarei algumas das 
questões metodológicas que surgem com tal enfoque de pesquisa. 

As interações de pesquisa são planejadas, em sua maioria, para 
serem padronizadas e reduzidas, seguindo o mesmo roteiro da en- 

— 271 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



trevista, do questionário ou do protocolo experimental, em cada 
caso, de tal modo que o pesquisador e as circunstâncias da interação 
podem ser deixados de lado. Mas grande número de pesquisadores 
nos lembra que até mesmo esses encontros cuidadosamente planeja- 
dos, são formas complexas de interação social. Entrevistas, levanta- 
mentos e discussões em grupo, podem ser todas analisadas tendo 
em mente que referenciais os participantes, sujeitos da investigação, 
imaginam que estão sendo aplicados, como as perguntas são feitas e 
respondidas, e como os encontros são começados e terminados (so- 
bre entrevistas ver Gilbert & Mulkay, 1984; Briggs, 1986; Potter 8c 
Wetherell, 1987; Wooffitt, 1992; Schiffrin, 1996; sobre levanta- 
mentos ver Antaki 8c Rapley, 1996; Mainard, 1998; e sobre discus- 
sões em grupo ver Kitzinger, 1994; Agar & MacDonald, 1995; Bur- 
gess et al., 1988). Na análise da conversação, os dados de pesquisa 
não são considerados como tendo um status especial que os separe 
de outra fala. O analista faz os mesmos tipos de perguntas que al- 
guém possa fazer em uma conversação entre amigos à mesa de jan- 
tar (Tannen, 1984; Schiffrin, 1984), em entrevistas entre médicos e 
pacientes (Heat, 1986), em sessões de um conselheiro de orienta- 
ção matrimonial (Edwards, 1997), em locuções de rádio (Scanell, 
1991), ou em conversas casuais entre estudantes de graduação 
(Malone, 1997). Há uma ampla literatura sobre análise conversacio- 
nal: produções recentes incluem Hutchby & Wooffitt (1998), Malo- 
ne (1997) e Psathas (1995). Mas os pesquisadores podem ter uma 
idéia melhor sobre a amplitude de aplicações da análise de conver- 
sação olhando para algumas das coleções de estudos específicos: 
Atkinson 8c Heritage (1984), Button 8c Lee (1987), Boden & Zim- 
merman (1991) e Drew 8c Heritage (1992). As conferências origi- 
nais de Sacks na década de 1960 e 1970 sobre conversação (publi- 
cadas em 1992), não são um texto sistemático, mas continuam sendo 
as explorações mais profundas e agradáveis dos problemas metodo- 
lógicos implicados. Para uma análise lingüística da conversação que 
leve a uma compreensão mais aprofundada, não, contudo, dentro 
do modelo da análise da conversação, ver Schiffrin (1994) e Eggins 
8c Slade (1997). Muitos pesquisadores em outras áreas da ciência so- 
cial ignoram a literatura sobre análise da conversação por que ela 
está interessada em como os participantes organizam a interação de 
momento a momento; ela não parece estar interessada com estrutu- 
ras sociais, mudanças, atitudes, identidades ou grupos, que são estu- 
dados em outros enfoques da ciência social. 



— 272 — 



1 1 . ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO... 



A análise da conversação é muitas vezes defendida (e questionada) 
polemicamente, como uma alternativa a esses outros enfoques da 
ciência, não como complementar a eles. Irei argumentar aqui, po- 
rém, que a análise dos dados da pesquisa como fala, pode começar de 
uma análise muito detalhada, para conduzir a temas sociais que inte- 
ressam especificamente aos pesquisadores da ciência social (e seus pa- 
trocinadores). Ela pode ser empregada para explorar os tipos de cate- 
gorias pressupostas pelos participantes (e não aquelas do pesquisa- 
dor). Ela pode mostrar como os participantes juntam e contrastam 
atividades e atores (ligações que podem ser perdidas na análise de 
conteúdo), e como eles apresentam mutuamente seus pontos de vista. 
Pode levar a mudanças práticas no estilo e na estrutura da entrevista, 
ou na moderação de um grupo. E ela pode ser um passo na direção de 
uma pesquisa mais reflexiva, capacitando os pesquisadores a conside- 
rar o tipo de situação que eles criaram, a orientação dos participantes 
para com ela, e seus próprios papéis nela como pesquisadores. 

Questões de natureza prática 

Vou tomar meu exemplo da transcrição de uma discussão feita 
como parte de um estudo de imagens da mídia sobre cidadania 
global. O estudo, “Cidadania global e o meio ambiente”, foi reali- 
zado na Lancaster University, com meus colegas John Urry (Socio- 
logia), Bronislaw Szerszynski e Mark Toogood (Centre for the 
Study of Environmental Change). O projeto envolvia um levanta- 
mento de uma difusão radiofônica por um período de 24 horas e 
uma série de entrevistas com profissionais da mídia, além do grupo 
focal discutido aqui (para uma visão geral dos temas ver Szerszynski 
8c Toogood, 2000). Tal estudo ofereceu oportunidades para um 
grande número de diferentes aproximações, tais como análise de- 
talhada de alguns poucos textos selecionados da mídia, uma análi- 
se mais extensa e focada de um corpus representativo de textos de 
mídia, entrevistas em profundidade com produtores ou intérpre- 
tes desses textos, questionários que investigavam atitudes através 
de escalas ou exercícios com o objetivo de estimular alguns aspec- 
tos de recepção e de resposta à mídia. Decidimos juntar as respos- 
tas dadas a algumas das imagens que nós tínhamos coletado em- 
pregando grupos focais, isto é, grupos de discussão, liderados por 
um moderador, seguindo um tópico guia, com participantes esco- 
lhidos de acordo com critérios específicos. 



— 273 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Havia determinado número de orientações introdutórias para a 
condução dos grupos focais, tais como as de Morgan (1988), Krue- 
ger (1994) e Stewart & Shamdasani (1990). Mas há ainda relativa- 
mente poucos estudos que lidam com os detalhes da interação, entre 
eles Kitzinger (1995), Agar 8c MacDonald (1996), Myers (1998), Wil- 
kinson (1998), Puchta 8c Popper (1999) e a coleção editada por Bar- 
bour 8c Kitzinger (1999). Os grupos focais produzem uma grande 
quantidade de dados; as transcrições de nossos oito grupos focais, 
tendo cada um deles se encontrado duas vezes, chegam juntos à 
soma de 320.000 palavras, ou mais extensas que três monografias 
acadêmicas. Um modo de lidar com tal quantidade de dados é usar 
as transcrições como dados brutos, codificando as transcrições de 
acordo com as categorias deduzidas a partir de nosso referencial 
teórico, por exemplo, identificando diferentes tipos de atores, ações 
e identificação (para exemplos deste tipo de análise de conteúdo 
com dados semelhantes ver Myers 8c Machaghten,1998; Macnagh- 
ten 8c Urry, 1998; Hinchcliffe, 1996). Tais análises podem ser auxili- 
adas por um software qualitativo (Catterall 8c Maclaran, 1977); no 
nosso projeto, estamos usando ATLAS. Mas aqui irei delinear um 
enfoque que tenta começar mostrando, a partir da evidência possí- 
vel, como o gerenciamento ordenado da interação foi feito pelos 
próprios participantes. A fundamentação para esse enfoque é que o 
analista procura a interpretação de um turno (a fala de uma pessoa 
do começo ao fim), examinando como outro participante responde 
no turno seguinte; a chave da organização espacial está nas rèlações 
entre os turnos adjacentes, e não nos pressupostos sobre estruturas 
subjacentes mais amplas (como na análise de discurso). Este enfoque 
exige uma atenção cuidadosa de como cada fala foi exatamente fei- 
ta, especialmente em questões de tempo, tais como pausas, sobrepo- 
sições e interrupções. 

Devido ao fato de que a análise da conversação só pode ser feita 
com transcrições muito detalhadas (e o ideal seria o acesso às fitas 
originais), precisamos levar em conta alguns tópicos práticos desde 
o começo. 

Planejamento : o tópico guia, ou a folha de entrevista, deve garan- 
tir uma gravação clara. Por exemplo, no caso que vou apresentar, a 
separação de um grupo em dois, durante uma parte da sessão, signi- 
ficou que as discussões dentro dos dois grupos se perderam em uma 
confusão; nas sessões posteriores, nós tivemos o grupo inteiro traba- 
lhando junto, e desse modo haverá uma linha central de conversa- 



— 274 — 



1 1 . ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO... 



ção. Para as entrevistas, a folha necessita propiciar algumas idas e re- 
tornos não controlados, e não ser apenas uma série de questões e 
respostas como um tipo de levantamento, a fim de que possa ser de 
algum modo útil à análise da conversação. 

Registro : a gravação deve ser suficientemente clara para permitir 
uma boa transcrição, se possível com microfones estéreos (verifica- 
mos também que microfones de mesa, em dois gravadores separa- 
dos, podem contribuir para se poder fazer um bom controle). Locais 
ruidosos, como bares, ou mesmo com janelas abertas para a rua, po- 
dem deixar algumas passagens cruciais obscuras. Isso não tem im- 
portância quando o analista está apenas tentando entender o ponto 
principal da sessão, ou para algumas ilustrações; mas pode ser muito 
frustrante quando alguma fala específica é potencialmente impor- 
tante, e quando falas colaterais, ou sobrepostas, podem ser particu- 
larmente interessantes. A gravação em vídeo pode ser útil (ver He- 
ath, 1986), mas é também muito mais invasi^a. 

Transcrição : é muito discutida entre lingüktas e outros pesquisa- 
dores em ciência social; na opinião de Elinor Òchs (1979), é impor- 
tante tratar a “transcrição como teoria”. Uma boa visão geral, com 
referências, é a de Cook (1995). Uma defesa em favor de transcri- 
ções detalhadas empregadas na análise de conversação está em 
Sharrock & Anderson (1987); ver Atkinson & Heritage (1984) para 
uma mais ou menos extensa lista de símbolos-padrão para análise de 
conversação. A transcrição completa de uma análise de conversação 
pode incluir clímax, sonoridade, ritmo, respirações audíveis e cro- 
nometragem, bem como o que apresento aqui. Muitas pêssoas que já 
transcreveram falas, trabalhando como secretários(as), poderão ser 
solicitadas a fornecer uma versão mais limpa do que é dito, revisan- 
do automaticamente repetições, sobreposições e cortes na fluência, 
e editando o que foi dito em frases coerentemente pontuadas. Se al- 
guém quiser algo mais, deve dizer a eles e treiná-los para isso. Cada 
um dos símbolos que está em meu apêndice, é necessário para meu 
exemplo específico, com o fim de garantir características que podem 
ser essenciais à interpretação desta passagem. Um projeto de análise 
de conversação necessita ser planejado desde o início, reservando 
uma grande quantidade de tempo para a transcrição: Potter & 
Wetherell (1987) calculam em cerca de 20 horas de transcrição para 
cada hora de gravação, em contraposição a cerca de quatro horas 
para uma hora de gravação de uma transcrição mais simples. No 
nosso caso, instruímos aos que transcreviam que queríamos toda pa- 



— 275 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



lavra transcrita, mesmo que ela não fosse parte de uma frase inteira. 
Até mesmo a simples conferência dessa transcrição já preparada, 
para torná-la suficientemente apropriada para nossos objetivos, de- 
morou cerca de 5 horas, para cada hora de gravação. O analista 
pode, então, voltar às fitas e enriquecer essa transcrição como for ne- 
cessário. Esse enriquecimento, contudo, não é uma questão de deta- 
lhe lingüístico; sempre tive minha interpretação mudada de algum 
modo, quando eu transcrevia mais acuradamente. 

Atribuições: os que transcrevem podem não atribuir turnos a par- 
ticipantes específicos nos grupos de discussão; a atribuição pode ser 
muito difícil e acrescentar um tempo extra à transcrição. Mas para 
os propósitos descritos aqui, é crucial sermos capazes de dizer quem 
disse o quê. Por outro lado, como meu colega Bronislaw ^zerszynski 
mostra, um analista pode tomar três exemplos de afirmações seme- 
lhantes, para mostrar um amplo consenso, quando de fato pode ter 
acontecido que tenha sido a mesma pessoa que falou três vezes. Ain- 
da mais, pode-se não conseguir reconhecer uma continuidade, quan- 
do um participante faz uma afirmação clara, e vai em frente, colo- 
cando aquilo que parecem sentimentos totalmente diferentes na pá- 
gina seguinte. 

Análise: do mesmo modo que com a transcrição, a análise prova- 
velmente tomará muito mais tempo e, conseqüentemente, será me- 
nos extensa. Algumas características relevantes podem ser encontra- 
das através de uma busca automática no computador, mas como vou 
mostrar na seção seguinte, não há substituto para uma leitura aten- 
ta, preferivelmente junto com a escuta da fita, como primeiro passo 
para a análise. 

Relatório: a forma ideal de relatório seria mostrar seções da fita 
para demonstrar nossa argumentação. Mas sendo que a maioria dos 
relatórios vai ser impressa, como este, a interação deve ser normal- 
mente representada por símbolos impressos, como farei no meu 
exemplo. Transcrições detalhadas podem ser desconcertantes para 
leitores acostumados a ver a fala representada na forma clara de jor- 
nais e peças de teatro (e podem ser especialmente decepcionantes se 
os próprios participantes das discussões as lerem). Elas ocupam tam- 
bém muito espaço (como minha transcrição ocupa aqui) e existe 
sempre a tentação de querer incluir mais e mais. Os argumentos, na 
análise de conversação são, em geral, feitos através da comparação 
de muitos extratos curtos, muito detalhados; estes também ocupam 
espaço e exigem muita atenção. 



— 276 



1 1 . Análise da conversação... 



Pode parecer que estas dificuldades sejam todas uma conseqüên- 
cia da tecnologia da escrita, que serão algum dia superadas pela gra- 
vação em vídeo, pelo reconhecimento da voz, estocagem multimídia 
e bancos de dados sofisticados de hipertextos. Certamente sempre 
haverá algo mais que poderia ser incluído na transcrição; muitos 
pesquisadores fizeram experiências com a codificação não-verbal de 
elementos da comunicação (ver, por exemplo, Heath, 1986; Avery & 
Antaki, 1997). Mas a tecnologia não irá superar a necessidade de o 
pesquisador fazer escolhas do que é relevante, e como mostram ou- 
tros capítulos desta coleção, decisões práticas na metodologia da 
pesquisa estão estreitamente ligadas a pressupostos teóricos sobre 
que tipos de entidades e fenômenos a ciência social pode investigar. 

Um exemplo 

Meu exemplo é a segunda de uma série de sessões de duas horas, 
com pessoas de uma pequena cidade em Lancashire; todas as pes- 
soas têm mais de 60 anos e tinham viajado ao exterior no ano anteri- 
or. No início dessa sessão, elas discutiram exemplos trazidos da lei- 
tura de jornais e da assistência à televisão, de ações realizadas por se 
sentirem responsáveis pelos seres humanos, ou pelo planeta terra 
em geral. Fizeram então um exercício em que selecionaram, do 
chão, várias fotografias de pessoas e atividades apresentadas na mí- 
dia, que nós tínhamos coletado das revistas. Um grupo criou uma ca- 
tegoria que incluía fotografias de Nelson Mandela, Madre Teresa, 
Príncipe Charles, um soldado da ONU e um manifestante seguran- 
do um cartaz contra a exportação de animais vivos. O outro grupo 
criou uma categoria que consistia em uma fotografia de uma mani- 
festação de rua e uma fotografia de Swampy, um manifestante de 
rua, que os jornais tomaram como emblemático do movimento. O 
moderador ia acompanhando e questionando suas categorias, per- 
guntando às pessoas do primeiro grupo onde elas teriam colocado 
as várias fotografias do outro grupo; ele já tinha decidido que eles 
iriam incluir uma fotografia do barco Greenpeace em uma categoria 
que eles denominaram “pessoas que se interessam”, e está agora 
perguntando o que eles fariam com os manifestantes de rua. 

MOD posso retornar ao que Dennis estava dizendo sobre = =eu es- 
tava interessado em seu= = eu não tinha . um investigado 
muito o que você pensou sobre essas demonstrações mas você 
disse que você não teria problema colocando essas pessoas 



— 277 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



que protestam exportações de animais vivos dentro com Ma- 
dre Teresa e um ONU como como tentando fazer algo para 
corrigir = 

F1 =do seu modo / seu modo 

MOD /um e é esse o modo como vocês pensam sobre esse . protesto 
parece um protesto sobre estradas/ 

F1 /[eu realmente não sei] 

F2 Não eu não 

MOD e Swampy e Greenpeace. 

F1 oh Swampy 

MOD você está dizendo que . porque eles não ficam indiferentes 
(2.0) você um . você pensa que eles estão fazendo alguma coi- 
sa boa 

Ml Sim 

M2 Eu os vejo como completamente diferentes é isso o que você 
está dizendo 

MOD você vê aqueles 

M2 eu os vejo como sendo uma praga no mundo 
MOD OK então/ 

M2 /essas pessoas . elas deveríam ser presas 

MOD um ponto de vista é/que ao menos eles não são indiferentes 
F3 /você não acha que eles são 

M2 Eu penso que eles deveriam ser presos/ 

F3 /quem são eles 

M2 eles causam mais dano eles causam mais prejuízo/ 

F3 /quem são eles 

M3 no fim do aeroporto . a pista do aeroporto 
F3 oh são eles 

M2 eles causam mais dinheiro e eles nunca mudam nada de qual- 
quer modo isso é feito e isso custa milhões e milhões de libras 



278 



1 1 . Análise da conversação... 



para que isso aconteça então, essas pessoas são transgressores 
e criminosos / 

M3 /você sabe . no jornal . você está certo [fala o 

nome de M2] estava no jornal onde eles prejudicaram mais 
árvores . que os tratores / fizeram . construindo para eles casas 
e coisas 

M 1 /sim mas esse senhor ele agora mesmo esse senhor agora mes- 
mo disse . você não tem . irá aconte cer de qual quer modo = 

M2 =isso ia acontecer de qualquer modo 

F1 sim 

Ml isso é apatia 

M3 claro que irá 

M2 possivelmente é . mas você conhece algum / lugar 

F 1 / bem eles eles co- 

locam vidas em risco, não?, onde eles construíram túneis e es- 
sas coisas 

M2 onde eles impediram que isso acontecesse 

MOD a respeito do que. Você colocou exportações de animais vivos 
em uma categoria diferente dessa 



Um apêndice discute alguns dos símbolos da transcrição usados aqui. 

Algumas características para análise 

Não há uma listagem simples de que características podem ser 
relevantes na análise de conversação, como poderia existir em al- 
guns enfoques da análise de discurso; estudos prévios trabalharam 
com tudo, desde “oh” até risos, para avaliações de conclusões de fa- 
las telefônicas. Mas alguns poucos comentários a partir do exemplo 
acima podem sugerir possíveis pontos para se começar: seqüência, 
tópico, formulação e indexação. 

Seqüência e preferência 

A análise de conversação começa com a seqüência turno a turno 
da fala, examinando como os participantes decidem quem vai falar 



— 279 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



em seguida e como cada turno se relaciona com o anterior. Estudos 
identificaram vários tipos diferentes depares adjacentes - padrões re- 
gulares de seqüência na fala comum, tais como pergunta e resposta 
ou convite para que se responda. Uma dessas seqüências regulares é 
a maneira como uma colocação que implica valor, ou uma avaliação, 
é seguida por outra; o que é previsível é que a segunda avaliação será 
colocada em uma forma que soa como uma concordância, ou mesmo 
um reforço da avaliação; ou se o turno é uma discordância, isso vai 
mostrar sinais de modificação, prefácio ou demora. Em termos ana- 
líticos de conversação, existe uma preferência para acordo em segun- 
das avaliações (Pomerantz, 1984). 

Uma análise que contemple essas avaliações, comparando-as 
com o que alguém espera de uma fala comum, pode ser útil em mos- 
trar se os participantes se apresentam como discordando (e não ape- 
nas se o analista pensa que eles discordam). Diferentemente dos 
participantes em uma fala normal, os participantes de um grupo fo- 
cal podem dirigir afirmações, das quais outros podem discordar, ao 
moderador, de tal modo que elas não vão provocar uma resposta da 
parte de outros participantes. Por exemplo, o primeiro comentário 
de M2, no nosso caso é dirigido ao moderador: 

M2 Eu os vejo como completamente diferentes é isso você está dizendo 

Ml discorda então dele para se dirigir novamente ao modera- 
dor: 

Ml Sim, mas esse senhor agora mesmo 

Apenas então ele se dirige ao outro participante, M2, com uma 
pergunta com sufixo repetitivo (tag question): “não tem você”: 

Ml esse senhor agora mesmo disse . não tem você . isso irá acontecer 

M2 começa sua resposta com uma concessão: 

M2 possivelmente é . mas você conhece algum lugar onde eles impedi- 
ram que isso acontecesse 

F1 parece estar concordando, mas ela começa seu turno 

F 1 bem eles colocaram vidas em risco 

com “bem”, que tipicamente assinala um turno preterido, no nosso 
caso uma possível falta de concordância, ou diferença (e de fato ela 
continua, mais tarde na transcrição, a defender os manifestantes). 



— 280 — 



1 1 . Análise da conversação... 



As opiniões aqui não surgem no formato de um debate entre dois 
lados, uma maneira como discussões irradiadas sobre questões públi- 
cas são colocadas; os participantes fazem várias contribuições que le- 
vam a muitas direções diferentes. O reconhecimento de riscos pode 
levar a uma apreciação do espírito dos manifestantes, ou a uma crítica 
por sua irresponsabilidade; o ataque contra a indiferença pode ser 
usado para apoiar mecanismos participativos de apoio, ou para enco- 
rajar a ação direta desses manifestantes. Olhando para a maneira 
como a discordância emerge, e como se lida com ela, o analista pode 
explorar algumas das complexidades dessas crenças (Myers, 1998). 

Tópico 

Na codificação de uma passagem de uma transcrição como essa, 
um analista decide qual é o tópico. Mas os participantes estão tam- 
bém tentando decidir qual é o tópico, e o tópico concreto não é 
dado, mas negociado e discutido pelos participantes. Aqui o mode- 
rador nomeia um tópico, relacionando-o a comentários anteriores, 
enfocando depois um aspecto dele: 

MOD E essa a maneira como vocês pensam sobre sobre esse . protesto 
parece um protesto sobre estradas e Swampy e Greenpeace 

A partir desse ponto, cada participante se refere a “eles” como o 
sujeito concreto. Mas, como nós vimos, os participantes também 
questionam quem “eles” são. Quando Ml faz seu comentário, que 
pode ser tomado como sendo um tópico novo (“indiferença”), ele o 
liga ao que tinha sido dito dois turnos antes: 

Ml Esse senhor disse agora mesmo 

Este poderia ser visto pelo analista como um comentário sobre a 
própria discussão e da indiferença dos participantes. Mas a maneira 
como ele é retomado por outros é como sendo um outro comentário 
sobre os manifestantes, e sobre a ineficácia de seu protesto. 

É evidentemente difícil dizer, a partir das falas, o que será assu- 
mido como o tópico concreto; a última fala de F1 (“bem eles estão 
colocando vidas em risco, não estão”) poderia levar a uma crítica dos 
manifestantes ou a uma defesa deles. Mas alguém pode iniciar mu- 
danças como “esse senhor disse agora mesmo” onde os participantes 
tentam ligar um tópico aparentemente novo, a algum turno anterior 
(normalmente não o imediatamente anterior). E pode-se perceber 
que mudanças ocorrem porque, como acontece aqui ao final, o mo- 



281 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



derador interfere, depois que opiniões opostas foram expressas e re- 
petidas (Myers, 1998). Estes limites, marcados por intervenções do 
moderador, formam uma unidade lógica para apresentar exemplos 
aos leitores, porque eles mostram como essa lógica está segmentada 
para os participantes. 

Formulação 

Muito da fala nos grupos focais é sobre a própria fala. O modera- 
dor pode formular o que os participantes acabaram de falar, isto é, re- 
peti-lo com palavras diferentes, para obter comentários posteriores: 

MOD Vocês estavam dizendo que . por que eles não ficam indiferentes... 

Ou o moderador pode formular uma fala para fechar uma parte 
da discussão: 

MOD OK então um ponto de vista é que... 

Formulações são um artifício chave, através do qual o moderador 
controla o tópico e demonstra empatia. Há uma grande preocupação, 
em guias para pesquisa com grupos focais, sobre a maneira como o 
moderador pode dirigir a discussão; formulações e as respostas a elas 
são um lugar onde nós vemos esse direcionamento em ação. 

Os participantes podem repetir o que outras pessoas dizem ou escre- 
vem, criticar isso ou usá-lo como evidência (Holt, 1996; Myers, 1999): 

M3 estava no jornal onde eles causaram dano a mais árvores 

Eles podem também formular contribuições a partir de outros 
participantes, como nós vimos Ml fazer com M2. Ml não repete 
exatamente as mesmas palavras do outro participante; M2 disse: 

M2 eles nunca mudam nada de qualquer modo isso acontece 

Ml formula isso como: 

M 1 Esse senhor disse agora mesmo . você não . que isso irá acontecer 
de qualquer modo 

A esta altura, M2 poderia rejeitar isso como não sendo absoluta- 
mente o que ele tinha dito ou intencionado dizer. Em vez disso, ele o 
repete de imediato, acentuando sua responsabilidade pela avaliação. 

Ml isso irá aconte cer de qualquer modo = 

= irá acontecer de qualquer 

modo 



— 282 — 



1 1 . ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO... 



Citações, formulações e respostas como essas constituem 
parte importante da transcrição. Elas são importantes tan- 
to para restringir a análise, como para ampliá-la. Quando 
nós vemos como é comum que ecos e formulações estejam 
no ir e vir da discussão, percebemos que pode ser perigoso 
extrair comentários de participantes sem olhar para trás, 
para a cadeia de conversação que levou a isso; essa é a res- 
trição. A saída é ver esses ecos e formulações em termos do 
sentido que os participantes têm daquilo que é precisamen- 
te importante no momento (Butny, 1997). 



Indexação 

Lingüistas e filósofos identificam certas expressões, tais como 
“aqui” (here) ou “agora” (now) ou “vamos” (come), como expressões 
indéxicas, variando de significado de acordo com a situação. Aqui 
significa algo diferente, dependendo de onde o locutor se coloca (se 
em Porto Alegre ou Roma); e dependendo da abrangência da área 
que o termo é destinado a indicar (a sala de estar ou a nação). Os 
analistas de conversação sustentam que todas as expressões são, em 
princípio, indéxicas; isto é, elas adquirem seu sentido por indicarem 
uma situação imediata, e não em referência a códigos simbólicos fi- 
xos (Schegloff, 1984). Uma palavra significa o que ela quer dizer 
aqui e agora, para os referidos propósitos. Este desafio é importante 
para nossa análise, porque as técnicas dos grupos focais e a maioria 
das outras técnicas de pesquisa em ciência social supõem que os sig- 
nificados são relativamente estáveis entre situações, de tal modo que 
alguém pode fazer as mesmas perguntas a qualquer grupo, mais ou 
menos perguntas, no tópico guia, mostrar ao grupo as mesmas foto- 
grafias e comparar as respostas entre os grupos. Mas mesmo que os 
pesquisadores não aceitem a posição filosófica subjacente à análise 
de conversação, eles vão descobrir que a indexação é uma questão 
prática na análise de seus dados. Por exemplo, um leitor da transcri- 
ção percebeu que a colocação do moderador, que abre meu exemplo 
acima, parece particularmente incoerente. Isto não é apenas devido 
à maneira como a transcrição sublinha hesitações e repetições (em- 
bora isto seja uma parte). E também porque a colocação de abertura 
do moderador não seria primariamente sobre grupos políticos, ela 
seria sobre a maneira como as fotografias estão colocadas no chão: 

MOD Eu não tinha . um investigado muito o que você pen- 
sou sobre essas demonstrações mas você disse que você não te- 
ria problema colocando as pessoas que protestam contra ex- 
portações de animais vivos dentro com Madre Teresa e 



— 283 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



ONU como como tentando fazer algo para corrigir / um e é 
esse o modo que vocês sentem sobre sobre esse . protesto [ên- 
fases adicionadas] 

Há aí uma referência indéxica não apenas em “essas demonstra- 
ções” e “esse protesto”, mas também em “as pessoas que protestam 
contra exportações de animais vivos”, “a ONU”, e (depois) “Green- 
peace”, como se referindo a fotografias específicas. A pergunta do 
moderador consegue sua resposta, por que os participantes organi- 
zaram essas fotografias dessa maneira e eles estão supondo que po- 
dem ser chamados a prestar conta daquilo que fizeram. Expressões 
semelhantes são encontradas neste, e em outros grupos focais, com 
referência ao que está claro a todos os membros do grupo, mas não, 
talvez, ao que escuta a gravação da fita ou ao leitor da transcrição. 

Há outra questão de indexação na discussão do pressuposto táci- 
to sobre “quem são eles”, dentro desse exemplo; não é apenas uma 
questão de informação, mas daquilo que a fotografia representa 
para os propósitos em questão. Todas as fotografias são, nesse senti- 
do, polissêmicas, mas os participantes decidem um sentido para os 
objetivos imediatos. Uma atenção cuidadosa à generalidade das re- 
ferências nos ajuda a ver a flexibilidade das categorias centrais das 
imagens da mídia e das ações ambientais. Referências indéxicas não 
são apenas um problema prático para o analista, elas são também in- 
dicações de como o grupo entende sua situação, como se refere ao 
que seus membros partilham e como se torna um grupo. 

Há um outro tipo de indexação nessa passagem, que todo pes- 
quisador deve levar em conta: as características não questionadas do 
ambiente, às quais ninguém se refere, mas das quais os participantes 
podem estar conscientes. Durante essa sessão, um segundo pesqui- 
sador sentou-se a um canto, ajudando na gravação da fita, dos vídeos 
e tomando notas, fazendo ocasionalmente algum comentário, mas 
permanecendo em geral em silêncio. Ele comentou depois, lem- 
brando como alguns participantes criticaram duramente os mani- 
festantes na pista do aeroporto com tratamentos ofensivos, e que es- 
perava que eles não se tivessem dado conta de que ele próprio era 
um deles. Poder-se-ia apenas especular sobre que tipo de influência 
isso poderia ter, do mesmo modo como se poderia apenas especular 
sobre a relevância do sotaque americano do moderador, do prejuízo 
que pode causar a dificuldade de movimentação de um participante, 
ou do tipo de carpete na arrumação do chão, porque nenhum destes 
aspectos foi trazido para a discussão. A importância analítica desses 



— 284 — 



1 1 . Análise da conversação... 



aspectos não discutidos pelos participantes, ou do local, é uma das 
contínuas controvérsias na análise de discurso. 

Todas estas características - seqüências de acordos, tópico, for- 
mulação de expressões indéxicas - se relacionam com os tópicos 
mais amplos da investigação. As pessoas não apenas chegam com 
atitudes favoráveis ou desfavoráveis, com respeito a determinados 
atores ou ações. Elas tomam posição com respeito às insinuações do 
moderador, sobre as contribuições dos outros participantes, sobre 
os objetos que as rodeiam e sobre as ações e a fala que se desenvol- 
vem. Elas propõem e exploram possíveis colocações com relação ao 
turno anterior, e desse modo não é surpresa que seus pontos de vista 
sejam muitas vezes complexos, instáveis e aparentemente contradi- 
tórios. Para os pesquisadores, a interação é um modo de investigar 
opiniões; para os participantes, as formulações de suas opiniões são 
um modo de interação, em uma sala cheia de pessoas estranhas. 

Problemas metodológicos 

A análise detalhada da fala levanta questões diferentes, depen- 
dendo de ser a fonte de dados uma entrevista, um grupo de discussão, 
uma fala irradiada ou uma interação informal. Algumas das questões 
se referem à capacidade de persuasão de toda a interpretação (infe- 
rência); à relação da amostra com o conjunto da sociedade mais am- 
pla (generalização); à sua relação com vários grupos sociais (identida- 
de); e à relação entre o que eles fazem e dizem nos grupos focais e o 
que eles iriam fazer ou dizer em outros contextos (tipo de atividade). 

Inferência : apresentei apenas alguns exemplos para ilustrar os ti- 
pos de aspectos com os quais uma análise pode começar. Uma análi- 
se mais persuasiva iria mostrar como há padrões semelhantes ou di- 
ferentes, encontrados em outras transcrições de fala, por exemplo, 
comparando uma instância de desacordo com outras. Mas isso, por 
si só, não iria resolver o problema, porque a análise de conversação 
procura mostrar que tipos de padrões os participantes assumem 
como aceitos sem discussão. Deste modo, um analista iria procurar 
exemplos em que os participantes discordam mais direta e aguda- 
mente, e mostrar como outros participantes respondem a essas ins- 
tâncias como uma oportunidade de realização de suas expectativas 
(um exemplo é Greatbach, 1988). 

Generalização-, alguém poderia ser tentado a generalizar a partir 
desse exemplo para grupos sociais se, por exemplo, muitas das 



— 285 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



transcrições incluíssem alguma defesa dos manifestantes de rua. 
Mas os membros dos grupos focais não foram escolhidos para repre- 
sentar a sociedade como um todo; eles foram escolhidos para consti- 
tuir grupos que pudessem ter algo a dizer em relação a nossas ques- 
tões teóricas. Não se poderia dizer que as pessoas, em geral, defen- 
dem manifestantes de rua, mas alguém pode dizer que esse homem, 
nessa situação, defendeu os manifestantes nesses termos. Muitas ve- 
zes esses achados são surpreendentes e vão contra expectativas base- 
adas em visões sociais amplas; por exemplo, Ml combina um con- 
servadorismo social e uma ênfase na disciplina (em outras passa- 
gens) com a afirmação, no caso presente, de que até mesmo infringir 
a lei é preferível à indiferença. 

Identidade: os pesquisadores devem também ser cuidadosos em 
atribuir afirmações a grupos sociais específicos. É tentador, na pas- 
sagem que apresentei, notar que os homens, em geral, se colocam 
contra os manifestantes de rua, e que as mulheres são a favor, e ten- 
tar generalizar com respeito a gênero. Mas esses participantes pos- 
suem muitas identidades sociais possíveis e o enfoque analítico de 
texto resiste em tomar alguma dessas identidades como necessaria- 
mente mais importante. Nos grupos focais, os participantes tendem 
a se referir a uma identidade que eles percebem como partilhada 
pelo grupo, e assim eles muitas vezes se referem a sua idade, en- 
quanto que em outros contextos eles podem ter-se referido a gêne- 
ro, status parental, saúde e doença, “raça”, classe e origem regional 
(nesse caso, nativos versas pessoas que vieram de fora). Embora esse 
assunto seja altamente polêmico entre os pesquisadores que assu- 
mem ser o gênero, ou as diferenças culturais, ou relações de poder 
sempre relevantes, os pesquisadores da análise conversacional dão 
atenção apenas àqueles elementos de identidade mostrados pelos 
participantes na fala. 

Tipo de atividade: que pensam os participantes estarem fazendo 
ao falar? Em um mundo com tantas instituições coletando opiniões 
pode parecer absolutamente natural um grupo de estranhos se en- 
contrar e dizer o que eles pensam sobre vários assuntos. Mas nós po- 
demos ver nas transcrições vários referenciais que vão se alternando 
no que diz respeito ao que eles estão fazendo ali. Afirmei, em outra 
ocasião, que muitas das características dos grupos focais criam senti- 
do se considerarmos os participantes como formulando opiniões pa- 
ra um gravador que está ouvindo tudo atentamente (Myers, 1998). 
Mas há também lugares onde eles agem como se participassem de 



— 286 — 




1 1 . Análise da conversação... 



interações mais parecidas com bate-papo, terapia, teatro, júri ou 
sala de aula; às vezes eles respondem diretamente ao moderador, 
tanto que existe, de fato, uma série de entrevistas pessoa a pessoa, e 
às vezes eles parecem ignorar totalmente o moderador. Tais mudan- 
ças podem ser identificadas por uma análise atenta da fala; elas ten- 
dem a se perder em sínteses ou visões gerais seletivas. 

Conclusão 

Argumentei aqui que uma análise atenta dos dados falados 
transcritos, seguindo modelos baseados na análise de conversação, 
pode levar a compreensões mais claras sobre os dados coletados 
para projetos de pesquisa em ciência social. As desvantagens de tal 
análise são que ela requer uma gravação e uma transcrição cuidado- 
sas, e uma análise demorada. Para alguns pesquisadores, é seme- 
lhante a acrescentar um montículo de terra à montanha de seus da- 
dos. Mas tal análise pode fornecer um caminho para examinar as ca- 
tegorias dos participantes, descobrindo o que eles tomam como sen- 
do relevante a essas categorias, fornecendo uma explicação explícita 
para aquilo que poderia, de outro modo, ser deixado às vagas intui- 
ções do analista; pode ser também um modo para melhorar técnicas 
de pesquisa, e para refletir sobre a situação da investigação e sobre o 
lugar do pesquisador dentro dela. Em um projeto como o nosso, 
onde estamos investigando a possibilidade de novos tipos de identi- 
dades e novos tipos de ações, ela pode complementar outros enfo- 
ques com respeito aos dados, construindo uma ponte com nossas 
preocupações teóricas e ao mesmo tempo mantendo-nos abertos ao 
que nos possa surpreender. 



Passos na análise da fala 

1. Planeje o local de pesquisa de tal modo que permita uma grava- 
ção de áudio nítida (e se possível de vídeo). 

2. Inclua na transcrição todos os falsos começos, repetições, pausas 
preenchidas (“erm”) e aspectos temporais, tais como silêncios e 
sobreposições de fala. 

3. Comece com transições turno a turno, investigando como cada 
turno é apresentado como relevante em comparação ao turno 
anterior ou aos turnos anteriores. 



— 287 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



4. Considere principalmente turnos preteridos — aqueles marcados 
por prefácios, demora ou modificações. 

5. Para todo padrão que você encontrar, investigue o que acontece 
naqueles casos em que o padrão não é seguido. 

6. Teste todos os padrões que você encontrar em confronto com 
aqueles da fala normal. 



Apêndice — convenções de transcrição 

Sub linhado ênfase 

MAIÚSCULAS sonoridade 

/ 

/ o começo de falas sobrepostas 

pausa curta 

(2.0) pausa medida 

= = continuações sem pausas audíveis 

[ ] transcrição incerta 

Para um sistema mais detalhado de transcrição e comentário so- 
bre transcrição, ver Hutchby 8c Wooffitt (1998). 

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12 

Análise retórica 

Joan Leach 



Palavras-chave : acomodação; metáfora; analogia; metonímia; 
argumento; pathos; discurso; retórica; ethos; cânones retóricos 
(partes da retórica); gênero; sinédoque; logos. 



Se pelo menos as políticas do Primeiro-Ministro fossem tão boas 
como a política retórica que nós ouvimos, estaríamos todos em me- 
lhores condições de vida. 

O emprego comum da palavra “retórica” desfigura a longa e ce- 
lebrada história de uma disciplina acadêmica e um modo de análise 
crítica. Na fala cotidiana, nós contrastamos “retórica” com “ação”, e 
sugerimos que algo “retórico” é equivalente a uma coleção de menti- 
ras ou meias verdades. Este é um tipo de publicidade frustrante para 
estudiosos contemporâneos que investigam textos e discursos orais, 
desenvolvem teorias de como e por que eles são atrativos e persuasi- 
vos, por que eles se desenvolveram em momentos específicos, que 
estruturas de argumentação, metáforas e princípios estruturantes 
estão em ação e, em alguns casos, o que pode ser feito para conse- 
guir que diferentes formas de comunicação funcionem melhor den- 
tro do contexto. 

Um modo de começar a esclarecer o termo “retórica” é fornecer 
algumas definições de trabalho, que comecem a lançar alguma luz 
sobre a multiplicidade de empregos da própria palavra: 

Retórica I: O ato de persuadir. 

Retórica II: A análise dos atos de persuasão. 

Retórica III: Uma cosmovisão sobre o poder persuasivo do discurso. 



293 — 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A citação inicial do capítulo parece ser um comentário que se in- 
sere dentro da primeira definição dada aqui. Os políticos praticam 
“atos de retórica”. Isto é, eles organizam o discurso para ser persua- 
sivo. Os estudiosos da retórica, contudo, procuram desvelar tais dis- 
cursos e perguntar por que eles são persuasivos, adotando assim a 
segunda definição de retórica. Isto parece simples, mas uma analo- 
gia, a partir de um contexto diferente, torna-se útil aqui para articu- 
lar mais claramente algumas fronteiras obscuras. Nós nos referimos 
àquelas pessoas que cometem crimes como criminosos. Aqueles que 
estudam os criminosos e seu comportamento são chamados de cri- 
minalistas. O discurso dos criminalistas, nas revistas de sociologia e 
direito, nunca é apresentado como um discurso de criminalidade. 
Na retórica, em contrapartida, é diferente. A grande questão é que 
os discursos retóricos podem ser analisados pelos retóricos e os re- 
tóricos são também responsáveis pela produção do discurso retóri- 
co. Isto parece se constituir em um problema de semântica, mas é 
também um tema metodológico bastante interessante. A que altura 
a “análise” da persuasão não se torna, ela mesma, persuasiva? Um 
exemplo imediato é o texto que você está lendo agora. Até que 
ponto não estarei eu apresentando algumas regras básicas para 
análise retórica, e até que ponto não estarei tentando persuadir 
você de que a análise retórica é um instrumento valioso de análise 
social? Esta questão da reflexividade surge em muitos métodos de 
pesquisa em ciência social, mas pode-se argumentar que ela é mais 
transparente aqui, no reino da retórica. Finalmente, há um sentido 
em que retórica é também uma cosmovisão, uma crença no poder 
da linguagem e do discurso, para estruturar fundamentalmente nos- 
so pensar, nossos sistemas de representação, e mesmo nossa percep- 
ção do mundo natural. Esta última questão traz a análise retórica 
bem próxima da análise ideológica, da análise ética e de outros enfo- 
ques da teoria social. 

Ao colocarmos em cena a análise da persuasão, ou retórica II, é 
útil alguma fundamentação para esta área. Foram os clássicos gre- 
gos aqueles que, por primeiro, se interessaram em analisar discursos 
para saber por que eles eram persuasivos, e fizeram isso tanto para a 
fala, como para a escrita (Cole, 1991; Poulakis, 1995). Tanto Aristó- 
teles como Platão não só se interessaram por esta arte, mas também 
em distinguir a “boa” da “má” retórica, e em criar categorias de dis- 
curso persuasivo e regras para se fazer uma “boa” retórica. Na ver- 
dade, o clássico argumento sobre boa versus má retórica está subja- 



— 294 




12. ANÁLISE RETÓRICA 



cente aos diálogos de Platão. É também Platão quem começa a falar 
sobre retórica como se ela fosse um assunto “contaminado”. Algu- 
mas das preocupações centrais de Platão infeccionam a análise da 
retórica até os dias de hoje. Primeiro, Platão sugere que a retórica é, 
até certo ponto, diferente da “verdade”. Isto é, o que as pessoas fa- 
lam no seu mundo da vida pode não ser como as coisas realmente 
são no mundo das idéias. Esta noção continua conosco e nos torna 
céticos diante de indivíduos que tentam nos persuadir a aceitar um 
ou outro ponto de vista. Em segundo lugar, Platão afirma que a retó- 
rica não poderia ser ensinada. Esta afirmação foi uma resposta a um 
grupo de professores, chamados sophistai (sofistas), que afirmavam 
serem capazes de ensinar aos jovens estudantes a habilidade de falar 
persuasivamente, bem çomo de analisar as falas de outros com res- 
peito a técnicas bem ou malsucedidas. Platão sustentava a posição de 
que a retórica não podèria ser ensinada, porque a “boa retórica” es- 
tava relacionada com a virtude pessoal. Se a pessoa não fosse virtuo- 
sa, ela nunca poderia, então, ensinar a retórica como uma arte, nem 
poderia sua análise chegar jamais a alguma coisa. 

Os romanos continuaram com um interesse no discurso persua- 
sivo e no ensino da retórica, criando esquemas e nomes elaborados 
para estratégias retóricas. Seu legado nos deixou “manuais de retó- 
rica”, que descrevem e interpretam figuras de linguagem, padrões 
gramaticais e dimensões estéticas que tornam as falas e os textos 
atrativos. Desde os tempos clássicos, passando pelo período medie- 
val, a retórica foi uma disciplina central, ensinada juntamente com a 
gramática, a dialética e depois a aritmética e a geometria. Mas isso 
tinha de mudar: durante o Iluminismo, a retórica passou a ser ataca- 
da tanto como uma prática, bem como uma disciplina. A criação da 
Sociedade Real da Inglaterra foi marcada pelo motto de Francis Ba- 
con, nullius in verba (nada nas palavras), e as novas “ciências” deverí- 
am evitar qualquer traço de floreios retóricos, incluindo metáforas, 
analogias e elementos de fala elegantes (Montgomery, 1996). A pre- 
ocupação central de Bacon, em sua desaprovação da retórica, era 
afastar-se do escolasticismo da geração anterior, que se fundamenta- 
va em textos de personagens antigos e da Renascença, tais como 
Ptolomeu e Paracelsus. Conforme Bacon, o escolasticismo estava 
fundamentado na retórica dos antigos sem nenhuma nova observa- 
ção e indução a partir da obseivação. Dessa maneira, a ciência deve- 
ria ser “não retórica”. A análise retórica, contudo, continuou a ser 
popular nas disciplinas humanísticas e na teologia até o século vinte. 



— 295 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A consciência dessa tradição é importante no caso da retórica, pois, 
como uma disciplina, ela teve perto de 2500 anos para desenvolver 
refinamento metodológico e diversidade. 

Objeto de análise 

Somos, de súbito, como que atirados a um pântano, quando nos 
defrontamos com a tentativa de encontrar o “objeto” da análise retó- 
rica. Tradicionalmente, a análise retórica criticou discursos orais, 
tais como os dos tribunais, dos parlamentos e da arena política, ou 
mesmo discursos orais, como discursos de boas-vindas ou de crítica 
violenta. Sendo que estes discursos orais são, nos dias de hoje, nor- 
malmente apresentados por escrito, ou são até mesmo sustentados 
por documentos escritos, a análise retórica escolheu fontes documen- 
tárias, bem como fontes orais, nas quais poderia fazer uso de seus mé- 
todos. As contribuições recentes da semiótica abriram também uma 
porta para a análise de imagens, comunicação não verbal, gestos e até 
mesmo para a localização de objetos dentro de edifícios, e a semiótica 
apregoa uma afinidade com a análise retórica (Eco, 1979). O objeto 
tradicional da análise retórica é também a persuasão. Falando histori- 
camente, o objeto de análise foi sempre abertamente persuasivo, mas 
desde o esclarecimento teórico trazido pela ideologia e por outras 
formas mais sutis de coesão social, a análise retórica pôde, com facili- 
dade, lidar com discursos que reivindicam ser objetivos (isto é, reivin- 
dicar ser objetivo é, em si mesmo, um ato retórico). O contexto do dis- 
curso deve ser o primeiro ponto a ser levado em consideração ao se 
embarcar em uma análise retórica, seja ao escolher um discurso oral, 
uma imagem ou um documento escrito, um discurso abertamente 
persuasivo tais como discursos políticos ou publicitários, ou ao lidar- 
mos com textos que contenham uma persuasão mais oculta, como 
um artigo científico ou um artigo de jornal. 

Afirma-se freqüentemente que a análise retórica pressupõe que 
a retórica é produzida por um orador (retor) competente, conscien- 
te, que organiza seu discurso de acordo com conjuntos de regras for- 
malizadas. Esta retórica é dirigida para um público específico, que é 
persuadido pelos argumentos apresentados e oferece algum sinal 
nessa direção (classicamente, uma mudança de comportamento, ou 
opinião). Retórica, nessa visão até certo ponto empobrecida, recu- 
pera, então, as intenções do locutor, ou autor, desvela os sistemas de 
regras que organizam o discurso, e avalia a eficácia da persuasão 



— 296 — 



1 2. Análise retórica 



pretendida, através do efeito sobre o público. Embora uma análise 
possa ser apresentada dessa maneira, há aqui vários perigos. O mais 
importante é que tal prática trata a análise de discurso como mera- 
mente o oposto da construção do discurso, e supõe que os processos 
de construção são recuperáveis, e que os contextos de recepção são 
transparentes. Ainda mais, essa atitude para com a análise cai na fa- 
lácia intencionalista. Isto é, nós tomamos a análise retórica como a 
reconstrução da intenção dos autores e locutores, e consideramos a 
intenção como estando “atrás” das mudanças de comportamento, 
ou da atitude, dos públicos; nós procedemos como se “intenções” de 
autores possam ser preditas através de seus textos ou desempenhos 
orais. Este é um perigo de muitos tipos de análise, e especialmente 
um que prejudicou de modo especial a análise retórica. 

A maneira mais fácil de evitar esse perigo é analisar discursos 
“cotidianos”, ou “naturais”, e não os produzidos pelas metodologias 
da ciência social. Vejamos, por exemplo, os perigos de analisar um 
conjunto de textos produzidos a partir de uma entrevista realizada 
por algum pesquisador. Embora tal texto possa ser persuasivo e be- 
neficiar-se da análise retórica, pode ser considerado como “fazendo 
uma segunda conjetura” sobre o impacto persuasivo da afirmação 
de qualquer pessoa. Torna-se muito difícil discernir as intenções do 
entrevistador, as intenções do entrevistado e a contribuição persua- 
siva de qualquer outra observação. Além disso, os argumentos não 
devem ser julgados pelo seu valor persuasivo potencial com referên- 
cia ao analista. Eles devem sempre ser julgados em relação ao con- 
texto e à totalidade do discurso. 

Sendo que a retórica analisou tanto textos escritos, como desem- 
penhos orais, existe grande confusão sobre onde a análise retórica 
termina e onde começa algum outro tipo de análise. Isso se tornou 
um problema interessante à luz da interdisciplinaridade e dá assim 
chamada “virada lingüística”, na filosofia e nas ciências sociais 
(Rorty, 1979). Ao considerar o objeto de estudo de muitas ciências 
sociais, e mesmo da filosofia, tal objeto se tornou cada vez mais um 
objeto lingüístico. Torna-se muito difícil, portanto, dizer, por exem- 
plo, se a retórica é um termo suficientemente amplo para incluir 
algo como uma “análise ideológica”, ou se ela é algo totalmente dife- 
rente - e muitos teóricos e pesquisadores possuem pontos de vista 
divergentes sobre esse ponto (Gross &: Keith, 1997). Um breve 
exemplo mostra essa dificuldade. Ao ler um texto político, um estu- 
dioso que faz análise retórica irá procurar os meios possíveis de per- 



— 297 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



suasão localizados dentro do texto. Um desses meios de persuasão é 
apresentar argumentos com os quais o público pode já estar de acor- 
do a fim de criar um sentido de identidade entre o suposto autor e a 
suposta audiência. Tais compromissos políticos partilhados podem 
operar ao nível da ideologia. Deveria, então, a análise retórica evitar 
comentários sobre esses argumentos? Alguns estudiosos pensam 
que não. Este é um exemplo simples e bastante direto. A maioria dos 
textos não apresenta maneiras tão simples de pensar a relação entre 
ideologia e persuasão. Mas, cada vez mais, os estudiosos estão se sen- 
tindo mais à vontade com respeito a tais fronteiras obscuras, mesmo 
em termos de metodologia (N elson et al . , 1 987). A medida que a ten- 
dência à interdisciplinaridade parece prosseguir a passo acelerado, 
nas ciências sociais e humanísticas, os estudiosos se sentem à vonta- 
de afirmando que eles usam métodos retóricos com respeito à “aná- 
lise do argumento”, ou consideram a retórica como um texto parti- 
cular para discutir ideologia, ou mesmo que eles usam métodos se- 
mióticos como parte de um enfoque retórico para analisar filmes e 
outros materiais da mídia (Martin & Veel, 1998). 

Antes, porém, que este enfoque universal com respeito à meto- 
dologia e à disciplinaridade nos leve a acreditar que, nas palavras de 
Paul Feyerabend, “vale tudo”, há uma tradição, no que diz respeito à 
retórica, que tem dificuldade em sentar-se com as ciências sociais. 
Sendo que a retórica é uma arte clássica, ou techne, sua atitude histó- 
rica com respeito à produção de conhecimento fica muito mais à 
vontade com a crítica literária, do que com a sociologia. Alguns estu- 
diosos iriam mesmo argumentar que a retórica produz conhecimen- 
to não diferente do produzido por um poema ou uma pintura, e que 
a análise dessas formas de produção de conhecimento é feita de ma- 
neira melhor pela história da arte, ou pela crítica literária, do que 
pelas ciências sociais. Embora essas sejam questões gerais sobre a ati- 
tude diante de um objeto de pesquisa, é importante levá-las em con- 
sideração quando se pensa sobre métodos. O objetivo da retórica 
nunca é ser científica, ou ser capaz de categorizar a persuasão para 
todos os tempos e para todos os lugares. O poder da análise retórica 
é sua proximidade, sua habilidade de falar sobre o particular e o 
possível, não sobre o universal e o provável. E isso nos leva de volta 
às preocupações específicas de Platão e de Bacon sobre retórica. Se 
alguém pode analisar um texto a partir de seus méritos persuasivos, 
que reivindicações pode alguém fazer sobre o conhecimento produ- 
zido? Bacon diria que não nos leva a lugar algum, pois não podemos 



— 298 — 




12. Análise retórica 



produzir mais conhecimento a partir de apenas um texto. Platão po- 
deria se preocupar com o fato de que apenas a análise dos meios 
acessíveis de persuasão não nos aproxima de nenhuma verdade uni- 
versal. Desse modo, embora o enfoque retórico possa ser usado em 
conjunto com muitos tipos de metodologias das humanidades e da 
ciência social, a atitude fundamental que a retórica sugere provém 
de sua tradição de ser uma arte e não uma ciência. 

A situação retórica 

Com estas questões gerais em mente, retornemos à questão-chave 
de como evitar perigos ao se fazer um análise retórica e mostrar que o 
problema passa a ser como dizer algo com sentido na análise, sem 
pressupor os processos que primeiramente construíram o discurso. É 
aqui onde os contextos do discurso se tornam importantes. O que se 
segue são algumas questões orientadoras e categorias que devem ser 
levadas em consideração quando olhamos para uma imagem, ouvi- 
mos um discurso ou lemos um texto e pensamos sobre ele a partir de 
uma dimensão retórica. Estas categorias começarão a dar corpo aos 
aspectos quem/ o que/ onde/ quando/ por que da análise retórica de 
uma maneira concreta (Bitzer, 1 968). O que é notável nessas catego- 
rias é que elas existem há mais de 2000 anos, primeiro como métodos 
com os quais se devia exercitar o discurso, e depois, via Aristóteles, 
como um modo de examinar a estrutura de discursos particulares. 

Exigência 

Nas palavras de Bitzer (1968), “toda a exigência é uma imperfei- 
ção marcada pela urgência; ela é um defeito, um obstáculo, algo es- 
perando para ser feito, uma coisa que é outra do que deveria ser”. A 
retórica responde a essa exigência. Ao fazer uma análise retórica, 
pois, é crucial identificar a exigência da retórica necessária no mo- 
mento. Isto situa a análise e garante que a análise seja contextualiza- 
da. Para seguir contextualizando a retórica, a boa análise retórica 
responde ao que os gregos clássicos chamaram de kairos e phronesis. 
Traduzido de maneira vaga, kairos é a dimensão de tempo de um 
texto persuasivo; phronesis é a conveniência de um texto persuasivo 
específico. Um exemplo recente, em um contexto claramente públi- 
co, indica a necessidade de atenção para esses aspectos. Um analista 
poderá querer analisar o discurso da Rainha à nação, após a morte 
repentina da princesa Diana, uma exigência marcada por luto públi- 



— 299 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



co. Seguramente essa análise sofreria severas restrições caso não le- 
vasse em consideração o clamor público para que a Rainha fizesse 
uma declaração, o que ela ignorou e que, em última análise, expli- 
cou a resposta que ela recebeu do público. Isto é, o discurso da Rai- 
nha não teve um senso do kairos. Ele foi tão extemporâneo como a 
morte não esperada: uma ocorreu muito cedo, o outro muito tarde. 
Do mesmo modo a Rainha foi imediatamente condenada, depois 
dessa fala, como sendo “sem sentimento e fria”. Isto é, o público se 
deu conta de que houve algo inapropriado na fala da Rainha sobre a 
Princesa, depois de sua morte: faltou um senso dephronesis. Além de 
ter em mente o contexto e prestar atenção ao público, a considera- 
ção desses dois conceitos ajuda a construir um elo entre o texto, o 
contexto e o público. 

O público 

Os desempenhos orais têm uma característica própria: seu pú- 
blico é próximo e, de algum modo, mais identificável. Os textos e 
formas de comunicação de massa, contudo, não estão em uma rela- 
ção semelhante a um público próximo e identificado. Por exemplo, 
ao ler um texto, o público desses meios não permanece, necessaria- 
mente, preso ao próprio texto. Podemos ver, contudo, nos textos, 
maneiras de posicionar os leitores, ou “criar” um público. Tome- 
mos, por exemplo, um artigo científico que possa aparecer na revis- 
ta Nature. O texto e seu conteúdo tratam os leitores de modo muito 
particular como um público. A linguagem especializada, as conven- 
ções na citação, a estrutura do texto com seções ordenadas e a rela- 
ção entre diagramas e o texto, tudo isso seleciona um determinado 
público de leitores, bem como o posiciona de determinado modo. 
Por exemplo, o público pode ser tratado como cético, como cientis- 
tas possivelmente interessados em reproduzir os resultados de um 
experimento, ou mesmo, como em artigos de revista, como inician- 
tes em uma determinada área. Desse modo, embora o público nem 
sempre permaneça necessariamente preso ao texto, este, retorica- 
mente, trata seu público de maneira tal que pode ser discernida 
através da análise. 

Tipos de discurso persuasivo: teoria da estase 

Olhando para o discurso persuasivo, os teóricos da retórica iden- 
tificaram três gêneros persuasivos, ou estases: o forense, o delibera- 



— 300 — 



1 2. Análise retórica 



tivo e o epidêitico (Gross, 1990; Fahnestock, 1986). Estes são catego- 
rizados a partir do objetivo, do público, da situação e do tempo. A 
retórica forense é a retórica dos tribunais, onde a discussão se centra 
na natureza e na causa de acontecimentos passados. Os interlocuto- 
res devem persuadir um terceiro grupo de que sua explicação dos 
acontecimentos passados é uma explicação “verdadeira”. A retórica 
deliberativa é encontrada na arena da política, onde o debate se cen- 
tra no melhor rumo possível de uma ação futura. Esta persuasão é 
orientada para o futuro e muitas vezes especulativa. A retórica epi- 
dêitica está centrada em temas contemporâneos e na avaliação de se 
determinado indivíduo ou acontecimento merecem louvor, são cul- 
pados ou devem ser censurados. As formas clássicas de retórica epi- 
dêitica são orações fúnebres e cerimônias de premiação. A utilidade 
da teoria da estase é a de classificar um discurso por seu gênero per- 
suasivo e ajudar a organizar a análise de acordo com determinados 
critérios. Além disso, muitos discursos persuasivos participam em 
mais de uma estase, ou gênero, de tal modo que a identificação de 
cada argumento por tipo é um exercício útil. 

Partes da retórica 

Tradicionalmente, quando um analista começa a discutir a retó- 
rica, ele deve levar em consideração os cinco cânones da retórica. O 
campo da persuasão, ou retórica, foi adequadamente dividido por 
Cícero, por razões pedagógicas, especificamente para o ensino da 
arte da persuasão, ou Retórica I. Mas essas categorias podem ainda 
ser úteis. Primeiro, categorizar o discurso persuasivo por estases, e 
então analisar os cinco cânones. Cada cânone pode ser subdividido 
em ainda outras categorias. 

Invenção 

Os estudiosos da retórica medieval fizeram uma clara distinção 
entre o conteúdo e a forma ( res e verba). Os primeiros teóricos da re- 
tórica pensaram que se deveria primeiro delinear claramente o con- 
teúdo de um discurso, e depois olhar cuidadosamente para seu esti- 
lo, organização e elementos estéticos. Mas os estudiosos contempo- 
râneos acham que as categorias clássicas, embora ainda úteis, supu- 
nham que a forma como a comunicação se dá, era muito menos im- 
portante do como nós pensamos hoje. Na verdade, alguns afirma- 
ram que a forma da comunicação determina os argumentos que de- 



— 301 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



vem ser feitos. Esses tipos de discussão são encontrados quando se 
examina aquele campo da retórica chamado “invenção”. As ques- 
tões centrais que são invocadas pela análise retórica nesse cânone 
são aquelas que têm a ver com a questão da origem dos argumentos 
ou, de maneira mais clássica, como os oradores inventam argumen- 
tos em relação a determinados objetivos. 

Ethos : uma forma de argumentação persuasiva se fundamenta no 
estabelecimento da credibilidade do autor, ou locutor. Embora quem 
seja o autor não torne um argumento mais ou menos válido, formas 
sutis de persuasão jogam com relações de poder, presentes nos tex- 
tos. Tomemos, como um breve exemplo, a autoria e a referência ci- 
entíficas. O final do século vinte constatou uma crescente proemi- 
nência dada aos “primeiros” autores de artigos científicos; aqueles 
que são citados por primeiro e cujos nomes, por conseguinte, apa- 
recem em primeiro lugar nos índices de referências. Embora a re- 
visão formal por pares possa ignorar o nome do primeiro autor, os 
leitores das comunidades científicas não procedem assim. Portan- 
to, certos autores possuem um ethos para apresentar afirmações 
mais fortes que outros. 

Pathos: uma outra forma de argumentação persuasiva é o apelo à 
emoção. A publicidade está cheia de exemplos desse tipo de argu- 
mentação. Formas que são menos percebidas, contudo, incluem o 
apelo para aplicação em pesquisa médica. O apelo chamativo para 
“mais pesquisa é necessária”, é extremamente persuasivo quando 
são mencionados aplicações para curas, ou remédios para doenças 
dolorosas, ou aplicações na saúde para crianças. 

Logos: a palavra grega logos fornece a radical básica para nossa 
palavra “lógica”. Parte do campo da retórica consiste no exame de 
como os argumentos lógicos funcionam para nos convencer de sua 
validade. Esta questão está estreitamente relacionada com a discus- 
são que segue abaixo, sobre disposição. Embora as pessoas conside- 
rem hoje certas formas de lógica persuasivas, textos históricos indi- 
cam que públicos mais antigos não teriam considerado tais formas 
de lógica persuasivas. Isto está também relacionado com a discussão 
da retórica III, ou a cosmovisão retórica sob a qual o discurso opera. 
Pensar o logos dessa maneira traz também à mente o poder do dis- 
curso em conformar, ou construir, determinadas cosmovisões. Embo- 
ra Aristóteles pensasse estar no centro do universo, e argumentasse 
de maneira coerente com essa visão, esse princípio estruturante da 



— 302 — 



1 2. ANÁLISE RETÓRICA 



lógica aristotélica se perdeu para nós no Ocidente, enquanto que 
outros tomaram seu lugar. 

Estes três elementos - ethos, pathos e logos - são ingredientes es- 
senciais para explorar o contexto como um primeiro passo para a 
análise retórica. Eles fornecem formas de argumentação que estão 
presentes em diferentes tipos de discurso persuasivo. São formas in- 
trodutórias a partir das quais os argumentos persuasivos podem ser 
criados ou desenvolvidos. Mas há muitos métodos para se avançar e 
analisar ainda mais o discurso dentro da estrutura dos cinco cânones 
clássicos ou partes da retórica. 

Disposição 

Este cânone retórico explora como o discurso está organizado. 
Com que lógica ele fundamenta suas reivindicações básicas? Como 
a organização da obra está relacionada com o argumento que ela 
defende? Os artigos jornalísticos são normalmente escritos em 
uma forma que é, às vezes, chamada de “pirâmide invertida”, co- 
meçando com uma frase que nos diz “quem, o que, onde, quando e 
por que”, e terminando com detalhes. Que efeito pode esse tipo de 
organização ter sobre o público? Poderá tal característica organiza- 
cional realmente nos persuadir de que algumas coisas são mais im- 
portantes que outras? 

Estilo 

Falamos, na linguagem comum, como se o estilo fosse algo ex- 
trínseco ao discurso, algo que pode ser substituído a bel-prazer. E 
importante considerar o estilo como uma parte intrínseca ao discur- 
so, como uma dimensão complexa da relação entre forma e conteú- 
do. Os discursos são freqüentemente persuasivos devido a seu estilo 
que, não há dúvida, está relacionado com o contexto. A poesia, por 
exemplo, é escrita em um estilo que pode persuadir, em determina- 
do contexto, um amante, do amor de outro amante. A apresentação, 
simplesmente, de um artigo em um estilo criteriosamente científico, 
diante de um comitê consultivo, possui um efeito persuasivo, pois o 
estilo do discurso sugere objetividade. Podemos considerar, tam- 
bém, o documento científico, um dos discursos mais altamente estili- 
zados da cultura contemporânea. Observe a ausência da primeira 
pessoa. Este é um estilo convencional adotado. Ele funciona para 



— 303 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



nos persuadir que ninguém pode, na verdade, executar ação alguma 
que o texto descreve; o “eu” não necessita estar presente. Documen- 
tos legais são persuasivos apenas quando estão assinados. Eles ado- 
tam um estilo de apresentação onde o leitor pode encontrar um es- 
paço vazio, no qual deve assinar seu nome, depois de ler. O autor de 
obituários, contudo, é persuasivo somente quando adota um estilo 
de intimidade pessoal. Imagine um colunista de obituários adotan- 
do um estilo científico e omitindo o pronome da primeira pessoa; a 
persuasão fica fortemente prejudicada! 

Ao lado desta noção de estilo, contudo, as convenções formam 
um ritual elaborado dentro do discurso. Além disso tudo, há conven- 
ções de interpretação, recepção, leitura e escuta, bem como convenções 
de como escrever, falar e representar. Tomemos o exemplo dos tele- 
jornais. As notícias são uma forma altamente ritualizada de discurso. 
As famílias e comunidades têm seus programas favoritos de notícias, 
aos quais elas assistem sem falta, um ritual de tempo que marca o co- 
meço ou o fim do dia. Elas possuem convenções sobre a maneira 
como assistir às notícias: podem assisti-las de maneira ritual, com 
um ar de distração, enquanto passam ferro em uma camisa, tomam 
o café da manhã ou examinam o correio. O próprio programa de 
notícias é altamente ritualizado, com apresentadores relativamente 
constantes, segmentos ordenados e tipos de argumentação. Neste 
sentido, olhar notícias se torna mais parecido com uma peça teatral 
complexa, do que com uma transmissão de informação. Tal fato 
possui um impacto importante na análise retórica. Estes rituais e 
convenções definem fronteiras e limites, tanto para a criação, como 
para a recepção do discurso. Houve um episódio famoso, na televi- 
são dos Estados Unidos, quando um apresentador afastou-se do al- 
cance das câmeras, a fim de tornar conhecida sua posição sobre de- 
terminado assunto. Tal ato não foi, evidentemente, bem-sucedido, 
pois a confusão permaneceu, tanto no estúdio, como para o público. 
Uma prática assim não pertencia ao ritual do que deveriam ser notí- 
cias televisivas. A persuasão do ato não foi bem recebida, pois ela 
não pôde ser entendida dentro dos limites do discurso. 

“O que, então, podem os recursos retóricos causar?”, perguntou 
Longinus. Sua resposta é bastante surpreendente: “Bem, eles são ca- 
pazes, de diferentes maneiras, de infundir veemência e paixão nas 
palavras faladas e, de modo particular, quando combinados com as 
passagens argumentativas, não apenas persuadem o ouvinte, mas na 
realidade o tornam seu escravo” ( On the Sublime, XV, 9). Esta quali- 



— 304 — 



1 2. Análise retórica 



dade que os recursos retóricos possuem de criar escravos é uma di- 
mensão importante da análise dos textos. O que se quer significar 
por “recursos retóricos” é o emprego de linguagem figurativa. 
Alguns manuais de retórica do período medieval listam centenas de 
usos e categorias de linguagem figurativa. Aqui, nós examinaremos 
duas: a metáfora e, por associação, a analogia; a metonímia e, por 
associação, a sinédoque. Estes são dois dos tropos mais comuns que 
aparecem no discurso, e possuem funções bastante persuasivas. 

Metáfora e Analogia: analisar metáforas foi uma segunda natureza 
para analistas retóricos, desde Platão. A noção de que as metáforas 
podem “transferir” {meta pherein) sentido de um conceito a outro, 
como um auxílio para nossa compreensão e descrição, bem como ser 
um instrumento persuasivo, provém dos antigos gregos. Neste senti- 
do, a metáfora tem a função de criar uma analogia entre dois concei- 
tos. Quando Burns diz “meu amor é como uma rosa vermelha verme- 
lha brotada recentemente em junho”, ele transfere o sentido associa- 
do com a rosa à noção de amor, indicando paixão, um sentido de algo 
novo e de veracidade. Este uso da metáfora é comum na poesia e lite- 
ratura criativa, mas está também presente em muitos discursos persu- 
asivos e na ciência. O exemplo que segue provém de uma análise retó- 
rica feita por Evelyn Fox Keller (1995), que escreveu extensamente 
sobre metáfora nas ciências biológicas e como elas nos convencem, 
bem como fornecem modelos heurísticos para nosso pensar. 

Keller conta a história do termo “informação”, e como ele foi 
empregado metaforicamente. Claude Shannon, um matemático, se 
apropriou do termo e o definiu como uma medida precisa da com- 
plexidade dos códigos lineares. Logo depois, muitos outros mate- 
máticos, cientistas da computação e analistas de sistema se interessa- 
ram naquilo que eles chamaram de “teoria da informação”, que foi 
caracterizada como o ponto culminante em ciência e tecnologia. Os 
sistemas passaram a ser classificados pelo quanto de informação eles 
“continham” - um afastamento da descrição da informação como 
uma qualidade, levando à descrição da informação como uma coisa. 
Os biólogos entram, então, em cena. Em um texto famoso, Watson & 
Crick escreveram, em 1953, que eles tinham descoberto a “base da 
vida” “em uma longa molécula. ...parece provável que a seqüência 
precisa de bases [DNA] é o código que carrega a informação genéti- 
ca” (Watson, 1968). Nesta sentença aparentemente técnica, Watson 
& Crick transferiram a informação como uma medida da moda para 
um contexto biológico e atribuíram o sentido ao DNA. Muitos gene- 



— 305 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



ticistas objetaram que esse uso da “informação” como um termo téc- 
nico era incorreto e inapropriado para uma compreensão matemá- 
tica da complexidade do DNA; mas o termo se firmou, e nós agora 
falamos muitas vezes da informação codificada na molécula do DNA. 
Nesse caso, “informação” é uma metáfora que foi usada persuasiva- 
mente por Watson & Crick, para emprestar um sentido de comple- 
xidade, novidade e rigor matemático ao seu trabalho. 

Tais empregos da metáfora são muito comuns, muito sutis e 
muito complexos Assim, pois, além de olhar para metáforas mais 
óbvias tais como “no exame final, os estudantes pegaram fogo”, nós 
devemos esquadrinhar metáforas mais complexas. Embora o exem- 
plo técnico apresentado acima seja bastante difícil de ser reconheci- 
do por não especialistas, as metáforas existem em muitos níveis e em 
todos os discursos. Muitos filósofos e semióticos sugerem até mesmo 
que nossa relação fundamental com a linguagem é metafórica (para 
maior discussão sobre essa afirmação radical, ver Gross, 1990). 

Metonímia e Sinédoque: são figuras de linguagem onde a parte está 
para o todo. Há muitos exemplos disso na linguagem cotidiana. Quan- 
do dizemos às pessoas, em reuniões formais, para “dirigir os comen- 
tários para a cadeira”, nós claramente não queremos dizer que eles 
devam falar para o móvel em que o líder da discussão está sentado, 
mas à pessoa que está sentada na cadeira. Este emprego da lingua- 
gem funciona a níveis muito complexos. Ele nos permite transferir 
atributos e características de uma coisa a outra. Nesse sentido, possui 
uma relação estreita com a metáfora. Ele funciona também junta- 
mente com apelos ao pathos. Por exemplo, um artigo recente de jor- 
nal se referiu ao grande caos que aconteceria na Inglaterra “se a co- 
roa fosse perdida”. A preocupação parece não se referir à perda das 
jóias e ouro da monarquia, mas à própria monarquia. Esse apelo à 
“coroa” se relaciona com um campo mais vasto da imaginação cultu- 
ral e a componentes tradicionais que o artigo invoca para excitar a 
emoção do público. 

Examinamos aqui alguns tropos, ou figuras de linguagem. Não 
há dúvida que eles funcionam para aprimorar nossa comunicação e 
que é até provável que sejam imprescindíveis; mas alguns estudiosos 
estão convencidos de que eles nos dizem algo profundo sobre a ma- 
neira como pensamos e a maneira como a própria linguagem fun- 
ciona (ver Fahnestock, 1999, para mais detalhes sobre o poder das 
figuras de linguagem). 



— 306 — 



1 2. ANÁLISE RETÓRICA 



Memória 

Este cânone analisa o acesso que o locutor possui ao conteúdo de 
sua fala. Nos tempos clássicos, os oradores eram julgados pela ex- 
tensão de suas falas, e se eles podiam fazê-las duas vezes exatamente 
iguais. Nos círculos teóricos atuais, existe um interesse renovado no 
aspecto cultural da memória e como discursos particulares recorrem 
a memórias culturais partilhadas pelos autores e pelos públicos (Lip- 
sitz, 1990). 

Apresentação 

Embora mais adequado aos discursos orais, este cânone explora a 
relação entre a propagação de um trabalho e seu conteúdo. Podemos 
imaginar o locutor que tem ethos falando sobre determinado assunto. 
Enquanto parte desse ethos se refira à maneira de criar uma argumen- 
tação, outra parte pode estar ligada à própria apresentação de sua 
fala. Isto pode também ser explorado textualmente ao se olhar dife- 
rentes padrões de propagação. O estilo de uma fala ou uma comuni- 
cação por e-mail, por exemplo, difere radicalmente, em determina- 
dos casos, de uma comunicação por escrito. A análise retórica pode 
usar essa categoria para investigar quais sejam estas diferenças. 

Forças e fraquezas da análise retórica 

Por sua própria natureza, a análise retórica é um ato discursivo: 
ela está produzindo argumentações sobre argumentações. A análise 
retórica, pois, está planejada para produzir seu efeito máximo em 
discursos completos, convencionais e com objetivos sociais. As falas 
de políticos, os editoriais de jornais e os discursos de advogados são 
fontes clássicas para análise retórica. Mas de igual modo, documen- 
tos oficiais cuidadosamente elaborados e discursos orais podem ser 
analisados retoricamente, com efeitos muito positivos. Entre eles se 
incluem a retórica da ciência, a retórica das ciências sociais e a retó- 
rica da economia. Estes discursos acadêmicos são, eles próprios, al- 
tamente profissionais e fazem uso de estruturas de argumentação 
clássica, apelos à emoção e apelos à credibilidade. Essas últimas su- 
gestões de se analisar textos nos leva, no contexto das ciências so- 
ciais, uma vez mais, à questão da reflexividade: por que não analisar 
nossos próprios textos a partir desses critérios, e avaliá-los para que 
alcancem os objetivos a que foram destinados? 



— 307 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A principal fraqueza da análise retórica é a amplitude de seus 
formalismos. Como se pode ver pelo que foi dito acima, a noção de 
que existem “cinco” cânones, com até mais categorias para uma aná- 
lise relacionada a eles, nos dá a impressão de uma elaborada cons- 
trução que deva ser aplicada em cada caso. Tal aplicação da análise 
retórica, contudo, seria inexeqüível e provavelmente desinteressan- 
te. Por isso, as ferramentas retóricas que alguém emprega para ana- 
lisar um texto podem diferir daquelas usadas na análise de outro 
texto. Em síntese, a análise retórica é uma arte interpretativa. A fra- 
queza, aqui, é que ela não adota a maioria dos critérios sociais cientí- 
ficos que enfatizam uniformidade na análise e consistência na apli- 
cação. Essa característica é, ao mesmo tempo, a maior força e a 
maior limitação da análise retórica: de um lado, ela é flexível e inter- 
pretativa; de outra parte, é inconsistente e sujeita aos carismas e às 
limitações do analista. 

Para uma qualidade na pesquisa qualitativa 

O que define qualidade na análise retórica? Embora responder a 
tal pergunta seja difícil para qualquer metodologia da ciência social, 
dada a história das discussões sobre esse tópico pelos sofistas, Platão, 
Aristóteles, Cícero, Vico e os pensadores do Iluminismo escocês, os 
comentaristas contemporâneos empalidecem só ao pensar em acres- 
centar suas próprias opiniões a esses grandes vultos do passado. 
Alguns aspectos, contudo, se apresentam com respeito àquilo que o 
campo da retórica reconhece como boa análise. De maneira absolu- 
tamente crucial, é a atenção séria dada ao público o que marca a aná- 
lise retórica na literatura. Devido ao fato de a noção de verdade, em 
muitas outras disciplinas, ser considerada como sendo universal 
para todos os tempos e lugares, tais disciplinas não necessitam dar 
atenção a públicos específicos, a tempos específicos e a lugares espe- 
cíficos. A retórica não pode dispor desse recurso. Ao contrário, o que 
é considerado persuasivo, ou mesmo “verdadeiro”, em um sentido 
pragmático, deve-se à recepção do texto, ou do ato discursivo, pela 
audiência em questão. A retórica não reivindica verdades universais, 
e por isso mede seus sucessos e fracassos pela constatação de se ela 
foi dirigida, ou mesmo persuadiu, ao público visado, em seu tempo e 
espaço reais. Por conseguinte, o conhecimento do público é central 
para qualquer discurso retórico. 

O segundo aspecto da qualidade, na análise retórica, se relacio- 
na com o primeiro. Na cultura ocidental contemporânea, onde a ciên- 



— 308 — 



12. Análise retórica 



cia e a filosofia “cientificizada” influenciam fortemente a agenda 
para uma produção de conhecimento, e para a aceitação desse co- 
nhecimento na cultura, tal noção de verdades específicas exigidas 
pela retórica soa estranha, exótica, e, poder-se-ia até dizer, irrele- 
vante. Mas se aceitamos a possibilidade de a verdade estar condicio- 
nada ao espaço e ao tempo, devemos, então, dar atenção especial ao 
particular e não ao geral. Tal análise retórica irá examinar o movi- 
mento e a influência de um único texto, talvez. E, a partir da análise 
retórica, não é possível generalizar para outros textos. O fato de de- 
terminada análise singular revelar um padrão em uma argumenta- 
ção, não significa que se deva esperar encontrar esse padrão nova- 
mente. Mas embora não seja possível generalizar para outros textos, 
por força da análise, é possível fazer afirmações normativas baseadas 
na análise em questão. Uma boa análise retórica freqüentemente 
não hesita em fazer afirmações normativas. Elas podem ser em for- 
ma de sugestões sobre como o discurso analisado não conseguiu per- 
suadir um público ou se conseguiu seu intento. Elas podem tomar a 
forma de prescrições sobre como outras formas de persuasão pode- 
riam evitar perigos específicos. Poderiam tomar a forma de críticas 
sobre os recursos persuasivos empregados; determinado público 
pode ser persuadido por argumentos que não têm sustentação. Elas 
podem assumir a forma de crítica da evidência, ou do status das afir- 
mações comprobatórias feitas em um texto. Esta é uma postura dife- 
rente da maioria dos outros métodos, com exceção da análise ideo- 
lógica. A descrição e a análise são normalmente consideradas 
“boas”, quando elas evitam sugestões normativas. A ausência de su- 
gestões normativas normalmente sugere um trabalho objetivo e sem 
viés. Mas os teóricos retóricos arriscam afirmar que a descrição é re- 
almente uma prescrição, sob um disfarce retórico. Reivindicar ser 
apenas “descritivo” e, conseqiientemente, objetivo, éuma estratégia 
persuasiva feita pelos cientistas sociais para garantir os direitos de 
chamarem o que eles fazem de ciência, diriam os teóricos mais radi- 
cais (ver Nelson et al, 1987, e a “Introdução ao projeto para a retóri- 
ca da investigação”, no citado volume, para exemplos dessa argu- 
mentação). Estes dois aspectos da boa análise retórica - a atenção ao 
particular e local, e a simpatia por conclusões normativas - a separa 
das muitas outras formas de análise e a torna até mesmo não-cientí- 
fica, de acordo com muitos referenciais da ciência social. 

Isto nos leva a fechar o círculo na definição de retórica. Nós dis- 
cutimos estratégias sob o título da Retórica II: a análise do discurso. 



— 309 



PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Poderá ser igualmente útil, contudo, discutir nossa própria produ- 
ção de discurso, quando fazemos uma análise. Bazerman (1988), em 
estudo já agora clássico, faz as seguintes sugestões concretas, quando 
se trata de uma aproximação retórica, a fim de manter uma vigilân- 
cia sobre nosso próprio discurso analítico, no campo das ciências hu- 
manas e sociais. 

Preste atenção em seus pressupostos fundamentais, objetivos e projetos 

A epistemologia, a história e a teoria subjacentes a um campo de estudo 

não podem ser separadas de sua retórica (Bazerman, 1988: 323). 

Seja qual for o campo específico de estudo em que você estiver 
pesquisando, é importante lembrar que esse campo estabeleceu li- 
mites sobre o que pode ser dito sobre certos tópicos e o que faz senti- 
do dizer. Seus projetos de pesquisa devem se conformar a esses limi- 
tes, ou questioná-los, a fim de que eles sejam “significativos”, isto é, 
compreendidos pelos que trabalham e pelos que pesquisam dentro 
desse campo. Seus pressupostos sobre o que é uma pesquisa e o que 
constitui uma pesquisa bem-sucedida se equiparam àqueles existen- 
tes dentro do campo? Estes pressupostos podem, eles próprios, se- 
rem analisados retoricamente (como nós vimos com livros-texto in- 
trodutórios), mas você deve ter clareza sobre como sua própria retó- 
rica e estratégias de argumentação se equiparam àquelas do campo 
onde você está trabalhando. 

Leve em consideração a estrutura da literatura, a estrutura da comunida- 
de e seu lugar em ambas 

Quando você procurar escrever ou apresentar seus resultados, 
ou suas situações de pesquisa, a literatura de seu campo de estudo já 
está colocada ao redor de você. Existe uma literatura anterior que 
deve ser consultada; há um estilo retórico com o qual ela deve ser 
tratada (para questões mais específicas sobre esse tema ver Swales, 
1983). Quando você começa a contribuir para a literatura, seu traba- 
lho deve levar em conta a exigência retórica estabelecida. A fim de 
poder contribuir, então, você deve conhecer a literatura através de 
leituras. Como mostra Brazerman, tomar conhecimento da literatu- 
ra, através do desenvolvimento de um esquema de quais os proble- 
mas que a disciplina já discutiu, o que a disciplina aproveitou, para 
onde se orienta, quais os principais atores e como essas coisas se re- 
lacionam com seu próprio projeto, podem ajudá-lo a integrar seu 



— 310 — 



1 2. ANÁLISE RETÓRICA 



trabalho com o trabalho de campo. Uma estratégia para ajudá-lo a 
fazer isso na introdução de seu trabalho, é criar uma rede intertextu- 
al, onde você liga os temas que são centrais a seu projeto com os te- 
mas centrais a outros projetos no campo. 

Leve em consideração seus instrumentos investigativos e simbólicos 

Mesmo que sua pesquisa tenha desenvolvido alguns resultados 
significativos através do emprego de boa metodologia e instrumen- 
tos investigativos, seus instrumentos simbólicos devem estar igual- 
mente presentes na tarefa. Isto sugere que as reivindicações que 
você faz sobre suas investigações devem ser apoiadas por bons argu- 
mentos. O argumento tende a se fundamentar na qualidade e no ca- 
ráter da evidência. O modelo mínimo de Toulmin (1958) é um bom 
começo para testar sua própria habilidade para construir argumen- 
tos com os quais os interlocutores podem se engajar sem descar- 
tá-los de imediato. Você tem, contudo, muitos outros instrumentos 
simbólicos e retóricos à sua disposição. Além de discernir os argu- 
mentos comuns feitos dentro de seu próprio campo, a reflexão sobre 
o uso dos argumentos em outros campos é também útil. 

Leve em consideração o processo de construção de conhecimento 

Quando nós começamos a fazer pesquisa, somos levados a pen- 
sar sobre as suas finalidades - que vantagens e objetivos teremos. 
Mas certa preocupação com os processos que iremos empregar para 
consegui-los, é igualmente importante. Prestar atenção sobre a ma- 
neira como vamos descrever, relatar ou discutir nossos resultados, à 
medida que realizamos a pesquisa, pode ser extremamente útil, e 
permitir-nos imaginar a amplitude das possíveis características que 
ela poderá assumir. Do mesmo modo, a antecipação de como nossa 
investigação poderá ser recebida por outros pode ajudar-nos a cons- 
truir as limitações dentro das quais nosso trabalho será recebido. 

Um exemplo de análise 

Um exemplo clássico de análise retórica foi dado por Jeanne 
Fahnestock (1986). Fahnestock começa afirmando que todo discur- 
so possui um elemento persuasivo, até mesmo o discurso científico. 
Esta afirmação não é aceita por todos, mas ela constitui a base ou o 
pressuposto fundamental do trabalho de Fahnestock. Na verdade, a 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



partir de sua posição de professora que ensina como se escreve tec- 
nicamente, ela conhece em primeira mão os problemas que os cien- 
tistas e os engenheiros enfrentam quando tentam persuadir seus pú- 
blicos. Partindo dessa situação concreta, ela também mostra que a 
persuasão, no discurso científico, não termina dentro da comunida- 
de científica. De fato, em termos de produção de conhecimento so- 
bre ciência, o discurso científico procura também persuadir públicos 
leigos. Desse modo, a partir dessas posições básicas reflexivas e re- 
fletivas Fahnestock coloca o fundamento para uma análise retórica 
do discurso científico, na medida em que ela passa da comunidade 
científica, para a imprensa popular. 

Os instrumentos simbólicos da análise retórica são desenvolvi- 
dos em relação a dois tipos muito particulares de texto, que são or- 
ganizados em pares, para facilitar a análise. O primeiro texto em 
cada par é da revista científica, em que a pesquisa original é relata- 
da. O segundo texto em cada par é o que Fahnestock chama de escri- 
ta científica “adaptada”: esses textos provêm de uma revista popular 
de divulgação científica. Por exemplo: 

la) Nenhuma outra fonte de proteína é usada por T. hypogea, e as 
estruturas de transporte do pólen foram perdidas, tornando essa es- 
pécie obrigatoriamente necrófaga (Roubik, Science, 1982, p. 1059). 

lb) Embora outras abelhas tenham dentes, essa é a única espécie 
que não pode carregar pólen (“Vulture bees”, Science 82, p. 6) 

O primeiro texto provém da revista científica americana Science 
e o segundo de sua contrapartida popular. Para contextualizar sua 
análise, Fahnestock considerou primeiramente a situação retórica 
desses dois textos, notando o crescimento massivo da leitura de ciên- 
cia popular, a proliferação de escritores de ciência popular e até 
mesmo o crescimento do número de revistas científicas dirigidas aos 
próprios cientistas. Além disso, uma análise feita por sociólogos e es- 
tudiosos literários fornece alguma informação contextuai para sua 
análise retórica. A partir dessa “situação retórica”, Fahnestock pro- 
põe que sua análise retórica irá mostrar três temas relacionados: 

[primeiro, sobre a] transferência no gênero que ocorre entre a 
apresentação original do trabalho de um cientista e sua populari- 
zação, segundo, sobre a mudança em “tipos de afirmações” que 
ocorrem quando se dirige a um público maior, e terceiro, sobre a 
utilidade da teoria clássica da estase na explicação do que acontece 
na “vida retórica” de uma observação científica ( 1986 : 228 ). 



— 312 — 



1 2. ANÁLISE RETÓRICA 



Seguindo os métodos discutidos anteriormente, Fahnestock avan- 
ça, partindo da situação retórica para analisar, usando a teoria da es- 
tase, os tipos de discurso persuasivo de que a ciência faz uso. Confor- 
me Fahnestock, os textos científicos originais são de natureza predo- 
minantemente forense: 

os artigos científicos estão em grande pa rte preocupados em estabe- 
lecer a validade das observações que eles relatam; por essa razão, a 
proeminência excessiva das secções dos “Materiais e Métodos”, e 
“Resultados”, no formato padrão do artigo científico, e a impor- 
tância dada às tabelas, figuras, e fotografias que são colocadas ali 
como a melhor representação possível da evidência física que a pes- 
quisa gerou (1986). 

As adaptações científicas, contudo, são “esmagadoramente epi- 
dêiticas; seu objetivo principal é comemorar, em vez de validar”. 
(1986: 279). 

As adaptações comemoram através do apelo ao sentimento de 
admiração e de curiosidade. No exemplo acima, essa estratégia fun- 
ciona das seguintes maneiras. Primeiramente, notem-se as caracte- 
rísticas forenses do relatório original. Temos ali um autor colocando 
fatos que são necessários para seu argumento científico. A versão 
adaptada, em contraste, muda isso de maneiras específicas dando à 
afirmação: 

u m grau maior de certeza do que no primeiro caso. 0 cientista que 
escreveu o relatório original e que tinha recentemente descoberto 
uma espécie de abelha tropical antes desconhecida não estava inte- 
ressado em afirmar que não existiam outras espécies semelhantes, e 
que ele tinha descoberto a “única” (1996: 280). 

Ao contrário, a versão adaptada elevou a afirmação a um grau de 
certeza, afirmando sua singularidade, seu status de única no gênero. 
Além disso: 

A versão adaptada afirma também que as abelhas “comem qual- 
quer animal, ” uma extensão inferida dos dados observados e regis- 
trados no artigo de Science. Essa mudança talvez não seja mais 
que uma inocente hipérbole. Mas de novo é uma exageração em 
uma direção interessante, porque ela ajuda a romancear o perigo 
das abelhas... A afirmação de singularidade serve ao apelo epidêi- 
tico de “admiração” (1986: 281). 

Esta parte da análise de Fahnestock coloca a base retórica para 
sua análise e realça os tipos de persuasão que ela descobre em seus 
objetos textuais. Mas, além disso, as partes da retórica, ou os cinco 



313 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



cânones, também entram em ação em sua análise. Embora as cate- 
gorias de memória e apresentação estejam ausentes, a invenção, a 
disposição e o estilo são todos analisados na continuação da discus- 
são de seus temas sobre mudança de gênero e sobre a construção da 
certeza em textos científicos adaptados. A invenção, como vista aci- 
ma, está sempre relacionada com um objetivo. Fahnestock explora 
essa relação no par de textos que se segue: 

2a) O leopardo da índia é raro, mas não é a única espécie de ma- 
míferos com níveis baixos de variação nos perfis sanguíneos. A foca 
elefante do norte, o alce, o urso polar e o cervo do Yellowstone fo- 
ram descritos como tendo níveis diminuídos de variação (0’Brien et 
ai, Science, 1983, p. 6). 

2b) Níveis nitidamente altos de uniformidade genética são nor- 
malmente encontrados apenas em ratos criados especificamente em 
laboratório (“Copycat cheetahs”, Science, 83). 

Diz Fahnestock: 

Os autores científicos de [2a)] queriam diminuir a singularidade 
do fenômeno que eles tinham observado; sendo que seu objetivo era 
convencer os leitores da validade de sua observação, então quanto 
mais raro o fenômeno, mais difícil se tornaria seu trabalho. Suas 
observações são mais plausíveis se outras semelhantes tiverem sido 
feitas, desse modo eles coerentemente citam relatórios análogos. 
Mas o adaptador científico quer fazer com que os leitores se admi- 
rem de algo, por isso ele não faz menção alguma das espécies que se 
mostraram semelhantes na invariância genética, e faz seu assunto 
parecer mais admirável reivindicando o resultado: “aqui nós te- 
mos animais na natureza que exibem a mesma conformidade gené- 
tica daqueles criados em laboratório, com respeito a essa mesma 
qualidade”. 0 adaptador científico não está dizendo algo que não 
seja verdade; ele simplesmente seleciona apenas a informação que 
serve a seu objetivo epidêitico ( 1986 : 281 ). 

O estilo também desempenha um papel importante na análise 
retórica. O par de textos seguinte mostra o objetivo persuasivo a ser- 
viço de qual o estilo pode ser posto: 

3a) A estimativa é derivada de dois grupos de genes convencio- 
nalmente estudados: 47 loci de allozyme (isozyme alélica) e 155 proteí- 
nas solúveis determinadas por eletroforeses de gel bidimensionais... 
A amostra total de leopardos se mostrou invariante para cada um 
dos 47 loci (0’Brien et ai, Science, 1983, p. 460). 



— 314 — 



1 2. Análise retórica 



3b) Mas todos os leopardos possuem exatamente a mesma forma 
de cada uma das 47 enzimas... em outro teste de mais de 150 proteí- 
nas, 97% delas se igualaram aos leopardos (“Copycat cheetahs”, Sci- 
ence 83, p. 6). 

Fahnestock analisa o estilo dessas duas passagens. Enquanto que 
a original não acrescenta comentários editoriais, a versão adaptada 
usa “frases intensificadoras”, tais como “mais de 150”, quando o to- 
tal é precisamente 155, e “exatamente a mesma forma para cada 
uma”, em vez da palavra neutra “invariante”. O estilo, mesmo ao ní- 
vel da escolha da palavra, neste caso particular, serve para enfatizar 
os objetivos epidêiticos no texto. 

Finalmente, a disposição ou a organização dos argumentos den- 
tro dos textos é importante para essa análise retórica. Fahnestock es- 
colhe um relatório de Science que chegou até Newsweek, Time, The 
New York Times, Reader’s Digest e uma quantidade de outros fóruns 
populares para ciência adaptada. O relatório se intitulava “Diferen- 
ças de sexo na habilidade matemática: fato ou artefato?” Time colo- 
cou um título muito diferente, indicando certo grau de certeza sobre 
a resposta a essa questão: “O fator gênero na matemática”. No rela- 
tório original, os cientistas afirmam que seus dados: 

4a) são consistentes com várias hipóteses alternativas. Contudo, 
a hipótese de uma diferença na escolha do curso não foi verificada. 
Parece também provável que é prematuro apostar nos processos de 
socialização menino-vmtts-menina, como a única explicação possí- 
vel da diferença de sexo no campo da matemática. 

Time adapta o relatório da seguinte maneira: 

4b) De acordo com seus autores, a doutoranda Camilla Persson 
Benbow e a psicóloga C. Stanley, da Johns Hopkins University, os 
homens, por constituição inata, possuem mais habilidades matemá- 
ticas do que as mulheres (“O fator gênero na matemática”, Time, 15 
de dezembro de 1980, p. 57). 

A estrutura dos argumentos, sua disposição, revela também um 
objetivo persuasivo. Diz Fahnestock: 

As popularizações dão certa cobertura a pontos de vista preexisten- 
tes que diferem do que pensam Benbow & Stanley, mas essa aten- 
ção vai diferir no efeito que ela pode ter, dependendo de 0 artigo 
terminar, ou não, com uma discordância, ou com uma reiteração 
da posição de Benbow & Stanley. Se Benbow & Stanley tiverem a 



— 315 — 



PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



“última palavra” sobre algo, então a impressão que fica é a de que 
elas fizeram uma refutação bem-sucedida de seus oponentes. Em 
outras palavras, embora os exemplos de Newsweek possam estar se- 
guindo algum princípio jornalístico de organização, de pirâmide 
invertida ou a estrutura “eu”, eles possuem inevitavelmente uma 
estrutura argumentativa, e devido a sua influência organizativa 
chegam até mesmo a criar a opinião do leitor (1986: 286). 

O último exemplo mostra a importância ideológica desse tipo de 
análise. Características estilísticas e formalísticas possuem impacto 
retórico e ideológico. Em síntese, a estrutura e o estilo do discurso 
podem ter um aspecto persuasivo ou ideológico. 

A cosmovisão retórica 

Analisamos a retórica tanto como a produção de comunicação 
persuasiva e como a análise da comunicação persuasiva, mas talvez 
seja igualmente importante compreender que existe uma cosmovi- 
são em ação, entre teóricos retóricos e analistas, sobre a natureza da 
comunicação. A retórica é, em sua raiz, um processo dialético entre 
representação e público. Freqüentemente, os autores ou iniciadores 
da comunicação não fazem parte da análise retórica. Uma vez que o 
discurso tenha entrado na arena comunicativa, ele não está mais sob 
controle pleno daqueles que o produziram. E fundamental lembrar 
esse ponto na análise. Mas talvez ele seja igualmente importante 
para aqueles que produzem discurso retórico. Ainda mais se nós acei- 
tamos que a retórica tem a habilidade de contornar temas e até mes- 
mo de construir temas de importância, devemos reconhecer que a 
retórica é, ela própria, parte da construção do conhecimento. O que 
nós sabemos, nós incorporamos retoricamente; o que nós incorpo- 
ramos retoricamente, nós dizemos que sabemos. Essa pode ser uma 
posição perigosa, ou emancipadora, mas ela nos deve levar a reco- 
nhecer que a retórica é mais que “mera retórica”. 



Passos na análise retórica 

Embora a análise retórica tenda a resistir à codificação, e cada 
análise seja diferente, exatamente como cada texto é diferente, as 
seguintes orientações podem ser um ponto de partida útil: 

1. Estabelecer a situação retórica do discurso a ser analisado. 



— 316 — 




1 2. ANÁLISE RETÓRICA 



2. Identificar os tipos de discurso persuasivo empregando a teoria 
da estase. 

3. Aplicar os cinco cânones retóricos. 

4. Revisar e aprimorar a análise, empregando as orientações refle- 
xivas. 



Referências bibliográficas 

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— 317 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



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Leituras adicionais 

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Oxford University Press. 

MEYER, M. (1994). Rhetoric, Language, and Reason. University Park, PA: 
Pennsylvania State University Press. 



— 318 — 




13 

Análise semiótica de imagens paradas 

Gemma Penn 



Palavras-chave: ancoragem; recuperação; conotação; sistema 
referente; denotação; revezamento; ícone; signo; índice; significa- 
do; léxico; significante; mito; símbolo; paradigma ou conjunto as- 
sociativo; sintagma. 



A semiologia tem sido aplicada em uma variedade de sistemas de 
signos, incluindo cardápios, moda, arquitetura, histórias de fadas, 
produtos para consumo e publicidade de todos os tipos. Este capítu- 
lo discute sua aplicação em imagens e, especificamente, em imagens 
publicitárias. 

Ferramentas conceptuais 

A semiologia provê o analista com um conjunto de instrumentais 
conceptuais para uma abordagem sistemática dos sistemas de sig- 
nos, a fim de descobrir como eles produzem sentido. Muito de sua 
precisão provém de uma série de distinções teóricas que são capta- 
das através de um vocabulário específico. Esta seção introduz essas 
ferramentas conceptuais. 

0 sistema linguístico de signos: significante e significado 

A semiologia nasceu da disciplina da lingüística estrutural, que 
se originou da obra do lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1857- 
1913). O enfoque estrutural vê a língua como um sistema e tenta 
descobrir “todas as regras que o mantêm unido” (Hawkes, 1977: 19). 
O sistema lingüístico compreende unidades que Saussure chamou 
de signos, e as regras que governam suas relações. Saussure propôs 



— 319 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



um modelo simples e elegante do signo lingüístico como sendo a 
conjunção arbitrária de um significante, ou imagem acústica, e um 
significado, ou conceito ou idéia. Estas duas partes podem ser anali- 
sadas como se fossem entidades separadas, mas elas existem apenas 
como componentes do signo, isto é, em virtude de sua relação recí- 
proca. Saussure inicia sua explicação sobre a natureza do signo afir- 
mando que a língua não é uma nomenclatura (1915: 66). O signifi- 
cado não existe anterior, ou independentemente, da língua: não é 
simplesmente uma questão de colocar nela um rótulo. 

Ademais, a relação entre os dois elementos é arbitrária, ou não 
motivada. Não há um elo natural, ou inevitável, entre os dois. Meu 
animal de estimação peludo, meu “gato”, poderia ser igualmente um 
“encrespado”, se isso fosse aceito como tal pelos membros de minha 
comunidade lingüística. A língua é, pois, convencional, uma institui- 
ção social que o falante individual tem relativamente pouco poder pa- 
ra mudar. Do mesmo modo, embora de maneira mais controvertida, 
o conceito ao qual se refere um significante específico pode mudar. 

A percepção central de Saussure foi a relatividade do sentido. 
Ele sintetiza o argumento da seguinte maneira: 

Em vez de idéias preexistentes então, nós encontramos... valores 
que emanam de um sistema. Quando se diz que eles correspondem 
a conceitos, entende-se que os conceitos são puramente diferenciais 
e definidos não por seu conteúdo positivo, mas negativamente por 
suas relações com os outros termos do sistema. Seu caráter mais 
preciso é ser o que os outros não são ( 1915 : 117 ). 

Conseqüentemente, uma língua que compreenda um termo úni- 
co não é possível: ela abrangeria tudo e não excluiria nada; isto é, ela 
não iria diferenciar nada de nada, e sem diferença, não há sentido. 
Para dar um exemplo: imaginemos uma pessoa que não “conhece” 
chapéus. Agora imaginemos fazê-la entender o que seja uma boina. 
Não seria suficiente mostrar a ela uma boina ou toda uma coleção de 
boinas. Ela só seria capaz de entender o sentido de “boina” quando 
fosse ensinada a distinguir uma boina de outros tipos de chapéus: 
chapéu de feltro, gorro de lã, chapéu de aba larga e assim por diante. 

Saussure distingue dois tipos de relação dentro do sistema lin- 
güístico. O valor de um termo, dentro de um contexto, depende dos 
contrastes com termos alternativos que não foram escolhidos (rela- 
ções paradigmáticas ou associativas), e das relações com os outros 
termos que o precedem e o seguem (relações sintagmáticas). Um pa- 



— 320 — 




1 3. Análise semiótica de imagens paradas 



radigma, ou conjunto associativo, é um grupo de termos que são tan- 
to relacionados, ou semelhantes, sob algum aspecto, como diferen- 
tes. O sentido de um termo é delimitado pelo conjunto de termos 
não escolhidos e pela maneira como os termos escolhidos são combi- 
nados entre eles, a fim de criar um conjunto significativo. Isto pode 
ser esclarecido com um exemplo. A frase “o chapéu de Alice é verde” 
constitui um conjunto significativo em virtude da conjunção de uma 
série de termos lingüísticos (informalmente, palavras). O valor de 
cada termo é determinado por seu lugar no sintagma, isto é, pelos 
outros termos, na frase, que o precedem e o seguem, e pelo conjunto 
de termos alternativos que podem substituí-lo. Isto pode ser ilustra- 
do como se segue: 



<-Sintagma-> 





Roupa 


Pessoas 


"ser" 


Cor 


* 


O chapéu 


de Alice 


é 


verde 


Paradigma 


O paletó 


de Pedro 


não é 


amarelo 


vp 


O pijama 


do vigário 


era 


azul 



Saussure propôs que o estudo do sistema do signo lingüístico se- 
ria parte de uma ciência mais ampla, que ele designou de semiolo- 
gia: “a ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social” 
(1915: 16). O sistema do signo lingüístico seria o modelo para a aná- 
lise de outros sistemas de signos. 

Linguagem e sistemas de signos não-lingüísticos 

Barthes, no meu entender, fornece a explicação mais clara e mais 
útil dessa nova disciplina, com relação à análise de imagens. Enquan- 
to Saussure criou um lugar especial para a lingüística dentro da semio- 
logia, Barthes começa seu Elements of Semiology invertendo a relação. A 
semiologia contribui mais quando entendida como uma parte da lin- 
güística, “aquela parte que engloba as grandes unidades de significação 
do discurso” (1964a: 11). Embora as imagens, objetos e comporta- 
mentos podem significar e, de fato, significam, eles nunca fazem isso 
autonomamente: “todo sistema semiológico possui sua mistura lin- 
güística”. Por exemplo, o sentido de uma imagem visual é ancorado 
pelo texto que a acompanha, e pelo status dos objetos, tais como ali- 
mento ou vestido, visto que sistemas de signos necessitam “a media- 
ção da língua, que extrai seus significantes (na forma de nomenclatu- 
ra) e nomeia seus significados (na forma de usos, ou razões)”. 



— 321 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Em vez de tratar isso como um argumento filosófico, com respei- 
to à relação entre pensamento e língua, é melhor tomá-lo como uma 
prescrição pragmática. Seja qual for o meio de estudo, a análise irá 
normalmente exigir a linguagem para uma expressão precisa. Por 
exemplo, os estágios na progressão da arte moderna podem ser vis- 
tos como uma explicação crescente, puramente visual, da natureza e 
função da arte e sobre seus predecessores. A postura de que “o pen- 
samento é igual à língua” iria dizer que o sentido somente entra no 
sistema quando ele é articulado verbalmente, através da interpreta- 
ção, ou da crítica. A postura pragmática não iria negar o potencial 
de significação do meio visual, mas iria argumentar que ele é unica- 
mente ancorado, ou esclarecido, através do meio lingüístico. Outra 
maneira de considerar essa questão é através da distinção significan- 
te/significado. O significante, em qualquer meio, aponta para um 
significado. Mas os significados de diferentes meios são da mesma 
natureza, claramente não redutíveis a seus meios de expressão. 

Esta questão realça uma diferença importante entre linguagem e 
imagens: a imagem é sempre polissêmica ou ambígua. E por isso 
que a maioria das imagens está acompanhada de algum tipo de tex- 
to: o texto tira a ambigüidade da imagem - uma relação que Barthes 
denomina de ancoragem, em contraste com a relação mais recíproca 
de revezamento, onde ambos, imagens e texto, contribuem para o 
sentido completo. As imagens diferem da linguagem de outra ma- 
neira importante para o semiólogo: tanto na linguagem escrita, 
como na falada, os signos aparecem seqüencialmente. Nas imagens, 
contudo, os signos estão presentes simultaneamente. Suas relações 
sintagmáticas são espaciais e não temporais. 

Uma segunda distinção importante entre linguagem e imagem 
relaciona-se com a distinção entre arbitrário e motivado. S. Peirce 
(1934), que desenvolveu um modelo alternativo, triparti te, do signo 
(compreendendo objeto, signo ou “representâmen” e interpretante, 
e em geral referia-se a isso como semiótica), faz uma distinção im- 
portante (novamente triádica) entre ícone, índice e símbolo. 

Uma maneira a mais de analisar a questão da motivação é forne- 
cida pela distinção de Barthes entre diferentes níveis de significa- 
ção: o denotativo, ou primeiro nível, é literal, ou motivado, enquan- 
to níveis mais altos são mais arbitrários, dependentes de convenções 
culturais. A relação entre o significante e o significado no ícone é 
uma relação de semelhança. A fotografia, por exemplo, reapresenta 
seu sujeito de maneira mais ou menos fiel, e é por isso o tipo de sig- 



— 322 — 



1 3. Análise semiótica de imagens paradas 



no menos arbitrário, ou convencional. No signo indéxico, a relação 
entre significante e significado é uma relação mais de contiguidade 
ou causalidade. Assim, a fumaça é um índice de fogo, e um estetoscó- 
pio é tomado como um índice do médico, ou da profissão médica. O 
papel da convenção é mais importante, nesse caso. Finalmente, no 
símbolo, a relação entre significante e significado é puramente arbi- 
trária. Uma rosa vermelha significa amor, e um triângulo vermelho 
em um sinal de tráfego no Reino Unido, significa cuidado, devido 
unicamente à convenção. 



Níveis de significação: denotação, conotação e mito 

No seu esboço de semiologia (1964a) e mitologias (1957), Bar- 
thes descreve o que ele chama de “sistemas semiológicos de segunda 
ordem”. Eles são construídos a partir da análise estrutural do signo 
de Saussure, como a associação de significante e significado. O signo 
desse sistema de primeira ordem se torna o significante da segunda. 
No primeiro sistema, por exemplo, o signo “raposa” compreende a 
associação de determinada imagem acústica, certo conceito (canino 
avermelhado com uma cauda fechada, etc.). Na segunda ordem, 
essa associação se torna o significante para o significado: astuto ou 
ardiloso. O signo de primeira ordem não necessita ser linguístico. 
Por exemplo, um desenho de uma raposa serviria do mesmo modo. 
Barthes ilustra a relação entre os dois sistemas usando a metáfora es- 
pacial mostrada na Figura 13.1. 



Sistema de 
segunda ordem 



2 Significação 



1 Signo 2 Significante 2 Significado 

(raposa) (raposa) (conceito: astuto, 

I ardiloso) 



Sistema de 
primeira ordem 



1 Significante 1 Significado 
(imagem da (conceito: 

raposa) raposa) 



Figura 13.1- Metáfora espacial da relação entre sistemas de signo de primeira e se- 
gunda ordem (adaptado de Barthes, 1957: 124). 



— 323 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Embora o signo de primeira ordem seja “pleno”, quando ele 
toma parte no sistema de segunda ordem ele é vazio. Ele se torna um 
veículo para significação. Ele expressa um conceito a mais, derivado 
não do próprio signo, mas de um conhecimento convencional, cul- 
tural. Este é o ponto no qual aqueles que fazem uso psicológico do 
sistema têm sua porta de entrada. Na The Rhetoric ofthe Irmge (1964b), 
Barthes distingue os tipos de conhecimento exigidos para “agarrar” 
a significação em cada nível. 

No primeiro nível, que Barthes chama de denotação, o leitor ne- 
cessita somente conhecimentos lingüísticos e antropológicos. No se- 
gundo nível, que ele chama de conotação, o leitor necessita outros 
conhecimentos culturais. Barthes chama esses conhecimentos de lé- 
xicos. Ele define um léxico como uma “uma porção do plano simbó- 
lico (da linguagem) que corresponde a um conjunto de práticas e 
técnicas” (1964b: 46). Ele pode ser prático, nacional, cultural ou es- 
tético, e pode ser classificado. Outros pesquisadores usam uma ter- 
minologia diferente para se referir a praticamente a mesma coisa, 
um recurso interpretativo socialmente partilhado: por exemplo, 
Williamson (1978) emprega o termo sistema referente. A liberdade 
interpretativa do(a) leitor(a) depende do número e da identidade de 
seus léxicos. O ato de ler um texto ou uma imagem é, pois, um pro- 
cesso interpretativo. O sentido é gerado na interação do leitor com o 
material. O sentido que o leitor vai dar irá variar de acordo com os 
conhecimentos a ele(a) acessíveis, através da experiência e da proe- 
minência cultural. Algumas leituras podem ser bastante universais 
dentro de uma cultura; outras serão mais idiossincráticas. 

Uma forma de significação de segunda ordem, à qual Barthes 
devotou muita atenção, foi a do mito. Para Barthes, o mito represen- 
ta uma confusão imperdoável entre história e natureza. Mito é o 
meio pelo qual uma cultura naturaliza, ou torna invisível suas pró- 
prias normas e ideologia. 

A significância mitológica ou ideológica de uma mensagem perten- 
ce aos sistemas de representação que muitas vezes parecem ser neu- 
tros e objetivados, mas que legitimam e sustentam a estrutura de 
poder, ou um conjunto particular de valores culturais (Curran, 
1976 : 9 ). 

Por exemplo, em relação à fotografia da imagem publicitária, a 
mensagem denotativa ou literal serve para naturalizar a mensagem 
conotada. Isto é, o trabalho de interpretação, ou a compreensão da 
conotação da imagem, é mantido oculto e coeso pelo fato bruto do 



— 324 — 



1 3. Análise semiótica de imagens paradas 



sintagma da denotação: a conjunção dos objetos na cena é natural, 
ou dado, porque ele não requer tradução, não precisa de decodifica- 
ção (Barthes, 1964a: 51). A tarefa do semiólogo é desmistificar, ou 
“desmascarar” esse processo de naturalização, chamando a atenção 
para a natureza construída da imagem, por exemplo, identificando 
os conhecimentos culturais que estão implicitamente referidos pela 
imagem ou contrastando os signos escolhidos com outros elementos 
de seus conjuntos paradigmáticos. 

Empreendendo uma análise semiológica 

Em uma visão geral, o processo de análise pode ser descrito 
como uma dissecação seguida pela articulação, ou a reconstrução da 
imagem semanticizada, ou “intelecto somado ao objeto” (George 8c 
George, 1972: 150). O objetivo é tornar explícitos os conhecimentos 
culturais necessários para que o leitor compreenda a imagem. 

Escolhendo o material 

O primeiro estágio é escolher as imagens para serem analisadas. 
A escolha dependerá do objetivo do estudo e da disponibilidade do 
material. Por exemplo, é muitas vezes necessário um bom tempo 
para ir ao encalço de comerciais específicos, ou material de campa- 
nha, não mais disponíveis. A análise semiótica pode ser bastante 
prolixa - algo que pode ir desde um parágrafo mais ou menos longo 
até várias páginas - o que irá condicionar a quantidade de material 
escolhido. Um outro fator restritivo é a natureza do material. Dito 
de maneira simples, alguns materiais são mais passíveis de análise 
semiótica que outros. Se o propósito da análise é apresentar uma ex- 
plicação de uma amostra representativa de material, deve-se, então, 
empregar uma amostragem apropriada (randômica), e deve-se ter 
em mente que existem algumas dificuldades na aplicação das técni- 
cas semiológicas. 

O material aqui escolhido, com o objetivo de uma discussão críti- 
ca, é um anúncio contemporâneo de perfume (Figura 13.2), tirado 
de uma revista distribuída em um jornal nacional. Barthes (1964b: 
33) justifica o uso da propaganda com objetivos didáticos, baseado 
no pressuposto de que os signos da publicidade são intencionais e 
serão, por isso, claramente definidos, ou “compreendidos”. Sabe- 
mos também que a intenção será promover a fama e as vendas do 
produto. Isto dá liberdade ao analista para se concentrar no como, 
mais do que no o quê. 



— 325 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Um inventário denotativo 

O segundo estágio é identificar os elementos no material. Isto 
pode ser feito listando os elementos sistematicamente, ou fazendo 
anotações no traçado do material (ver Figura 13.3). A maioria do 
material comercial contém tanto texto, como imagem, e nenhum 
deles deve ser ignorado. É importante que o inventário seja comple- 
to, pois a abordagem sistemática ajuda a assegurar que a análise não 
seja seletivamente auto-afirmativa. Este é o estágio denotativo da 
análise: a catalogação do sentido literal do material. Tudo o que é 
necessário é um conhecimento da linguagem apropriada e o que 
Barthes chama de conhecimento básico “antropológico”. Para o ma- 
terial em questão, nosso inventário básico seria mais ou menos pare- 
cido com isso: 

Texto: “Givenchy”, “Organza” 

Imagem: garrafa (de perfume), mulher, fundo 



GIVENC HY 




Figura 13.2 - O anúncio Givenchy. 



— 326 — 



\ 

1 3. Análise semiótica de imagens paradas 



Figuro feminino - jovem odulto 

- iluminado do alto à direita 
do figura (pela evidência das sombras) 

Olhos - escuros 

- olhando para frente (para o leitor 
ou para longe?) 



Lábios - /evemente repart/c/os 

- da mesma cor (vermelhos) 
que a legenda 'Givenenchy' 



Postura - de pé 



■ olhando para a frente 
- braços ao lado. 



- Pé direito levemente dobrado 
- ' descontraída ’ f/nsínuo assimetria) 




Cor/tonalidade 
(cabeça escura f corpo leve) 



Cabe/o preto fora de sua face e 

assimétrico em relação ao 

pescoço (‘contrabalança 1 o joelho abaixo). 



Pele bronzeado 
Roupa bronca 



Proporções 

- delgada ; alta (proporção 
da cabeça em relação 
ao corpo) 

- forma de ‘ampulheta 1 



Vestimenta - ‘ ajustada ao corpo' 
ao alto e solta , plissada (flutuando) 
embaixo 

- de corpo inteiro 

- sem mangas 



Figura 13.3. - Um traçado anotado da figura feminina. 



Cada elemento deve ser dissecado em unidades menores. Por 
exemplo, os elementos textuais compreendem dois tipos de compo- 
nentes ao nível da denotação. O primeiro é lingüístico: as palavras 
“Givenchy” e “Organza”, aparecendo ambos duas vezes. Os dois são 
nomes: um, o nome de uma companhia, e o outro, de uma marca. 
Além disso, o nome da marca, “Organza”, denota um tipo de tecido 



— 327 — 




pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



-uma seda fina, firme, ou um tecido sintético para vestido. O segun- 
do componente dos elementos textuais é visual: tipográfico e espaci- 
al. Por exemplo, “Givenchy” aparece em cima no centro e é em caixa 
alta, com letras vermelho-escuras, amplamente espaçadas, tipos san- 
serif e roman. 

O mesmo deve ser feito para as imagens. Por exemplo, a mulher 
está de pé, olhando para a frente, com um joelho levemente levanta- 
do, sobrepondo-se um pouco à garrafa. Ela é delgada, assemelhan- 
do-se à forma de uma “ampulheta”, com pele levemente castanha 
(bronzeada?), cabelo preto e assim por diante. 

Níveis mais altos de significação 

O terceiro estágio é a análise de níveis de significação mais altos. 
Ele é construído a partir do inventário denotativo e irá fazer a cada 
elemento uma série de perguntas relacionadas. O que tal elemento 
conota (que associações são trazidas à mente)? Como os elementos 
se relacionam uns com os outros (correspondências internas, con- 
trastes, etc.)? Que conhecimentos culturais são exigidos a fim de ler 
o material? 

No âmbito da denotação, tudo o que o leitor necessita para ler o 
comercial é um conhecimento da linguagem escrita e falada, e um 
conhecimento do que é uma mulher e do que é uma garrafa de per- 
fume. No âmbito da conotação, necessitamos de vários outros co- 
nhecimentos culturais. Em relação ao código lingüístico, o leitor ne- 
cessita “saber” que o nome da companhia “Givenchy” significa 
“Francidade”- ao menos aos ouvidos ingleses. Isso, por sua vez, 
pode conotar alta moda e “chic”. “Moda” pode também estar cono- 
tada pelo nome do tecido “Organza”, e o som da palavra pode trazer 
à mente uma série de conotações potenciais: “organic”, talvez (em 
inglês, referente a produtos naturais), ou “extravaganza” (composi- 
ção literária de caráter fantástico), ou mesmo “orgasm” (orgasmo). 

Comparada à grafia de “Givenchy”, a de “Organza” aparece per- 
sonalizada (escrita a pincel = escrita à mão) e, por isso, individuali- 
zada. “Givenchy” é nome genérico (nome da companhia), enquanto 
“Organza” é específico (nome da marca). Essa relação é também sig- 
nificada pelo desenho do anúncio. “Givenchy” é o título dominante 
superior, enquanto “Organza” aparece em uma posição subordina- 
da. A grafia escrita à mão sugere também um segundo pensamento: 



— 328 



1 3. ANÁLISE SEMIÓTICA DE IMAGENS PARADAS 



uma legenda acrescentada a uma imagem já completa. O Z é dese- 
nhado com um floreio, e as letras são maiúsculas itálicas, claramente 
modeladas, sugerindo talvez instinto, otimismo e extroversão. 

Note-se que aqui a idéia de escolhas paradigmáticas é usada im- 
plicitamente. O valor de cada elemento é criado através da compa- 
ração das opções que estão presentes umas com as outras, das op- 
ções potenciais que estão ausentes (as não escolhidas), bem como 
através da combinação das escolhas. Isto pode ser expresso explici- 
tamente: 











<-Sintagma-> 








Caixa 


Orientação 


Proporção 
da letra 


Estilo do tipo 


* 


GIVENCHY 


Caixa alta 


Roman 


Expandida 


sanserif 


Paradigma ORGANZA 


Caixa 

alta/baixa 


Itálico 


Condensada 


manuscrita 
a pincel 




ESCOLHAS 
NÃO FEITAS 


Caixa baixa 


Blackslant 


Regular 


serif etc. 



Ao nos movermos para a ordem de significação conotativa, ou 
segunda ordem de significação, algo da especificidade do denotado, 
isto é, a mensagem literal é perdida. A mulher singular perde sua in- 
dividualidade e se torna um exemplo de um modelo fascinante. Ela 
é reconhecida não por algo idiossincrático ou pessoal, mas por seu 
corpo alto e esbelto, sua postura, etc. Podemos notar de imediato a 
equivalência intencional entre a mulher e a garrafa: são ambas da 
mesma altura; ambas têm uma “cabeça” e um “corpo” com propor- 
ções semelhantes, com as “cabeças” mais escuras que os “corpos”. A 
“anatomia” da mulher é reproduzida na forma da garrafa, junta- 
mente com a estrutura estriada de sua roupa. Ambas são levemente 
assimétricas. Essas correspondências sugerem sua equivalência: as 
conotações da moda e da fascinação são transferidas da modelo para 
a marca (o perfume é a mulher). 

Além de implicar que a mulher e a garrafa são equivalentes, é 
também possível valer-se de conhecimento cultural específico para 
ir além na interpretação da imagem. Por exemplo, ocorre-me que 
há uma intenção de fazer a mulher parecer uma cariátide (ver Figu- 
ra 13.4) e, conseqüentemente, isso lhe acrescenta conotações clássi- 
cas da Antiga Grécia. A correspondência entre a modelo e a cariáti- 



— 329 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



de pode ser detalhada: ambas são figuras femininas, postando-se 
eretas e olhando para a frente, com um joelho levemente levantado. 
O estilo do vestido é semelhante: ambos são de corpo inteiro, sem 
mangas. O tecido parece dobrado no meio e pende em pregas pelo 
chão. O efeito das pregas no vestido e na garrafa pode também lem- 
brar as estrias que aparecem em muitas colunas gregas, que são fun- 
cionalmente equivalentes às cariátides. 




Figura 13.4 -A figura cariátide e feminina. 



— 330 — 




1 3. Análise semiótica de imagens paradas 



Se essa hipótese é correta, é possível, então, tratar as diferenças 
entre as duas como intencionais, como escolhas paradigmáticas signi- 
ficativas. Talvez a diferença mais notável entre as duas esteja em suas 
respectivas proporções ou compleição. O conjunto paradigmático 
aqui é a possível forma do corpo: esbelto, atlético, arqueado, etc. A 
modelo é consideravelmente mais delgada que a cariátide. Isso é 
acentuado pelo ajustamento mais apertado do vestido da modelo. 
Duas hipóteses se apresentam para explicar a diferença. A primeira é 
simplesmente que, além de ser a representação de uma mulher, a ca- 
riátide é também uma peça arquitetural carregando peso. A segunda 
hipótese, e provavelmente a mais óbvia, é que as proporções da mo- 
delo significam o ideal moderno da elegância e beleza: a às vezes con- 
trovertida imagem da modelo enfraquecida das passarelas (exibindo 
tecidos “da moda” - talvez organza). A imagem moderniza o ideal 
grego. Contudo, a forte correspondência entre as duas figuras conota 
uma imagem de beleza perene, ou “clássica” (e, portanto, natural). 

A razão de se levantar a primeira hipótese é que alguns elementos 
de uma imagem podem ser simplesmente uma função de exigências 
técnicas, ou financeiras. Por exemplo, quando a composição fotográfi- 
ca substituiu a composição tipográfica, os artistas gráficos foram rápi- 
dos em explorar o potencial dessa nova tecnologia, e houve uma onda 
para um espaçamento das letras diferente e especialmente “comprimi- 
do”. Um exemplo mais recente de inovação, impulsionada pela tecno- 
logia, é a imagem trabalhada (“morphed”) gerada por computador. 

O sistema de referência da cariátide coloca o anúncio dentro do 
mundo da Grécia Clássica. Um segundo conjunto de significantes 
transfere o local para o leste. O fundo, com suas cores douradas e a 
textura suavemente amaciada, sugere a areia do deserto. O outro 
significante chave do deserto, o sol, é sugerido pelo seu efeito: os 
tons bronzeados da pele da modelo. Mais extravagantemente, a 
tampa decorativa da garrafa pode lembrar o hieróglifo egípcio do 
deus-sol Ra: uma cobra entrelaçada ao redor do sol. Um outro mito 
oriental ajuda essa re-alocação mais exótica. A equivalência entre a 
garrafa e a modelo sugere que a modelo pode ser lida como o espíri- 
to da garrafa - o gênio da lâmpada - prometendo, assim, a realiza- 
ção de todos os desejos do/da comprador/a (a modelo é o perfume). 

Quando parar ? 

Teoricamente, o processo de análise nunca se exaure e, por con- 
seguinte, nunca está completo. Isto é, é sempre possível descobrir 

— 331 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



uma nova maneira de ler uma imagem, ou um novo léxico, ou sistema 
referente, para aplicar à imagem. Para fins práticos, contudo, o analis- 
ta irá normalmente querer declarar a análise terminada a certa altura. 
Se a análise foi empreendida para demonstrar um ponto específico - 
por exemplo, investigar as atuações de uma estrutura mítica específi- 
ca - então a/o analista estará justificado ao se limitar a aspectos rele- 
vantes do material. Em uma análise mais inclusiva, um modo de ga- 
rantir que a análise esteja relativamente completa é construir uma 
matriz de todos os elementos identificados, e conferir se as relações 
recíprocas entre cada par de elementos foi ao menos considerada (“O 
que significa o elemento A no contexto do elemento B e vice-versa?”). 
Um modo mais flexível de examinar as relações entre os elementos, 
ilustrada na Figura 13.5, é construir um “mapa mental” ao redor do 
inventário denotativo. Isso nos permite a identificação das relações 
entre mais de dois elementos ao mesmo tempo. 



PANO DE FUNDO 



Anúncio Deserto (areia: cor, textura) 

Realização L desejo Localização oriental 




(lâmpada) 



p. ex. proporçoes 
de altura, cor 



Deus-sol Ra 



GARRAFA 



_tampa da 
garrafa 



-Sol 



Pele bronzeada 



Figura 13.5 - Exemplo de um mapa mental. 

Não há dúvida de que o analista atento desse anúncio irá identi- 
ficar outros signos além daqueles discutidos aqui. Mencionarei ape- 
nas mais um. Esse significante final abrange o anúncio como um 
todo e seu significado é simplesmente: “isso é um anúncio”. Ajusta- 



— 332 






1 3. Análise semiótica de imagens paradas 



posição do produto e do nome da marca é igual a cem mil comunica- 
ções comerciais desse tipo (isso é também significado pela sua locali- 
zação dentro deste tipo de revista e por características tais como a 
omissão do número da página). Mais que isso, através de sua simpli- 
cidade espartana e texto mínimo, esse anúncio significa: “Esse é um 
anúncio moderno.” Como observam Leiss et al., (1997: 199), anún- 
cios de uma era anterior teriam incluído um texto explanatório, 
para dirigir o(a) leitor(a) para a imagem, e para ensinar-lhe as ma- 
neiras de ler uma imagem. Esse anúncio pressupõe que a imagem 
não necessita de tal mediação textual, ou ancoragem. Curiosamen- 
te, esse signo final subverte o empreendimento da própria semiolo- 
gia, sugerindo que propagandas modernas pressupõem uma leitura 
semiologicamente perspicaz. 



Relatório 

Não há uma maneira única de apresentar os resultados de análi- 
ses semiológicas. Alguns pesquisadores gostam de tabelas (ver Tabe- 
la 13.1); outros preferem um enfoque mais discursivo. Idealmente, 
as análises apresentadas deveriam fazer referência a cada nível de 
significação identificado tanto na imagem, como no texto (denota- 
ção e conotação/mito), e identificar o conhecimento cultural exigido 
a fim de produzir a leitura. Elas deveriam também comentar as ma- 
neiras como os elementos do material se relacionam uns com os ou- 
tros. Por exemplo, as análises podem ser estruturadas pelos signos 
de níveis mais altos, identificados no material, colocando os elemen- 
tos significantes e suas relações sintagmáticas para cada um deles. 



Tabela 13.1 - Exemplo de apresentação tabular dos achados 



Denotação 


Sintagma 


Conotação/mito 


Conhecimento 

cultural 


Figura feminina: 


Equivalência 


Elegância clássica 


Arquitetura grega: 


postura, 


sugerida pelas: 


Beleza perene (e 


da cariátide 


vestes, etc. 


Proporções 


natural) 


colunas estriadas 


Garrafa de 


assimétricas da 






perfume: 


"ampulheta"; 






proporções. 


tom, p.ex. "cabeça" 






"esfriamento", etc. 


escura e "corpo" 
"leve" 








tamanho, localização; 
adjacente, etc. 







333 — 







Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Críticas da semiologia 

Subjetividade: leituras idiossincráticas e culturalmente partilhadas 

Os críticos argumentam que a semiologia é capaz apenas de ofe- 
recer intuições impressionísticas sobre a construção de sentido, e 
que não há garantia que diferentes analistas irão produzir explica- 
ções semelhantes. Essa objeção traz à tona um dos eternos debates 
dos estudos da mídia: até que ponto o sentido está na mente daquele 
que olha? O consenso pulou várias vezes, nas últimas décadas, entre 
os pólos extremos do enfoque “anestésico” da mídia que coloca os 
leitores em um papel mais ou menos passivo, dependentes da ima- 
gem, para uma visão de um leitor interminavelmente criativo, pou- 
co condicionado pela imagem. A verdade, sem dúvida, está em al- 
gum lugar entre esses dois extremos. Algumas leituras, tanto deno- 
tativas como conotativas, serão mais ou menos universais, enquanto 
outras serão mais idiossincráticas. Por um lado, seria esperado que 
os leitores concordassem que a Figura 13.2 inclui uma garrafa de 
perfume e uma mulher. Se alguém fosse dizer que as imagens são de 
um vidro de manteiga de amendoim e de um peixe, nós iríamos, 
com razão, duvidar de sua sanidade, de sua visão ou de sua sinceri- 
dade. Isto é, a imagem limita o potencial de leituras. Por outro lado, 
um leitor pode afirmar que a mulher parece uma amiga e que essa 
semelhança “colore” as associações que vêm à mente. Nesse caso, a 
leitura é meramente idiossincrática. O conceito de Barthes de léxico 
torna-se útil aqui. O que será mais importante para o analista não é o 
idiossincrático, mas as associações e os mitos culturalmente partilha- 
dos que os leitores empregam. 

Leiss e colegas (1977: 214) levantam uma outra questão sobre 
subjetividade. Eles notam que a qualidade da análise é fortemente 
dependente da habilidade do analista. Dizem que nas mãos de um 
analista hábil, como Roland Barthes, ou Judith Williamson: 

Ela é uma ferramenta criativa que permite a alguém alcançar ní- 
veis mais profundos da construção de sentido em propagandas. 
Um analista menos prático, contudo, pouco pode fazer além de 
apresentar o óbvio, de uma maneira complexa e muitas vezes pre- 
tenciosa ( 1997 : 214 ). 

Seu argumento é que a importância da habilidade do analista 
milita contra a possibilidade de estabelecimento de consistência e fi- 
dedignidade, na forma de concordância entre analistas. Outros crí- 
ticos vão mais além. Cook (1992: 71), por exemplo, critica o tom ge- 



— 334 — 



1 3. ANÁLISE SEMIÓTICA DE IMAGENS PARADAS 



ral das explicações semiológicas que reivindicam uma percepção su- 
perior, ou verdade. Sob certos aspectos, esse é um ponto estilístico, e 
talvez o cientista social deva ser mais cauteloso ao manifestar dema- 
siado faro literário e deva apresentar as análises com mais humilda- 
de. Contudo, Cook sente-se também pouco à vontade com relação 
ao emprego das metáforas “profundo” e “de superfície”, e sobre a 
tendência à abstração, que resulta na priorização dos níveis “profun- 
dos” de significado. 

Abstração e mistificação 

As explicações semiológicas reconhecem a relação entre “con- 
teúdo superficial” e “conteúdo interpretativo” nas distinções entre 
denotação e conotação, e entre significante e significado. Contudo, 
muita pesquisa semiológica coloca maior ênfase na conotação e no 
significado. Cook (1992: 70-1) argumenta que a busca por mitos 
ocultos cega o pesquisador para os detalhes e a estrutura de superfí- 
cie. Por exemplo, propagandas não são lembradas como entidades 
abstratas. Suas minúcias são essenciais: detalhes e estilo são tão im- 
portantes como o mito subjacente. Como coloca Barthes (1964a: 
45), fica sempre faltando alguma coisa quando alguém desveste uma 
propaganda de suas mensagens: “a mensagem sem um código”. 
Uma lagartixa rasteja sobre um telefone tocando, em um comercial 
de televisão para a barra de chocolate Flake: aqui, a lagartixa pode 
ser uma metáfora, mas ela é também um animal muito concreto. Se- 
pare o mito e você fica ainda com a lagartixa, que representa a si 
mesma, e essa lagartixa é parte daquilo que é recordado pelo leitor, 
e é o que se perdeu no processo de abstração. 

A essência dessa crítica é que a análise tem como objetivo uma 
colocação unificada do sentido subjacente, e que isso ignora a varia- 
ção e a contradição da superfície. Ela reduz uma complexidade 
enorme a umas poucas dimensões abstratas. Leach faz o seguinte co- 
mentário sobre as análises mitológicas de Lévi-Strauss: “a essa altu- 
ra, alguns leitores ingleses podem começar a suspeitar que toda a ar- 
gumentação não passou de uma elaborada piada acadêmica” (1970: 
31). Sim, Lévi-Strauss mostrou que é possível desconstruir comple- 
xos discursos sociais em matrizes discretas de dimensões fundamen- 
tais, mas isso é apenas possível abstraindo do que é caracterizado 
como “não essencial”. Do mesmo modo, Leiss etal. (1977) aplaudem 
Barthes e Williamson por suas precisas análises de detalhes, mas eles 



— 335 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



criticam as abstrações que Williamson apresenta na segunda metade 
de seu livro: elas são banais e lhes falta aspectos mais específicos. Em 
um sentido prático, elas não são muito práticas. 

Dessa maneira, as críticas de Cook 8c Leiss et al. retiram da expli- 
cação semiológica sua tendência de focar o significado às custas do 
significante, e de focar ordens mais altas de significação às custas da 
denotação. O detalhe não deve ser visto como puramente secundá- 
rio, dependente da estrutura do mito: ele é importante em si mes- 
mo, e especialmente útil como um índice social potencial. Por exem- 
plo, o bronzeamento da modelo no anúncio Givenchy é um índice 
dos ideais correntes de beleza. O bronzeamento conota lazer, no 
mundo ocidental contemporâneo; ao passo que durante o período 
da Regência, digamos, conotava trabalho externo, e as altas classes 
da nobreza, dadas ao lazer, empregavam estratégias elaboradas 
para evitar o bronzeamento. Para concluir, uma análise deve ser re- 
cíproca. A abstração deve alimentar a concretização e vice-versa. A 
ironia disso tudo, porém, é que se por um lado esse é um ponto im- 
portante, por outro lado explicações detalhadas de denotação ten- 
dem a apresentar o óbvio e, é claro, tornar-se totalmente repetitivo. 

Validade ecológica e o problema da recuperação 

Normalmente, nós não examinamos detalhadamente as ima- 
gens procurando seus sentidos culturais implícitos. Se no dia-a-dia o 
leitor não se entretém nas imagens de maneira meticulosa e sistemá- 
tica, como faz o semiólogo, então, qual a importância da explicação 
do semiólogo? Uma resposta poderia ser a precisão: a explicação se- 
miológica afina e torna explícito aquilo que está implícito na ima- 
gem. Por exemplo, o leitor casual pode perceber as conotações clás- 
sicas da Figura 13.2, sem a necessidade de saber o que seja uma ca- 
riátide. Muitas vezes nós temos apenas uma sensação vaga de famili- 
aridade. De fato, essa vaga familiaridade é freqüentemente intencio- 
nal. Referências que são muito precisas podem distrair o leitor da 
ação mítica que uma imagem está destinada a cumprir: no caso da 
publicidade, a transferência de sentido da imagem para o produto. 
Conseqüentemente, o semiólogo desempenha um valioso trabalho 
de chamar a atenção para a natureza construída da imagem. 

Barthes defendeu a desmistificação como um meio de ação polí- 
tica, empregando o sarcasmo e a ironia como as ferramentas princi- 
pais. Contudo, os construtores de mito, como os publicitários, sem- 



— 336 — 



1 3. Análise semiótica de imagens paradas 



pre possuem um álibi já pronto: a simples negação do sentido de se- 
gunda ordem, ou de sua intenção. De maneira ainda mais interes- 
sante, a crítica traz consigo uma contribuição ao mito, certa cumpli- 
cidade com o objeto de análise. Ao criticar, digamos, o Homem de 
Marlboro, o mitólogo apenas acrescenta outro contributo a sua fama 
e a sua resistência: ele se torna um ícone acadêmico. Isto é, mais do 
que nunca, a crítica é recuperada pelo próprio mito e é colocada a 
serviço do mito. 

Esta habilidade de recuperação provém da muitas vezes discutida 
qualidade “multiforme” dos mitos. Esta qualidade é o resultado do es- 
vaziamento do conteúdo e da história do signo de primeira ordem, de 
tal modo que ele se torna um veículo disponível para a significação de 
segunda ordem. Dessa maneira, tudo pode ser usado como um signi- 
ficante do mito, e o mito é capaz de assimilar, ou desviar a crítica. Um 
exemplo de recuperação em ação pode ser encontrado em algumas 
propagandas de marcas de cigarros com filtro, nas décadas de 1960 e 
1970, que foram produzidas como resposta aos achados científicos so- 
bre os riscos do fumo para a saúde. Essas propagandas empregaram 
imagens científicas, tipicamente na forma de um cigarro dissecado ao 
estilo de um diagrama científico: um desenho de linhas simples, com 
anotações ao estilo de livros-texto. Desse modo, a crítica científica ao 
cigarro voltou-se sobre si mesma: o problema é científico e, do mesmo 
modo, evidentemente, é a solução. 

Tal fato sugere que um enfoque ingênuo, áo estilo “Rumpelstiltskin”, 
é inadequado: não é suficiente apenas nomear o mito. O simples ato 
de nomear um mito, contudo, não deixa de ter seu valor crítico. O 
fato de nomear desnaturaliza o mito, tornando-o mais tangível: ele 
se torna uma “coisa” que pode ser manipulada e criticada (a que in- 
teresses ele serve?). Isto é, nomear é um primeiro passo essencial no 
processo de crítica, mas não é suficiente em si mesmo. Sontag discu- 
te um problema semelhante em sua análise das metáforas da doen- 
ça. Ela afirma que “as metáforas não podem ser afastadas apenas 
pelo fato de evitá-las. Elas devem ser expostas, criticadas, sacudidas, 
esgotadas” (1991: 179). Além disso, Sontag propõe que o processo 
de identificação e crítica das metáforas deve ser guiado pelos efeitos 
das metáforas: “Nem todas as metáforas aplicadas à doença e a seus 
tratamentos são igualmente insossas e levam à distorção” (1991: 
179). Contudo, isso simplesmente adia a questão crucial: que metá- 
foras ou que mitos? E quem irá decidir? 



— 337 — 



PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Talvez mais importante ainda que apresentar explicações semio- 
lógicas das imagens seja o cultivo de um enfoque crítico: a apresen- 
tação dos meios para uma crítica e a compreensão dos meios pelos 
quais os propagandistas de todas as cores contestam o espaço mito- 
lógico. Embora se possa argumentar que essa prática, ela própria, 
seja uma propaganda em favor de uma disciplina acadêmica crítica, 
com interesses pessoais, pode-se também, do mesmo modo, afirmar 
que, se tal enfoque fosse concretizado, a disciplina acadêmica se tor- 
naria desnecessária. Isso não é para negar o valor de críticas funda- 
mentadas: o tempo das pessoas para tal reflexão crítica é limitado, 
se comparado às infinitas possibilidades da análise semiológica. 

Para uma semiologia híbrida 

Essa seção final apresenta uma breve discussão de dois caminhos 
possíveis na discussão de alguns dos problemas identificados acima. 
A integração da semiologia com técnicas interativas de coleta de da- 
dos oferece um meio de discutir o problema da subjetividade, atra- 
vés da reintegração do leitor leigo. O potencial para uma aproxima- 
ção com as técnicas de análise de conteúdo contempla um aspecto di- 
ferente do problema da subjetividade, ao enfatizar uma abordagem 
sistemática à amostragem e à análise. 

Validação comunicativa: entrevistas e grupos focais 

A fim de avaliar a extensão e o uso de conhecimentos culturais 
socialmente partilhados dentro de um determinado grupo de pes- 
soas, a semiologia pode ser combinada com alguma forma de coleta 
interativa de dados. Grupos focais ou entrevistas são a escolha óbvia, 
e o trabalho do entrevistador será focar a atenção dos participantes 
no material, sem conduzir suas respostas. A melhor maneira de se 
fazer isso é colocar perguntas gerais, tais como “Do que vocês pen- 
sam que essa fotografia trata?”, e pedir aos participantes que sejam 
precisos sobre os aspectos do material que lhes causam determinada 
impressão. A natureza subjetiva da leitura deve ser enfatizada para 
ajudar os participantes a se sentirem à vontade: o exercício não é um 
teste, ou jogo de adivinhar. O pesquisador pode também perguntar 
sobre aspectos específicos do material: “Por que vocês pensam que 
foi usada tal cor aqui? Que impressão isso causa?” 

Comumente, as entrevistas devem ser gravadas e o pesquisador 
deve assegurar que as referências a partes do material sejam explíci- 



— 338 — 



1 3. ANÁLISE SEMIÓTICA DE IMAGENS PARADAS 



tas, para referência posterior. Isto fica mais fácil se for feita uma gra- 
vação em vídeo do material, e se os participantes forem encorajados 
a apontar as partes relevantes do material, à medida em que falam. 
A transcrição deve, então, ser codificada tematicamente, relaciona- 
da, talvez, a um algum referencial já existente. 

Análise de conteúdo 

A semiologia e a análise de conteúdo são consideradas, muitas ve- 
zes, como sendo instrumentos de análise radicalmente diversos, mas, 
como afirmam tanto Leiss^aZ. (1977), como Curan (1976), há muitas 
razões para uma aproximação. Os semiólogos podem incorporar os 
procedimentos sistemáticos de amostragem da análise de conteúdo. 
Isto levará, de alguma maneira, a discutir as críticas de que o enfoque 
produz resultados autoconfirmadores, e de que não é legítimo gene- 
ralizar as conclusões de uma análise semiológica para outro material. 
A sistematização mais aprimorada da análise, que a análise de conteú- 
do defende, pode levar também a ajudar o semiólogo a combater acu- 
sações de seletividade (por exemplo, na construção de inventários de 
denotação e matrizes de possíveis sintagmas). A análise resultante de- 
verá ser mais fidedigna (replicável) e menos dependente de idiossin- 
crasias e habilidades de determinados analistas. 

Além disso, a inclusão de mais códigos interpretativos (baseados 
mais na conotação do que na denotação) nas análises de conteúdo é 
prova da recíproca influência da semiologia. Tais análises, contudo, 
perdem seus aspectos estruturais de um enfoque puramente semio- 
lógico: como o sentido é criado nas relações espaciais entre elemen- 
tos dentro da imagem específica. Entretanto, essa maneira de expo- 
sição, mesmo nas mãos do mais perito e lacônico dos pesquisadores, 
requer uma grande quantidade de espaço, se a análise quiser dar 
conta de pelo menos uma parcela do tamanho padrão de uma amos- 
tra rotineiramente planejada pelo analista de conteúdo. O maior 
obstáculo para uma integração completa dos dois enfoques é, pois, 
logístico. A solução poderá ser empregar os dois enfoques lado a 
lado. Uma explicação semiológica de uma pequena amostra de ima- 
gens pode exemplificar diferentes códigos analíticos de conteúdo. 
Por exemplo, um código analítico de conteúdo relacionado, diga- 
mos, a “mitos de beleza”, aplicado quantitativamente a uma ampla 
amostra de propagandas, pode ser ilustrado qualitativamente por 
uma explicação semiológica da propaganda em questão. Essa expli- 



— 339 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



cação seria parcial, pois ela iria enfocar aspectos relevantes da ima- 
gem, em vez de analisar a propaganda como um todo. Ela iria real- 
çar a transparência do procedimento da análise de conteúdo, tor- 
nando o método e os critérios de codificação explícitos e abertos ao 
escrutínio do leitor. 



Passos para uma análise semiológica 

1 . Escolha as imagens a serem analisadas. Identifique as fontes ade- 
quadas de material. Que tipo de material é mais adequado para 
tratar o problema de pesquisa? Como ele pode ser conseguido? 
Contemporâneo ou do passado? Por exemplo, arquivos de mí- 
dia, material comercial acessível, material baixado da Internet? 
Selecione a amostra: quanto material? Leve em conta as exigên- 
cias de tempo e do espaço disponível para relatório. Quais são os 
critérios apropriados de seleção? Os achados vão ser generaliza- 
dos além da amostra; se afirmativo, até que ponto? Torne os cri- 
térios para amostragem não randômica explícitos e comente a 
respeito de como a amostra resultante é não representativa, por 
exemplo, efeitos sazonais. 

2. Compile um inventário denotativo - um levantamento sistemáti- 
co dos conteúdos literários do material. Inclua todo o texto (lin- 
güística e tipografia) e imagens. Crie uma lista, ou faça anotações 
no material. Isso ajuda ao analista a se familiarizar com o mate- 
rial e previne o problema de seletividade. Isso também dá ênfase 
ao processo de construção da imagem. Acrescente os detalhes: 
embora não seja possível fornecer uma explicação exaustiva, é 
importante ser o mais preciso e explicativo possível. O processo 
de translação para a linguagem pode ajudar a identificar aspec- 
tos menos óbvios da composição e conteúdo que contribuem 
para a significação geral. Anote o tamanho, cor, localização, etc. 
de todos os elementos. Reconstrução paradigmática: quais são as 
alternativas não escolhidas para cada elemento identificado? As 
alternativas ausentes contribuem para a significação, através de 
delimitação do sentido dos elementos escolhidos. 

3. Examine os níveis mais altos de significação: conotação, mito e 
sistemas referentes. O que os elementos conotam? Que elemen- 
tos constituintes trazem contribuições para cada signo de ordem 
superior identificado? Identifique os conhecimentos culturais aos 
quais as imagens se referem e através dos quais elas são interpre- 



— 340 




1 3. ANÁLISE SEMIÓTICA DE IMAGENS PARADAS 



tadas. Elementos diferentes podem ser polissêmicos e podem 
contribuir para mais de um signo de ordem superior. O conheci- 
mento cultural e os valores que se pressupõe que o leitor possua 
podem ser usados para “reconstruir” o leitor “ideal”, ou identifi- 
car índices sociais. Sintagma: como os elementos se relacionam 
um com o outro? Correspondências, contrastes? Há pistas para 
ênfases e relações, por exemplo, cor, tamanho, posicionamento? 
Como o texto se relaciona com a imagem? Ancoragem, reveza- 
mento? Redundância? 

4. Decida quando concluir. A análise enfocou o problema de pes- 
quisa? Confira se todos os elementos do índice denotativo estão 
incluídos e se suas inter-relações foram levadas em consideração, 
por exemplo, matriz, mapa mental. 

5. Selecione formas de relatório. Escolha o formato de apresenta- 
ção, por exemplo, tabela, texto e estrutura. Inclua referências 
para cada nível de significação: denotação, conotação, mito e os 
sistemas referentes exigidos para compreender níveis superiores 
de significação. Preste atenção na maneira como os elementos es- 
tão relacionados. Quando diversas análises são apresentadas, es- 
pecialmente com objetivos comparativos, pode ser útil indicar 
sua relação, por exemplo, empregando a mesma estrutura em 
cada análise. 



Referências bibliográficas 

BARTHES, R. (1957). Mythologies [trans. A. LAVERS, 1973]. London: 
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New York, NY: Hill and Wang. 

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1977], London: Fontana. 

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munication, Social Psychology Project, Open University. 

GEORGE, R.T. de 8c GEORGE, F.M. de (1972). The Structuralists: From 
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— 341 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



HAWKES, T. (1977). Structuralism and Semiotics. London: Routledge. 

LEACH, E. (1970). Lévi-Strauss. London: Fontana. 

LEISS, W., KLINE, S. & JHALLY, S. (1997). Social Communication in 
Advertising: Persons, Products and Images ofWell-Being (2nd edn). New 
York: Routledge. 

SAUSSURE, F. de (1915). Course in General Linguistics [trans. W. Baskin]. 
New York: The Philosophical Library, 1959; New York: McGraw-Hill, 
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SONTAG, S. (1991). Illness as Metaphor and AIDS and its Metaphors. Lon- 
don: Penguin. 

WILLIAMSON, J. (1978). Decoding Advertisements: Ideology and Meaning 
in Advertising. London: Marion Boyars. 



14 

Análise de imagens em movimento 

Diono Rose 



Palavras-chave : codificação; representação; narrativa; translação. 



Neste capítulo, irei discutir um método para analisar a televisão 
e outros materiais audiovisuais. O método foi desenvolvido especifi- 
camente para investigar representações da loucura na televisão e, 
inevitavelmente, alguma coisa do que tenho para dizer será específi- 
co para esse tópico. Muito disso, contudo, tem uma aplicação mais 
geral, pois abrange um conjunto de conceitos e técnicas que podem 
servir de orientação na análise de muitas representações sociais no 
mundo audiovisual. 

Parte da aplicabilidade geral do método provém de seus funda- 
mentos teóricos. Na verdade, a argumentação teórica é crítica em 
cada ponto do desenvolvimento da técnica. Começarei, então, dizen- 
do algo sobre os fundamentos teóricos do método, limitando-me, 
nesse ponto, a um nível mais geral. 

O que precisamente são meios audiovisuais, como a televisão? É 
a televisão igual a um rádio com figuras? Diria que não. Além do fato 
de que o próprio rádio não é simples, os meios audiovisuais são um 
amálgama complexo de sentidos, imagens, técnicas, composição de 
cenas, seqüência de cenas e muito mais. É, portanto, indispensável 
levar essa complexidade em consideração, quando se empreende 
uma análise de seu conteúdo e estrutura. 

Todo passo, no processo de análise de materiais audiovisuais, 
envolve transladar. E cada translado implica em decisões e escolhas. 
Existirão sempre alternativas viáveis às escolhas concretas feitas, e o 
que é deixado fora é tão importante quanto o que está presente. A 



— 343 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



escolha, dentro de um campo múltiplo, é especialmente importante 
quando se analisa um meio complexo onde a translação irá, normal- 
mente, tomar a forma de simplificação. 

Nunca haverá uma análise que capte uma verdade única do tex- 
to. Por exemplo, ao transcrever material televisivo, devemos tomar 
decisões sobre como descrever os visuais, se vamos incluir pausas e 
hesitações na fala, e como descrever os efeitos especiais, tais como 
música ou mudanças na iluminação. Diferentes orientações teóricas 
levarão a diferentes escolhas sobre como selecionar para transcri- 
ção, como mostrarei a seguir. 

Como já foi dito, não há um modo de coletar, transcrever e codi- 
ficar um conjunto de dados que seja “ verdadeiro” com referência ao 
texto original. A questão, então, é ser o mais explícito possível, a res- 
peito dos recursos que foram empregados pelos vários modos de 
translação e simplificação. Bernstein (1995) sugeriu que nós cha- 
mássemos o texto de “Ll” (o L está por linguagem), e o referencial 
de codificação L2”. O resultado da análise é, então, uma interação 
entre Lie L2. É uma translação de uma língua para outra e, para 
Bernstein, ela possui regras ou procedimentos. O problema com 
esse modelo é que ele pressupõe apenas dois passos. Ou, talvez, ele 
supõe que os processos de seleção, transcrição e codificação dos da- 
dos possam ser vistos como uma única linguagem. A distinção, con- 
tudo, não deixa claro que não pode haver um simples espelhamento 
do conjunto de dados na análise final. Processos de translado não 
dão origem a simples cópias, mas levam, interativamente, à produ- 
ção de um novo resultado. 

Tomemos um exemplo, novamente do campo da transcrição. 
Potter 8c Wetherell (1987) propuseram um método para transcrição 
da fala. Eles acentuam a importância de descrever pausas e hesita- 
ções, e a duração desses silêncios, em sua descrição. Seria isso “ mais 
verdadeiro” que uma simples transcrição, palavra por palavra? Eu 
diria que não. O que dizer da inflexão e da cadência (ver, por exem- 
plo, Crystal & Quirk, 1964)? E ainda mais importante para o nosso 
caso, que dizer dos aspectos visuais da comunicação? A cinética é um 
enfoque descrito por Birdwhistell (1970), mas raramente emprega- 
do. Este autor descreve as dimensões não verbais da comunicação. 
Uma ênfase na fala, ou discurso, nunca pode incluir essas caracterís- 
ticas. Saussure reconheceu isso há muito tempo atrás, quando ele 
disse que a semiótica é a ciência dos signos, e signos não se limitam 
aos campos da fala e da escrita. 



— 344 — 




1 4. Análise de imagens em movimento 



Voltando à análise da mídia, Wearing (1993), seguindo Potter & 
Wetherell, analisou as reportagens da imprensa sobre um assassino 
considerado um doente mental. A análise ficou totalmente ao nível 
do texto, ignorando o leiaute, títulos, fotografias e localização em re- 
lação a outras histórias. Wearing insistiu que um novo retrato tinha 
sido produzido pelo entrelaçamento de dois discursos - o jornalísti- 
co e o psiquiátrico. Devemos dizer que as representações da mídia 
são mais que discursos. Elas são um amálgama complexo de texto, 
escrito ou falado, imagens visuais, e as várias técnicas para modular 
e seqüenciar a fala, as fotografias e a localização de ambas. 

A questão não é que exista um caminho para captar todas essas 
nuanças a fim de produzir uma representação mais fiel. É, antes, que 
alguma informação será sempre perdida, outras informações pode- 
rão ser acrescentadas, e desse modo o processo de analisar fala e fo- 
tografias é igual à tradução de uma língua para a outra. Ao mesmo 
tempo, isso normalmente implicará uma simplificação, quando o 
texto à mão é tão complexo quanto a televisão. O produto final, do 
mesmo modo, será normalmente uma simplificação - um conjunto 
de extratos ilustrativos, uma tabela de freqüências. 

Há casos onde a análise extrapola o texto, tanto em tamanho, 
como em complexidade. Muitas obras sobre crítica literária são des- 
se tipo, sendo o livro de Barthes (1975) S/Z um exemplo disso. No 
trabalho de Birdwhistell (1970), mencionado acima, foram necessá- 
rios dois anos e todo um livro par analisar uma seqüência de dois mi- 
nutos, de uma pessoa acendendo e fumando um cigarro. Talvez isso 
mostre o absurdo de tentar captar algo intrínseco ao texto concreto, 
em um trabalho analítico. 

Além disso, e como já se falou, os materiais de televisão não são 
definidos apenas a partir do texto. A dimensão visual implica técni- 
cas de manejo de câmera e direção, que são apenas secundariamen- 
te texto. Elas produzem sentidos, certamente, mas esses sentidos são 
gerados por técnicas de especialistas. 

Em vez de procurar uma perfeição impossível, necessitamos ser 
muito explícitos sobre as técnicas que nós empregamos para selecio- 
nar, transcrever e analisar os dados. Se essas técnicas forem tornadas 
explícitas, então o leitor possui uma oportunidade melhor de julgar a 
análise empreendida. Devido à natureza da translação, existirá sem- 
pre espaço para oposição e conflito. Um método explícito fornece um 
espaço aberto, intelectual e prático, onde as análises são debatidas. 



— 345 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



No restante do capítulo, irei descrever um método para analisar 
televisão, e esforçar-me-ei para tornar essa descrição tão explícita 
quanto possível. Este método foi delineado especificamente para 
analisar representações da doença mental na televisão britânica. 
Embora o método não se limite a esse assunto, a doença mental é o 
tópico que irei empregar para meus exemplos. No decurso da cami- 
nhada, alguns poucos pontos teóricos, que penso serem gerais, se- 
rão discutidos. 

Seleção dos programas 

A primeira tarefa é fazer uma amostra e selecionar o material 
para gravar diretamente. Que programas serão selecionados, de- 
penderá do tópico da área a ser pesquisada e da orientação teórica. 
Por exemplo, um pesquisador pode estar particularmente interessa- 
do em um tópico que é tratado, principalmente, por programas do- 
cumentários. Ele/ela pode até mesmo ter um conhecimento apro- 
fundado de programas que têm a ver com o tópico. Mesmo com esse 
nível de conhecimento, o processo de seleção não é simples. O que 
deixar fora é tão importante quanto o que vai se incluir, e irá afetar o 
restante da análise. As questões da omissão e da ausência eram cen- 
trais para os primeiros semiólogos (Barthes, 1972). Escolhas teóricas 
e empíricas influenciam a seleção dos programas ou histórias, que 
não são exemplos auto-evidentes do tópico em consideração. 

Um procedimento comum na seleção de programas é fazer uma 
ampla varredura do que é apresentado no tempo nobre, e tomar en- 
tão um tópico de interesse apresentado. Isso, é claro, significa ver o 
conjunto inteiro de informações, o que poderá se constituir em um 
processo muito lento. Na cobertura do tempo nobre, são centenas as 
horas a serem vistas. Gerbner e sua equipe (Signorelli, 1989) empre- 
garam esse método para estudar representações da violência no 
tempo nobre, por um período de 20 anos, nos Estados Unidos. Esse 
é também o caminho que escolhi para analisar as representações da 
loucura na televisão. 

No processo de registro, há pelo menos dois passos. O primeiro é 
quando e quanto tempo nobre registrar. Selecionei um período de 
oito semanas, no início do verão de 1992, e registrei o tempo nobre 
na BBCl(British Broadcasting Corporation) e ITV (Independent Tv), 
pois esses são os canais populares. Foram registradas rotineiramente 
as notícias, duas novelas, duas séries de drama e dois programas cô- 
micos em cada canal. Os documentários também foram incluídos. 



— 346 — 



14. ANÁLISE DE IMAGENS EM MOVIMENTO 



A escolha das datas foi por conveniência. Resultados diferentes 
poderiam ter aparecido, caso as gravações tivessem sido no outono, 
ou no inverno. Os meios televisivos são afetados pelo ciclo anual. 
Isso teria sido mais importante se o objeto de análise fossem histó- 
rias políticas. Deve-se notar que a amostragem randômica não supe- 
ra esse problema, pois a “população” não é homogênea. 

O problema seguinte foi a seleção dos extratos que apresentavam 
loucura. Quando uma representação é uma representação da loucu- 
ra? Por exemplo, o Glasgow Media Group (Philo, 1996) incluiu obi- 
tuários e shows cômicos em sua análise do tratamento da loucura pela 
mídia. Empreguei uma definição mais restrita, de acordo com Wahl: 

Eu estaria a favor, por exemplo, da presença, dentro da apresenta- 
ção da mídia, de um termo psiquiátrico específico (incluindo desig- 
nações vulgares, tais como “doido”, “louco varrido”, etc., bem 
como diagnoses formais, tais como esquizofrenia ou depressão), ou 
a indicação dada na receita de tratamento psiquiátrico, como crité- 
rios apropriados (1992: 350). 

É importante ser explícito sobre as razões da escolha de uma de- 
finição como a de Wahl. A escolha de tomar uma doença mental defi- 
nida como o foco de trabalho tem uma dimensão ética. A abrangên- 
cia da rede de psiquiatria hoje é tal, que quase todo problema huma- 
no pode se tornar objeto de sua área. Mas são aqueles com proble- 
mas mais severos que são expulsos e excluídos, e isso pode ser afeta- 
do pela maneira como eles são representados pela mídia. Há, pois, 
uma preocupação ética de enfocar distúrbios mentais suficiente- 
mente sérios a fim de que chamem a atenção de um psiquiatra. Tais 
preocupações éticas, particularmente quando têm a ver também 
com exclusão social, podem muito bem ser aplicadas a outros gru- 
pos de excluídos. 

O problema final, na seleção do conjunto de dados, tem a ver 
com as metáforas. A terminologia da doença mental é rotineiramen- 
te empregada para caçoar e insultar: “Você é muito louco”; “Quem é 
esse esquizo doido?”; “ela está louca de amor!” Os empregos da ter- 
minologia da doença mental são importantes para a representação 
geral da loucura na televisão. Eles foram levados em consideração 
na análise feita aqui. 

O uso metafórico da terminologia da doença mental pode ser re- 
lacionado, de maneira mais restrita ou mais ampla, às outras repre- 
sentações da loucura. Permanece, pois, a questão de que usos meta- 



— 347 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



fóricos incluir. Se a linguagem é, porém, um sistema, então os signos 
pertencentes a um contexto, quando presentes em um outro contex- 
to completamente diferente, irão ainda carregar consigo algum peso 
do sentido original. À primeira vista, a famosa frase “ela está louca 
de amor” parece ter pouco a ver com desordem psiquiátrica. Mas o 
termo “louco” , relativo a conceito há séculos, está ainda tingido com 
noções de extremismo e excesso, e até mesmo de dano emocional, 
quando colocado no seu novo contexto. 

A questão da definição tem de ser decidida para qualquer análise 
de tempo nobre na televisão, e há, certamente, outros tópicos (tais 
como deficiência física), onde a metáfora se constituirá em um pro- 
blema. A definição do que entra como uma representação do tópico 
de interesse irá implicar escolhas teóricas, mas também escolhas éti- 
cas, como foi discutido. 

Transcrição 

A finalidade da transcrição é gerar um conjunto de dados que se 
preste a uma análise cuidadosa e a uma codificação. Ela translada e 
simplifica a imagem complexa da tela. Os primeiros pesquisadores 
não tinham vídeo (Nunnally, 1961), e codificavam diretamente do 
ar. Seria possível fazer isso com um referencial de codificação de 
apenas duas ou três dimensões, mas algo mais detalhado exige o re- 
gistro do meio com palavras escritas. Esta, como já foi dito repetida- 
mente, é uma forma de translação. 

É importante decidir sobre a unidade de análise. Este é um pon- 
to bastante acentuado pelos analistas da conversação (Silverman, 
1993) e aqueles que produziram técnicas computadorizadas para 
analisar dados qualitativos, tais como ETHNOGRAPH e NUD*IST. 
No estudo que estou usando como ilustração, foi decidido que a uni- 
dade de análise seria uma tomada feita pela câmera de filmagem. 
Quando uma câmera mudava o conteúdo, uma nova unidade de 
análise começava. A definição da unidade de análise foi, por isso, ba- 
sicamente visual. 

Os analistas da conversação, ou os teóricos do discurso, tomam, 
basicamente, como sendo uma unidade de análise uma linha, uma 
sentença ou um parágrafo. A unidade está, conseqüentemente, ba- 
seada na fala. Ciente da importância dos aspectos não-verbais dos 
textos audiovisuais, escolhi a unidade de análise com base no visual, 
mas também, por motivos práticos, porque, na grande maioria dos 



— 348 — 




1 4. Análise de imagens em movimento 



casos, essas tomadas eram relativamente simples de serem trabalha- 
das. Há um espaço para o pragmatismo em análises complexas. 

A televisão é um meio audiovisual e deverá existir algum modo 
de descrever o visual, bem como a dimensão verbal. Enfatizei a di- 
mensão visual e chegou a hora de olhar para isso com um pouco 
mais de detalhe. É impossível descrever tudo o que está na tela e eu 
diria que as decisões sobre transcrição devem ser orientadas pela 
teoria. No estudo sobre loucura, foi proposto teoricamente que a do- 
ença mental era estigmatizada, vista como diferente e excluída. Foi 
proposto ainda que a representação disso iria, muitas vezes, tomar a 
forma de tomadas singulares, isoladas, e close-ups escrutinadores. 
Foi por isso decidido codificar o ângulo da câmera para cada unida- 
de de análise (cada tomada da câmera), e também codificar quantas 
pessoas apareciam em cada tomada. Isto foi para testar a idéia de 
que as pessoas mentalmente perturbadas são fotografadas de ma- 
neira diferente daquelas que não são diagnosticadas do mesmo 
modo. Neste caso, o procedimento pode, na verdade, ser visto como 
uma forma de teste de hipótese (Kidder & Judge, 1986). 

Diferentes orientações teóricas levariam a diferentes escolhas so- 
bre como selecionar e transcrever. Por exemplo, a tradição estrutura- 
lista/psicanalista, representada pela revista Screen, contaria uma histó- 
ria diferente (Cowie, 1979; MacCabe, 1976). Os teóricos de Screen en- 
focam o nível dos símbolos, especialmente aqueles que têm a ver com 
gênero e sexualidade, e relações inconscientes. Eles realizaram, pois, 
um trabalho detalhado com seqüências de tomadas opostas, que ser- 
vem para estabelecer relações entre personagens. A câmera “monta a 
cena” para a relação, filmando primeiramente um personagem; de- 
pois o segundo, do ângulo do primeiro; e finalmente o primeiro, do 
ângulo do segundo. O estudo da loucura não considerou seqüências 
individuais de tomadas, porque não havia nada na teoria que sugeris- 
se que isso seria importante. Está, contudo, aberto para ser questiona- 
do sobre escolhas feitas, a partir de uma orientação teórica diferente. 
Poderia haver casos em que seqüências de tomadas opostas pudessem 
significar dificuldade e intimidade, mas minha decisão foi focar a par- 
te visual da análise, a partir do ângulo da câmera. 

As disposições de ânimo e a expressão de desconformidade po- 
dem também ser representadas através da iluminação e da música, e 
através de outros efeitos. Fotografias sombreadas implicam algo pe- 
rigoso que deve ser ocultado e música misteriosa contrasta com o 
tom alegre da maioria da música na televisão. Se as pessoas com pro- 



— 349 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



blemas mentais são filmadas com fotografias sombreadas, ou com 
um fundo musical misterioso, isso mais uma vez enfatiza a diferença. 

O ângulo da câmera, tomadas individuais ou grupais, ilumina- 
ção e música, são todas convenções de filmes e televisão. Na verda- 
de, música misteriosa pode se referir diretamente a convenções de 
filmes de horror. Há um espaço diagético com suas próprias conven- 
ções. Uma análise estruturalista iria focar esse espaço em sua especi- 
ficidade. O método que proponho, contudo, é o d e contrastes. Quere- 
mos investigar se determinado grupo na sociedade e determinada 
situação - pessoas mentalmente enfermas e a doença a elas associa- 
da - é representada diferentemente da maneira como são represen- 
tadas pessoas “comuns”, que aparecem na televisão na mesma hora. 

Gilman (1982) desenvolveu um trabalho muito detalhado sobre 
representações visuais do doente mental, desde a Idade Média. Ele 
se concentrou na arte e na escultura, em vez de nas imagens em mo- 
vimento. Postura, comportamento, gesto, tamanho e muitas outras 
coisas foram importantes para esse empreendimento. A análise tem 
algumas semelhanças com os teóricos de Screen mencionados acima. 

Há ainda outros aspectos da dimensão visual da televisão que 
poderiam ter sido codificados: por exemplo, as cores das roupas, 
quando roupas escuras implicam depressão, e mesmo a relativa po- 
sição dos personagens em tomadas com duas pessoas e tomadas de 
grupo. Por exemplo, ficou evidente, no caso de uma pessoa depri- 
mida, estar ela sempre em uma posição “inferior” à de outros perso- 
nagens centrais da narrativa. Se os outros estivessem de pé, ela esta- 
ria sentada; se os outros estivessem sentados, ela estaria curvada. 
Esses aspectos não foram sistematicamente anotados na transcrição, 
mas eles poderiam ter sido. 

Outros temas, outras posturas teóricas, irão exigir a seleção de 
diferentes aspectos do texto visual para transcrição. O que é impor- 
tante é que os critérios para seleção sejam explícitos, e tenham uma 
fundamentação conceptual. Deve ficar teórica e empiricamente ex- 
plícita a razão de certas escolhas terem sido feitas e não outras. 

À luz dessas escolhas, o material foi selecionado, registrado e 
transcrito. A transcrição é feita em duas colunas e as tomadas da câ- 
mera estão assinaladas por novos parágrafos. A coluna da esquerda 
descreve o aspecto visual da história, nos termos propostos acima, e 
a da direita é uma transcrição literal do material verbal. 

O que eu quero dizer com “literal”? Não é que todas as pausas, he- 
sitações, falsos começos e silêncios tenham sido anotados. Haverá 



— 350 — 




14. ANÁLISE DE IMAGENS EM MOVIMENTO 



ocasiões em que tais aspectos são importantes. Mesmo nas represen- 
tações da loucura, poder-se-ia levantar a hipótese de que as pessoas 
mentalmente enfermas sejam diferenciadas por variados padrões, in- 
flexões e o tom de seus discursos. Estas características supralingüísti- 
cas são significativas para determinados pontos de vista teóricos e são 
importantes em determinadas ocasiões para quase todos os pontos de 
vista teóricos. Em situações diferentes das de doença mental, poderia 
ser de importância central incluir esses fatores. Decidiu-se, contudo, 
que o fundamental seria o conteúdo semântico do discurso televisivo so- 
bre loucura, e por isso a transcrição foi literal, mas omitiu os tipos de 
fenômenos realçados pelos analistas da conversação. 

O conteúdo, contudo, nunca vem sozinho. Veremos na seção se- 
guinte, que cada história foi discutida a partir de sua estrutura narrati- 
va. Embora esta seja estritamente uma questão de codificação, e não de 
transcrição, é importante ressaltar que a estrutura não foi ignorada. 

São apresentados aqui dois exemplos de transcrições de dados 
sobre representações da loucura na televisão. O primeiro é mais di- 
reto: foi fácil de transcrever. O segundo é um extrato da parte mais 
difícil de todo o conjunto de dados. E teoricamente importante que 
a história tenha sido difícil de transcrever, pois ela incorporava idéias 
de caos, transgressão e diferença. Isso está coerente com a teoria que 
guiou o referencial de codificação, como veremos na próxima seção. 
Os códigos da câmera são discutidos posteriormente e apresentados 
na Tabela 14.1. 



"A Conta", I TV, 28 de maio de 1992 

Dimensão visual Dimensão verbal 

Em frente ao hotel, retórica, PO, Dl 1 : lan. 

Dl sai, outro Dl entra no quadro, DI2: Hello, Jack, como vai? Conte-me. 
ambos MW Dl 1 : Morgan está no hospital agora. Ele parece 

se adequar ao autor dos três assassinatos. Ele é 
um alcoólico com uma história de desordem 
psiquiátrica, sem antecedentes por ofensas 
violentas. 

DI2: Como você chegou até ele? 

Dll : O Sr. Sargento R encontrou objetos 
pessoais que pertencem à vítima. 

PH. Eu suponho que ele poderia ter encontrado 
o corpo perto da linha férrea e então o roubou. 
Mais provável que ele a tenha matado antes de 
jogá-la lá. 

DI2: E nossa moça AA é certamente sua última 
vítima. 

Dll: Sim. Deve ter havido uma briga violenta. 
Senão. 



— 351 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



"Casualty", BBC1, 4 de julho de 1992 
Dimensão visual 

Uma mulher com o braço em uma tipóia 
sentada MCU, um homem andando, salta 
sobre ela, o homem CU, depois ECU, a 
ataca, ela luta 

A mulher se levanta, o homem a 
agarra, a morde, ECU, ataca 
Os funcionários chegam correndo WA 
Enfermeira em um pequeno 
compartimento com mulher2, entra uma 
segunda enfermeira, saem as duas 
enfermeiras 

Os funcionários lutando com o 
homem, WA, mulherl é 
levada, perturbada, todos gritando 
Cena de tracking - câmera 
acompanhando a ação 
A mulherl e duas enfermeiras passam 
para o compartimento ocupado pela 
mulher2, MCU, ela sai, caminha pelo 
corredor e pega uma garrafa sentando 
em um vagonete. Cruza pelo locai da 
cena anterior com um homem que agora 
tem um lençol na sua cabeça 

Outras pessoas chegam para controlar o 
homem, WA 

Charlie começa a tirar o lençol da cabeça 
do homem 

O lençol é removido, o homem está 
deitado no chão, WA 



Dimensão verbal 

O homem: ... diabo, querida essas são 
coisas horríveis, demônios pretos escuros. 
Você sabe o que gostaria de fazer com 
eles? Gostaria de morder as cabeças dos 
desgraçados e colocá-los 
Entre meu 

Mulherl : Afaste-se de mim. 

Homem: Resmunga. Grita. 

Enfermeira: Ah, depressa, há um sujeito 
aqui saindo fora de si. Venham. 

Mulherl : Oh, meu braço, meu 
braço, oh, oh, meu Deus, oh. 



Enfermeira de plantão (Charlie): 

Calma, calma. 

Enfermeira: Sossega. 

Charlie: Não fique ali de pé. 

Homem: Está me faltando ar. 

Charlie: Tudo bem, tudo bem. Devagar. 
Tudo bem, tudo bem. 

Porteiro: Não, eu, eu não. 

Homem: Vou desmaiar. 

Charlie: Tudo bem, tudo bem. Vou tirá-lo 
agora. Agora você se comporte. 

Homem: Tudo bem ... (inaudível)... que 
bom. 



O homem dá um soco no rosto de 
Charlie, WA 

Tomadas aéreas do caos 
A mulher2 saindo do hospital, oficiais da 
polícia cruzam por ela e entram MW 



Charlie: Ohl 
Homem: Oh! 
(Sem fala) 



O delineamento de um referencial de codificação 

A codificação completa está na Figura 14.1. Ela tem uma estrutu- 
ra hiei árquica de acordo com a afirmativa de que as representações 
de loucura na televisão possuem significações em mais de um nível. 
Essa seção irá se concentrar, contudo, na teoria subjacente ao refe- 
rencial de codificação e em seu status epistemológico. Tentarei deta- 
lhar com palavras o que está em forma diagramática. 



— 352 — 




A 

Ambiente da cena 



1 

Neutro 



2 

Desorganização 



a) perigo b) lei c) obsessão d) estranho e) maníaco 



f ) doente g) negligência h) perturbação I) luta j) sucesso k) ajuda l)comédia m) vítima n) miscelânea 



1 

Presente 

a até n como acima 



B 

Descrição narrativa 

2 3 

Reconstrução Situação neutra/fofoca 

a até n como acima 



C 

Explicação 



1 


2 


3 


4 


5 


Estresse/trauma 


Médica 


Loucura 


Negligência 


Miscelânea 



D 

Resolução 



1 

Ausente 



2 

Presente 



a) Problemas com a lei e a ordem b) Doença a) Lei e ordem c) negligência d) Fracasso e Miscelânea d) sucesso e) Miscelânea 

b) Saúde c) Apoio 

Figura 14. 1 - Referencial de codificação com quatro elementos na?rativos: ambiente da cena , descrição 
narrativa f explicação e resolução. 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A L2 de Bernstein é o referencial de codificação apropriado ou a 
linguagem da descrição. O referencial de codificação empregado no 
estudo das representações da loucura na televisão era muito comple- 
xo e eu gostaria de acrescentar mais dois pontos. Primeiro, este ins- 
trumento tem sua fundamentação teórica. Segundo, ele foi planeja- 
do de tal modo que derivações da teoria possam ser refutadas. Con- 
sideremos estes dois pontos na seqüência. 

A teoria usada, e modificada, foi o trabalho de Moscovici (1984; 
1994) sobre representações sociais. Um dos pontos centrais da teoria 
é que as representações sociais funcionam para tornar o não familiar 
mais familiar. Este ponto foi também aplicado às representações tele- 
visivas por Roger Silverstone (1981). Minha argumentação é que, des- 
se ponto de vista, a loucura é um caso especial. Por razões sociais e psi- 
cológicas, as representações sociais da doença mental, estejam elas na 
mídia ou na conversação cotidiana, mantêm a loucura em uma posição 
não familiar. A familiarização, social ou psicológica, não estrutura o 
campo representacional da loucura. Há duas razões para isso. A pri- 
meira é que o conteúdo de muitas representações enfatiza risco, amea- 
ça e perigo. O homicida louco ou o assassino psicótico é um tema sali- 
ente na mídia britânica. Mas além disso, a estrutura das representa- 
ções a respeito da loucura é instável. Há uma miríade de sentidos de 
loucura que resistem à fixidez e trazem ameaças, no sentido semióti- 
co. O sentido é rompido pelo caos e pela transgressão. 

Moscovici criou o conceito de ancoragem. Um objeto social novo, 
e não familiar, se tornará mais familiar à medida que assimilado a 
um outro que já o seja. Meu parecer é que a loucura ou não é assimi- 
lada de modo algum, e permanece excluída, ou é assimilada a outros 
objetos que nunca se tornam totalmente familiares, tais como pes- 
soas com deficiências na aprendizagem, pessoas com deficiências fí- 
sicas, pessoas ou coisas que se relacionam com algo monstruoso. 

Que significa isso para um referencial de codificação? O referen- 
cial de codificação foi construído a partir de duas fontes: a teoria re- 
ferida acima e também leituras preliminares dos dados. Em 157 ho- 
ras de horário nobre, houve seis horas de material relevante à saúde 
mental. Estas são as seis horas que foram transcritas e influenciaram 
o delineamento do referencial de codificação. 

Até agora, teorizamos a codificação do conteúdo. Mas muitas 
formas de texto e exercícios com textos possuem uma estrutura visí- 
vel. Tal estrutura é muitas vezes referida como forma narrativa (To- 



— 354 — 




14. Análise de imagens em movimento 



dorov, 1977; Chatman, 1978). A estrutura narrativa se refere ao for- 
mato de uma história, no sentido de que ela possui um começo iden- 
tificável onde a situação da peça muda, um meio onde as diferentes 
forças desempenham seus papéis, e um fim onde temas importantes 
são articulados. Esse fim da história é muitas vezes referido como o 
“fechamento da narrativa”. Há ainda uma questão que se refere à 
“voz” na narrativa e à identidade do narrador. Esta questão não foi 
incluída, pois parece menos importante no texto televisivo, do que, 
por exemplo, no romance. 

As histórias de televisão partilham da estrutura da narrativa. De 
acordo com a teoria da instabilidade semiótica, delineada acima, eu 
estava interessada em conhecer se as histórias sobre loucura eram, 
narrativamente falando, distintas daquelas sobre outros tópicos. Por 
exemplo, mostravam elas um fechamento narrativo? 

O referencial de codificação, por isso, tinha uma estrutura hie- 
rárquica, com o topo de cada hierarquia constituído por um elemen- 
to narrativo (ver Figura 14.1). O corpo da história foi codificado de 
acordo com as 14 categorias de conteúdo, sendo necessário um nú- 
mero tão grande para se poder captar os sentidos múltiplos e mutá- 
veis da loucura. A presença, ou ausência, de resolução, e o tipo de re- 
solução, foram também codificados. 

Tinha avançado a idéia de que a loucura e outros objetos de dife- 
rença e exclusão rompem a certeza semiótica, por serem construídos 
por sentidos múltiplos, conflitantes e mutáveis. Ao mesmo tempo, 
eles trazem ameaças, pois alguns desses sentidos são perigosos. Que 
poderia acontecer se tal teoria estivesse errada? A pesquisa qualitati- 
va é muitas vezes criticada por ver apenas aquilo que ela quer ver. 
Mas a teoria pode ser desconfirmada. Por exemplo, poderíamos cri- 
ticar a afirmação de que seguramente o sentido dominante da doen- 
ça mental, na nossa cultura, e também na mídia, seja precisamente 
“doença”. Nesse caso, a presente análise iria revelar uma alta pro- 
porção de unidades na categoria “doença”, e bem poucas seriam 
alocadas em outros códigos. A medicina seria o discurso dominante 
com respeito à doença mental na televisão, e este sentido seria gene- 
ralizado e iria ancorar a metade “mental” da “doença mental” . Mas 
não foi isso que foi encontrado. A estrutura do referencial de codifi- 
cação, contudo, torna possível identificar um discurso dominante e, 
conseqüentemente, desconfirmar a teoria de que a diferença é tam- 
bém composta de ambigüidades semióticas e, algumas vezes, de um 
caos de sentidos (ver o extrato Casualty). 



— 355 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



O método dos contrastes, empregado junto com o material vi- 
sual, dá sustentação também à possibilidade de desconfirmar a teo- 
rização. Seria possível, por exemplo, descobrir que não haveria dife- 
rença alguma nos ângulos da câmera empregados para filmar pes- 
soas apresentadas como doentes mentais, quando comparadas com 
as pessoas sem essa qualificação. Desse modo, a proposta de que as 
técnicas de filmagem discriminam a pessoa louca como diferente, 
isolada e excluída, deveria ser rejeitada. 

A mecânica da codificação 

Começarei com a dimensão verbal do texto. O referencial de co- 
dificação descrito acima, possui basicamente três níveis, e é muito 
provável que outros referenciais de codificação, planejados para se- 
rem usados com material audiovisual, terão mais de um nível. Deno- 
minei o primeiro nível com uma letra maiúscula, o segundo com 
uma minúscula e o terceiro com uma letra em caixa baixa. Os códi- 
gos se apresentam da seguinte forma: 

A2a - ambiente da cena, ruptura, risco 

B2f- descrição da narrativa, reconstrução, doença 

Cl — explicação, estresse (os códigos de “explicação” possu- 
em apenas dois níveis) 

Dlc - resolução, ausência, negligência 

Cada unidade de análise (tomada da câmera) é alocada em um 
código. Haverá ocasiões em que um único código não irá captar to- 
talmente a densidade do sentido da unidade, e nesses casos, dois, ou 
mesmo três códigos, necessitam ser alocados. 

Há, aqui, uma questão de fidedignidade. Como dissemos, o pro- 
cesso de codificação é um processo de translação. O pesquisador 
está interpretando o sentido de cada unidade de análise. Embora as 
interpretações estejam restringidas tanto pela teoria, quanto pelo 
referencial de codificação, faz sentido perguntar se outros codifica- 
dores teriam chegado à mesma conclusão. 

Foi feito, então, um exercício para ver que grau de presença de 
atributos comuns poderia haver, quando oito pessoas separadas co- 
dificassem três histórias selecionadas. O nível de concordância ficou 
entre 0.6 e 0.78. O nível de concordância se mostrou diretamente 
relacionado com o quanto de familiaridade o codificador tinha com 



— 356 — 




1 4. ANÁLISE DE IMAGENS EM MOVIMENTO 



a teoria e com o referencial de codificação. Embora essa questão to- 
que em um dos problemas mais espinhosos da avaliação de fidedig- 
nidade, ela mostra que o procedimento de codificação é pelo menos 
replicável. Do ponto de vista epistemológico, que estou seguindo, os 
codificadores estavam empregando um conjunto comum de proce- 
dimentos de translação, para transformar a transcrição em uma sé- 
rie de códigos. O ponto crucial é que esse conjunto de procedimen- 
tos de translação se torne explícito e acessível à inspeção, no diagra- 
ma do referencial de codificação (ver Figura 14.1). 

Voltemos agora à dimensão visual. Aqui as coisas são mais sim- 
ples, pois uma vez feitas as escolhas de seleção, a transcrição e a codi- 
ficação eram mais diretas. Primeiro, é codificado o ângulo da câme- 
ra para cada tomada do conjunto de dados. Em segundo lugar, é 
anotado se a tomada é única ou dupla (duas pessoas no quadro), ou 
uma tomada de grupo. Finalmente, é feita uma contagem do núme- 
ro de tomadas que tinham uma iluminação sombreada e o número 
de vezes em que a música era usada, e de que gênero. 

Os códigos para análise visual podem ser vistos nos extratos. Eles 
são, na verdade, transcritos e codificados em um movimento único. 
Embora existam infinitas possibilidades de filmagem dos persona- 
gens, a televisão faz uso de algumas convenções retiradas da fotogra- 
fia. Isso nos traz vantagens, pois é sabido que, por exemplo, o close-up 
é uma tomada que expressa emoção e escrutínio. Por outro lado, as 
tomadas de close-up médio e a abertura média, muitas vezes signifi- 
cam autoridade (como no caso de locutores de notícias e peritos). O 
conjunto completo de códigos visuais pode ser visto na Tabela 14.1. 



Tabela 14.1 - Análise visual: códigos dos ângulos da câmera 



ECU 


Close-up máximo 


cu 


Close-up 


MCU 


Close-up médio 


MW 


Abertura média 


WA 


Angulo bastante aberto 


Tracking 


Câmera seguindo a ação 


Ambiente 


Uma tomada que não seja uma pessoa 



O método dos contrastes implica uma comparação entre os ân- 
gulos da câmera especificamente usados para filmar aquelas pessoas 
consideradas loucas, e para filmar aquelas que não eram assim con- 
sideradas. Sendo que as convenções das tomadas são parcialmente 
conhecidas, isso nos permite inferir se as pessoas mentalmente per- 
turbadas são mostradas diferentemente das outras no código visual. 



— 357 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Normalmente, os dois modos, o visual e o verbal, irão contar a 
mesma história, pois essa é uma convenção na televisão. Há, contu- 
do, a possibilidade de conflito, ou contradição (ou ironia e sarcasmo) 
entre os dois: por exemplo, uma fotografia de uma típica vovozinha, 
com uma criança no colo, enquanto é ouvida a voz do repórter des- 
crevendo o assassinato por ela cometido, das duas crianças de sua vi- 
zinha. Normalmente, não restará dúvida sobre qual dos modos car- 
rega o peso do sentido, mas quando há um conflito equilibrado, isso 
deve ser apontado. 

Tabulação dos resultados: a questão dos números 

A apresentação dos processos descritos acima será feita através de 
tabelas de freqüências. Quanto a isso, o procedimento é uma forma 
de análise de conteúdo, que data de um artigo seminal de Berelson 
(1952) e apresentado em várias coleções, nas décadas de 1950 e 1960 
(para um exemplo relativamente recente ver Krippendorff, 1980). 

A análise de conteúdo foi criticada pelos teóricos dos meios de 
comunicação, tais como Allen (1985), e apenas parcialmente aceita 
por pesquisadores como Leis setal. (1986). Tal crítica provém de en- 
foques semiológicos no tratamento de textos. Afirma-se que núme- 
ros não podem ser significativamente aplicados a significações, e que 
as simples contagens das vezes que uma palavra, ou um tema, apare- 
cem no texto, ignoram a estrutura e o contexto. O livro S/Z de Bar- 
thes ilustra muito bem a que minúcia se pode chegar em uma leitura 
semiótica de um texto. Este é um exemplo onde a translação não 
constitui uma simplificação, mas é uma exegese de uma curta histó- 
ria que chega a ter o tamanho de um livro. 

Tomemos estas críticas uma por vez. A primeira é a afirmação de 
que sentidos não podem ser contados. Isto é, os sentidos são sempre 
específicos ao contexto, e conferir um número a unidades semânti- 
cas sugere uma equivalência espúria de diferentes instâncias. Os sen- 
tidos não são discretos, e mesmo os valores são demasiado inefáveis 
para serem mensurados. 

Osgood (1957) foi um dos primeiros a contar sentidos. É impor- 
tante notar que Osgood desenvolveu uma teoria do sentido que ti- 
nha uma orientação neocomportamentalista, de tal modo que, em- 
bora enfocando o texto, ele podia afirmar que sua análise estava teo- 
ricamente fundamentada. O instrumento mais importante criado 
por esse enfoque foi o diferencial semântico (Osgood et al, 1857). 
Isto é evitado por formas de análise com base mais literária. 



358 — 




1 4. ANÁLISE DE IMAGENS EM MOVIMENTO 



Embora a teoria pareça hoje absurda, este é um primeiro exem- 
plo de uma tentativa de semântica quantitativa, dentro de um refe- 
rencial teórico específico. 

Osgood tinha uma teoria neocomportamentalista de sentido. O 
método descrito acima tem suas raízes teóricas em noções de repre- 
sentação social (Moscovici, 1984; Jodelet, 1991). Os números em ta- 
belas, por isso, não estão flutuando livremente, mas estão ancorados 
em uma perspectiva conceptual. O que um número significa, depen- 
de da natureza do material empírico e também da natureza da lin- 
guagem da descrição. Não há nada de incomum nisso. A matemática 
emprega teorias, inclusive as que lidam com contingência, aleatorie- 
dade e probabilidade. 

Então, o que significa exatamente contar representações, sentidos 
ou outras técnicas de visualização? A Tabela 14.2 mostra o resultado 
da análise das representações da loucura para os dois primeiros ele- 
mentos da narrativa (ambiente da cena e descrição da narrativa), com 
relação às notícias. A tabela deve ser lida como um mapa. Ela mostra 
os pontos de ênfase e insistência, e os pontos de carência e ausência 
nas informações das notícias. Não seria sensato dizer que houve “duas 
vezes mais risco do que doença”, embora uma leitura métrica das fi- 
guras poderia chegar a tal conclusão. Faz mais sentido dizer que o ris- 
co dominou os temas da doença, e que a falta de temas de sucesso e 
luta, dizem algo significativo sobre como os problemas de saúde men- 
tal são representados nas notícias. O que está ausente é tão importan- 
te como o que está presente, como nos ensinaram os semiólogos. 



Tabela 14.2 - Exemplos dos resultados de análise de conteúdo em forma tabular: dis- 
tribuição de frequências dos elementos semânticos no ambiente da cena e na descri- 
ção das tomadas nas notícias 





Risco 


Lei 


Desvairado 


Estranho 


Maníaco Doente Negligência 


N°de 

unidades 


168 


60 


9 


1 


1 


84 


63 


% total 
(N=697) 


24.1 


8.6 


1.3 






12.1 


9.0 






Perturbação 


Luta Sucesso 


Ajuda 


Cômico 


Vítima 


Miscelânea 


N° de 
unidades 


28 




8 9 


25 


0 


7 


67 


% total 
(N=697) 


4.0 




1.2 1.3 


3.6 




1 


9.6 



— 359 — 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Disse acima que era possível, com o material visual, empregar 
um método de contrastes. Sendo que tanto os doentes mentais como 
os mentalmente sadios aparecem no programa, sua descrição visual 
pode ser comparada. A Tabela 4.3 mostra tal comparação. Deve-se 
notar que é empregada a medida do X quadrado, o que significa di- 
zer que o emprego de números para as informações vai além dos 
mapas. Torna-se mais fácil conferir números reais a dados visuais, 
devido às convenções discutidas acima. Mesmo aqui, o pressuposto 
sustenta que números não são indicadores rígidos, mas tipos de sig- 
nos. Apesar disso, altos níveis de significância são mostrados. 



Tabela 1 4.3 - Exemplo de resultados tabulares de análise visual: tipo de tomada e 
personagem , na novela "Coronation Street" 



Tipo de tomada 


Mrs Bishop* 


B1SI9S51 


Outros 


Total 


ECU/CU 


45 


8 


9 


62 


MCU 


42 


33 


41 


116 


MW 


22 


36 


16 


74 


Outro 


22 


9 


3 


34 


Total 


131 


86 


69 


286 



X quadrado - 45.6; graus de liberdade = 6; p <0.001 
* que sofre de surtos mentais 
** um amigo que tenta ajudar 



Passemos agora à crítica de que a análise de conteúdo ignora a 
estrutura. Esta crítica se sustenta. Se nós aprendemos alguma coisa 
de Chomsky, é que a estrutura carrega um sentido. E isso foi levado 
em conta na análise acima. Sendo que estamos lidando com material 
audiovisual, a estrutura foi teorizada em termos de forma narrativa. 
Na verdade, muitos semiólogos empregaram este conceito, deriva- 
do do trabalho de Propp (1969) e Lévy-Strauss (1968). A estrutura 
narrativa, na televisão, é muitas vezes aberta - por exemplo, nas no- 
velas, para manter o suspense. Mas a análise da estrutura narrativa 
na representação de pessoas consideradas loucas, mostrou que a fal- 
ta de um fechamento na narrativa era a norma. Isto, está claro, vem 
reforçar a idéia de que as representações da loucura, na televisão, 



— 360 — 













1 4. ANÁLISE DE IMAGENS EM MOVIMENTO 



são caóticas e resistem à fixidez das âncoras. Vemos aqui representa- 
ções muitas vezes sem estrutura. A Tabela 14.4 mostra os resultados 
da análise de uma estrutura narrativa em programas que apresen- 
tam dramas. A maioria das seqüências ou não têm final algum ou 
não trazem uma restauração da harmonia social. 



Tabela 1 4.4 - Esfrufura narra f/va: distribuição de freqüência de tipos de seqüência 
narrativa no drama televisivo 

Como pode ser visto no referencial de codificação, as histórias foram codificadas de 
acordo com sua estrutura. Para cada unidade era conferido um código, e depois a 
estrutura da história foi sintetizada. Essa tabela apresenta os códigos e os resultados 
para um drama. 

Al - ambiente da cena, neutro 
A2 - ambiente da cena, ruptura 
BI - descrição narrativa no presente 

B2 - descrição narrativa na forma de reconstrução de acontecimentos 
B3 - fatos neutros (notícias), ou fofoca (drama) 

C - explicação 

Dl - resolução com ausência de harmonia social 
D2 - harmonia social restabelecida 



Seqüência narrativa Número 



A2/B1/D1 29 

A2/B1/D2 4 

A2/B1 12 

BI /Dl 19 

B1/D2 7 

Somente BI ou somente B3 28 

Somente A2 8 

Somente Dl 3 

Somente D2 4 

Outro 7 

Total 121 



Outro método de apresentar as informações é empregar citações 
ilustrativas. Em uma análise onde o método é teoricamente funda- 
mentado e onde as informações são também apresentadas numerica- 
mente, pode-se admitir que citações em forma de exemplos possam 
ser empregadas para ilustrar e confirmar, ou desconfirmar, as propo- 
sições teóricas e metodológicas. Em outras palavras, as regras para a 
seleção de citações ilustrativas devem ser, elas próprias, teoricamente 
fundamentadas. Isto quer dizer que não é necessário selecionar cita- 
ções ilustrativas aleatoriamente. Ao contrário, elas devem ser selecio- 
nadas tanto para confirmar ou desconfirmar os princípios teóricos e a 
dimensão dos dados empíricos apresentada em forma de números. 



361 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Conclusão 

Este capítulo tentou fazer duas coisas. Em primeiro lugar, pro- 
pus, de maneira tentativa, alguns métodos para analisar programas 
televisivos e outro material audiovisual. Algumas das técnicas apre- 
sentadas devem ser adaptadas para outros conteúdos, que não a lou- 
cura. Mas em segundo lugar, tentei tornar claros os riscos epistemo- 
lógicos, e as conseqüências éticas, desse tipo de análise. 

Correndo o risco de repetir, diria que cada passo, na análise do 
material audiovisual, é uma translação e, em geral, uma simplificação. 
Não há uma leitura perfeita do texto. A questão é, então, ser explícito 
sobre os fundamentos teóricos, éticos e práticos da técnica e abrir um 
espaço onde o próprio trabalho possa ser debatido e julgado. 



Passos na análise de textos audiovisuais 

1. Escolher um referencial teórico e aplicá-lo ao objeto empírico. 

2. Selecionar um referencial de amostragem - com base no tempo 
ou no conteúdo. 

3. Selecionar um meio de identificar o objeto empírico no referen- 
cial de amostragem. 

4. Construir regras para a transcrição do conjunto das informações 
- visuais e verbais. 

5. Desenvolver um referencial de codificação baseado na análise 
teórica e na leitura preliminar do conjunto de dados: que inclua 
regras para a análise, tanto do material visual, como do verbal; 
que contenha a possibilidade de desconfirmar a teoria; que in- 
clua a análise da estrutura narrativa e do contexto, bem como das 
categorias semânticas. 

6. Aplicar o referencial de codificação aos dados, transcritos em 
uma forma condizente com a translação numérica. 

7. Construir tabelas de freqüências para as unidades de análise, vi- 
suais e verbais. 

8. Aplicar estatísticas simples, quando apropriadas. 

9. Selecionar citações ilustrativas que complementem a análise nu- 
mérica. 



— 362 







1 4. Análise de imagens em movimento 



Referências bibliográficas 

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15 

Análise de ruído e música como dados sociais 

Martin W. Bauer 



Palavras-chave : cantométrica; gostos musicais; indicadores cul- 
turais; ruído; complexidade melódica: ffeqüência, magnitude, pro- 
gressão; notação e transcrição; som; música; cenário sonoro; senti- 
do musical; evento musical total. 



A paixão pela música é uma confissão. Nós sabemos mais sobre 
uma pessoa desconhecida, mas amante da música , do que sobre 
uma pessoa não amante da música com a qual nós vivemos toda 
nossa vida (E.M. Cioran). 

Se você quiser saber algo sobre a década de 1960 , escute a música 
dos Beatles (Aaron Copland). 

A música de uma época pacífica é calma e alegre, e assim é também 
seu governo. A música de um estado decadente é sentimental e triste, 
e seu governo corre perigo (Hermann Hesse, Glasperlenspiel). 

Poucas vezes houve um movimento na arte que mostrou tão clara- 
mente como o jazz as características das forças sociais por detrás 
dele ... a forma da própria música — a duração e as batidas concre- 
tas de suas notas - foi, em grande parte, determinada pelas mu- 
danças na estrutura da sociedade (J.L. Collier). 

Estas citações acenam para o potencial da música em espelhar o 
mundo social, atual ou passado, que a produz e a consome. Para Aa- 
ron Copland, os Beatles expressam a cultura da década de 1960 (ver 
Macdonald, 1995); para Hermann Hesse, o caráter da música está 
correlacionado com a situação de uma época e com seu governo; e 
para J.L. Collier, o estilo dissonante do jazz reflete as forças sociais 
que mudaram a sociedade americana durante a década de 1940. 



365 — 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Neste capítulo, apresento alguns dos enfoques metodológicos 
para a construção de indicadores culturais a partir da música e do 
ruído que as pessoas produzem e aos quais elas estão expostas. Indi- 
cadores culturais mensuram elementos da vida cultural que refletem 
nossos valores e nosso mundo vivencial; eles mudam lentamente 
através de longos períodos e estão sujeitos apenas até certo ponto à 
manipulação social (Bauer, 2000). 

As tentativas de considerar a música e o ruído como dados sociais 
devem pressupor uma relação sistemática entre os sons e o contexto 
social que os produz e os recebe. São necessários três passos na análi- 
se para construir indicadores culturais para materiais musicais ou 
sonoros: 

1 . Necessitamos registrar e transcrever o evento sonoro para fins 
de análise. 

2. Esta transcrição deve apresentar o som e a música de forma 
semelhante à fala, com uma ordem de elementos (paradigma, 
linguagem) dos quais se podem construir seqüências, de acor- 
do com as regras de produção (sintagma, fala/gramática). Os 
elementos do som estão ligados em seqüências, mais ou menos 
complexas. Na música, nós descrevemos aqueles com as di- 
mensões, por exemplo, de ritmo, melodia e harmonia; para os 
ruídos, nós reconhecemos ciclos, sonoridade e tipo. 

3. Uma estrutura particular de sons está associada a um grupo 
social que a produz, ao qual está exposta, e que a escuta. 

Esta última correlação é um problema teórico muito debatido 
(Martin, 1995). Uma versão mais moderada defende que uma corre- 
lação empírica entre variáveis sonoras e variáveis sociais pode ser 
identificada, devido ao caráter funcional da música e do ruído, em 
muitos contextos sociais (indicadores). Uma versão mais forte dessa 
dependência defende que as similaridades estruturais estão necessa- 
riamente presentes: a ordem do mundo social está espelhada na or- 
dem dos elementos musicais (homologias). Aversão mais forte, e ao 
mesmo tempo a versão mais fraca, defende que as atividades musi- 
cais, sendo independentes do campo social existente, possuem o po- 
der utópico de antecipar a ordem social iminente: prestando-se 
atenção a determinados tipos de expressão musical, poderemos pre- 
ver o futuro (função profética). 

Não quero me concentrar na evidência etnomusicológica, socioló- 
gica, sociopsicológica ou filosófica da relação entre música e socieda- 



— 366 




1 5. ANÁLISE DE RUÍDO É MÚSICA... 



de. Meu interesse é com o que se pode derivar de tais argumentos: 
como demonstrar, ou refutar, que os sons espelham, ou antecipam, os 
contextos sociais que são sensíveis a eles. Os sons são condicionados 
por seus contextos sociais e por isso são marcados por eles. Neste sen- 
tido, podemos considerar os sons como um meio de representação. 

Tagg (1982) distingue quatro instâncias de som musical (ver Ta- 
bela 15. 1): o som como concebido por um compositor (MI); o som ob- 
jeto, quando executado e possivelmente registrado (M2); o som como 
transcrito em uma notação (M3); e finalmente o som como ele é apre- 
ciado (M4). Os sons são produzidos por alguém, recebidos por outros, 
tanto propositada, como involuntariamente. A produção de eventos 
sonoros é muitas vezes chamada de poiesis, enquanto que sua recepção 
e apreciação são chamadas de aesthesis. Esta produção pode ser inten- 
cional, como no caso da música, ou não intencional, como no caso de 
ruídos resultantes de atividades diárias, como dirigir um carro. Os 
sons são apreciados intencionalmente, como por exemplo um con- 
certo de rock, ou não intencionalmente, com os ruídos provenientes 
do trânsito, ou do “gosto musical” dos vizinhos. A apreciação dos 
sons, nestes dois contextos, será provavelmente diferente. 



Tabela 15.1- Um sistema para análise do som 



Atividades 


Traços, fixações 


Contextos 


Poiesis, produção (Ml) 


Registro do som (M2) 


Contexto histórico 




Transcrição (M3) 


Sistema socia! 


Aestesis, recepção (M4) 


Codificação secundária 
(M3) 





Os sons são registrados a fim de se obter um traço material. A fim 
de facilitar a análise, este registro necessita ser transcrito em um siste- 
ma de símbolos que realce certas características dos eventos, enquan- 
to outras são excluídas. Em última análise, esses eventos sonoros têm 
lugar no contexto de um sistema social, cujas operações nós queremos 
compreender, através do exame da sua produção e recepção sonoras. 
O problema do “indicador cultural” é definido pela busca de correla- 
ção sistemática entre a produção/recepção e as trilhas sonoras, e entre 
as trilhas e o contexto do sistema social. Por “correlação” eu não en- 
tendo necessariamente uma correlação estatística estrita de valores e 
uma escala ordinal ou de intervalo, mas simples co-ocorrências de ca- 
racterísticas, ou de semelhanças de estruturas. 



— 367 — 







Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Registro e transcrições 

A música é primariamente um evento sonoro temporal, por isso 
devemos conservar um registro dele, se o quisermos analisar. Este 
registro pode ser feito de muitas maneiras: com um fonógrafo, re- 
gistrando sinais acústicos, com um filme tonal registrando os even- 
tos, ou transcrevendo a música em sua escrita musical convencional. 

O registro acústico se desenvolveu consideravelmente no século 
vinte, mas todos os registros consistem, basicamente, de dois ele- 
mentos: o microfone e o gravador. Ao registrar, temos de levar em 
consideração a quantia de fontes que estão implicadas na produção 
da música ou do som. Um enfoque analítico irá considerar as dife- 
rentes fontes, tanto independentemente, como em sua conjugação 
para produção de um som coerente. É necessário um aparelho regis- 
trador de muitos canais, com vários microfones, para gravar o som 
complexo de eventos como o de uma orquestra, enquanto que um 
pequeno gravador, com um único microfone, pode ser suficiente 
para gravar a melodia de uma música cantada por um único cantor. 
Ao gravar uma pequena combinação de jazz, uma banda de rock, ou 
uma grande orquestra, precisamos ver onde colocar os microfones, 
a fim de que as várias fontes de som sejam registradas com suficiente 
clareza (ver, por exemplo, Nisbett, 1983). A fim de distinguir dife- 
rentes ruídos da rua, ou de analisar o baixo, ou as contribuições do 
piano e da guitarra em um concerto de jazz ou rock, tais sons devem 
ser registrados com um grau regular de qualidade. A qualidade das 
gravações, para fins de pesquisa, coloca-se em algum lugar entre a 
memória não confiável do ouvinte presente ao evento e os registros 
perfeitos, de alta fidelidade, da indústria da música: ela deve ser 
adequada ao nível de resolução que é pretendido na análise. 

A separação da música de sua execução visual, produzindo um 
registro acústico dela, já é uma seleção. A definição de Lomax (1959) 
de um “evento musical total” inclui o músico, a audiência e o contex- 
to - um complexo de atividade que não é unicamente acústico, mas 
também visual, e que implica muitos tipos de mudanças. Para regis- 
trar determinados eventos musicais, por isso, o filme ou vídeo se- 
riam os meios mais apropriados, dependendo do tipo e da finalida- 
de da pesquisa. Assim, por exemplo, a pura música de um canto 
pop, ou de um jazz típico, é apenas um registro muito limitado do 
seu desempenho concreto no contexto de um clube (Tagg, 1982). 

Muitas culturas musicais desenvolveram notações-padrão para 
memorizar a música, para coordenar sua execução, e para instruir 



— 368 



1 5. Análise de ruído e música... 



os iniciantes. Tal notação se torna um recurso cultural adicional 
para o desenvolvimento da música (Sloboda, 1985: 242s). Na ciência 
social, usa-se a notação musical para fins de análise. A notação pro- 
cura captar determinadas características do som que são indicativas 
do contexto que o produz. A pesquisa social pode, desse modo, usar 
registros ao vivo e suas transcrições, ou registros existentes ou nota- 
ções, e desenvolver uma notação secundária para fins específicos. 

A notação primária representa o evento sonoro original de um 
modo específico, e pode, em princípio, ser conseguido de várias ma- 
neiras. Por exemplo, o som que emana do fato de se apertar a chave 
A no quarto oitavo do teclado do piano pode ser representado com 
um ponto no segundo espaço do sistema ocidental de notação, que 
representa a altura do som e sua duração. Ou ele pode ser represen- 
tado como: 

P57 u200 190 

onde P57 representa a altura, u200 a duração em centésimos de 
segundo, e 190 sua tonalidade. O mesmo som tonal pode ser repre- 
sentado, com propósitos computacionais, como uma função com ar- 
gumentos (ver Leman, 1993: 125): 

Evento - altura do som [altura (a4), duração (q), sonoridade 
(mf)] 

Estas descrições dão conta de algumas características do som, en- 
quanto deixam outras fora, como a vibração, o “ataque” e o enfra- 
quecimento prolongado do tom (fade). O sistema de notação ociden- 
tal convencional (Read, 1969) consiste de cinco linhas: um símbolo 
denominado clave serve como referência da altura do som ($ para a 
clave de sol e ?' para a clave de fá), convencionalmente mostradas no 
meio do teclado do piano; vários tipos de pontos com bandeirinhas 
representam a duração de um elemento tonal, e suas posições nas, 
ou entre as linhas, representam a altura. Muitos outros símbolos adi- 
cionais complementam essa notação ocidental para indicar pausas, 
ligações, sonoridade, alterações e tonalidades. Ritmo, harmonia e 
melodia são facilmente representados nesse sistema, mas ele não 
consegue representar as mudanças tonais inferiores a um intervalo 
de meio tom. Muitas culturas musicais do mundo, por exemplo as 
músicas blues, levam em consideração flutuações que são inferiores 
a um intervalo de meio tom. Para transcrever tais mudanças com 
mais precisão, os etnomusicólogos desenvolveram o melógrafo (ver 



369 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Merriam, 1964). Para fins de pesquisa social, é muitas vezes necessá- 
rio desenvolver sistemas de transcrições com fins específicos como, 
por exemplo, em cantométrica, para comparar cantos existentes nas 
diversas culturas, ou para analisar vídeos de música (ver abaixo). A 
notação secundária toma a notação primária como sua base. 

As tradições de análise musical acadêmica tomam a contagem mu- 
sical, a maioria das vezes escrita no sistema de notação ocidental con- 
vencional, como a matéria-prima para deslindar as leis da construção 
musical que ordenam os elementos (Bent &: Drabkin, 1987). A análise 
musicológica enfoca a estrutura interna da música; em contraste, a aná- 
lise social científica toma esses aspectos internos da música e os correla- 
ciona a padrões externos de recepção e produção. O problema é deci- 
dir que aspectos são significativos, isto é, se eles possuem uma relação 
não-aleatória com as características externas de produção e recepção. 
Podem ser discutidos, neste caso, os índices das características melódi- 
cas de Dowd (1992) e Cerullo (1992), ou a medida da diversidade na 
produção da música popular de Alexander (1996). 

Sentido musical: referências internas e externas 

Supondo que a música, ou o som, possuam qualidades lingüísti- 
cas, tal analogia é facilmente perceptível no que se refere às funções 
da sintaxe e da pragmática, mas é controvertida no que se refere à 
função semântica (Reitan, 1991). Em outras palavras, os elementos 
musicais podem ter diferentes graus de sentido, mas tal sentido não 
está ligado a um referente único. A música é rica em conotações, mas 
suas unidades são menos definidas com relação a sua denotação. Por 
exemplo, a Nona Sinfonia de Beethoven é rica em ordem musical e 
em função social, por exemplo, para celebrar a queda do Muro de 
Berlim em 1989, e a iminente reunificação da Alemanha, ou o lança- 
mento do Euro, em janeiro de 1999. Seu sentido semântico, contu- 
do, abstraído do emprego social de sua execução, é vago. 

Podemos distinguir entre referências internas e externas da mú- 
sica (Mayer, 1956: 256s). Internamente, uma peça de música pode 
se referir a outra música anterior, “citando” uma melodia, ou um pa- 
drão harmônico. Esta é uma prática rotineira no gênero “tema e va- 
riações” da música clássica e do jazz. Uma idéia musical é tomada de 
outra, e uma nova música é desenvolvida ao redor dela. Referências 
externas são tanto miméticas, como conotativas; o conotativo é dife- 
renciado em idiossincrático ou simbólico. Miméticas são aquelas re- 



— 370 — 



1 5. ANÁLISE DE RUÍDO E MÚSICA... 



ferências onde o tipo de música imita situações do mundo externo, 
através da similaridade do ruído ou do movimento, ou imita as emo- 
ções através de uma sucessão de construção de tensão e de sua libe- 
ração. Por exemplo, o passo vagaroso de um elefante pode ser re- 
presentado por uma lenta série de notas baixas de uma tuba, enquan- 
to que subir correndo a escada pode ser representado por uma escala 
de tons ascendentes de uma clarineta. Na teoria da forma musical, 
tentativas miméticas são chamadas de música programática: exem- 
plos muitos conhecidos são Quadros de uma Exposição de Mussorgsky 
( 1 874), a Sinfonia Fantástica de Berlioz ( 1 830) e Sketches of Spain de Mi- 
les Davies (1960). Em segundo lugar, o sentido conotativo da música 
brota da evocação de imagens e associações que são idiossincráticas. 
O sentido surge espontaneamente ou pode estar relacionado a ima- 
gens e sentimentos associados à memória de um primeiro encontro. 
Não há uma relação específica com o material musical: as associações 
são totalmente dependentes de um ouvinte específico. Finalmente, as 
conotações da música podem ser partilhadas por um grupo social: um 
canto, uma peça de música para orquestra, ou um grupo pop passa a 
significar a história do grupo e suas lutas. As associações evocadas são 
apreciadas coletivamente, reforçadas muitas vezes por um discurso 
sobre essa música e seu suposto significado. Percebemos a música ex- 
pressando um caráter nacional específico. Outras formas de conven- 
ções simbólicas são os códigos de composição musical do século dezoi- 
to da França: determinadas tonalidades expressam sempre determi- 
nados sentimentos e modos - por exemplo, dó maior representa 
uma alegria comum, enquanto que o fá menor representa lamenta- 
ção e tristeza (Nattiez, 1990: 125). 

A análise funcional da música considera outro tipo de significado: 
quais são os efeitos das atividades musicais em um determinado ambi- 
ente. É a música usada para acelerar o trabalho (Lonza, 1995), para 
despertar prazer (Frith, 1998), para apoiar eventos religiosos (Leo- 
nard, 1987), para incentivar um protesto social (Pratt, 1994), ou para 
excluir, através da ostentação de bom gosto e distinção social (Ador- 
no, 1976)? Essas questões têm a ver com a pragmática da música. 

Ruído e cenários sonoros 

O som é um evento material que atinge o sistema auditivo huma- 
no e é percebido como tendo sonoridade, altura, volume, densidade 
e complexidade. O mundo da música discrimina dentro de um es- 
pectro de sons, e distingue, desse modo, entre a música, o som pre- 



— 371 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



tendido, e o ruído, o som não desejado. Também distinguimos entre 
sons naturais, tais como a brisa ou o canto dos pássaros, e sons artifi- 
ciais, como a música intencionalmente produzida, ou o ruído, que é 
muitas vezes uma conseqüência irritante das atividades humanas. O 
efeito de uma exposição prolongada a um ruído irritante é tão forte, 
que ele pode chegar a uma forma de tortura. O ruído é um tema de in- 
tenso estudo, devido a seus possíveis efeitos prejudiciais ao bem-es- 
tar das pessoas no trabalho ou em casa (Jansen, 1991). 

A história da música pode ser vista como transformando as fron- 
teiras existentes entre a música e o ruído: ruídos de tempos passados 
podem se tornar a música do presente. Para Nattiez (1990), o ruído 
é um problema semiológico, sujeito a definições que podem mudar. 
Ele é subjetivamente definido como algo “desagradável”, e “pertur- 
bador”, dependendo de critérios convencionais, tais como volume 
muito alto, ausência de altura definida, ou confusão. A mudança so- 
cial deve-se ao fato de que os limites entre música e som não são idên- 
ticos nas esferas da produção, da descrição material e do julgamento 
estético (ver Tabela 15.2). O que os compositores decidiram chamar 
de música, pode ser fisicamente harmônica e agradável ao ouvinte (li- 
nha 1 da tabela 15.2). Por outro lado, a música do músico, pode estar 
fisicamente além do espectro harmônico, mas ainda dentro do limite 
de som agradável (linha 2). Mais abaixo na tabela, os sons do músico 
estão além da harmonia material, e são rejeitados também pelos ou- 
vintes (linha 3). Isso se constitui em um desafio ao ouvinte convencio- 
nal, que é comum na história da música. Vejam-se os sons altamente 
complexos da música dodecafônica que, para muitas pessoas, é ainda 
desagradável, depois de quase um século, ou os sons que emanam da 
guitarra de Jimi Hendrix, ou as “folhas com sons” saxofônicas do 
free jazz de John Coltrane, dos inícios da década de 1960 - todos 
eles, depois de terem provocado muita (e persistente) rejeição, tor- 
naram-se formas clássicas de expressão musical. A linha 4 apresenta 
aqueles ruídos que nem sequer o músico iria escolher. 



Tabela 15.2 - O mapeamento da distinção música/ruído 



Nível da poíes/s: 


Nível neutro: 


Nível estético: 


Escolha do compositor 


Descrição material 


Percepção, julgamento 


1 Música 


Espectro harmônico 


Som agradável 


2 Música 


Ruído complexo 


Som agradável 


3 Música 


Ruído complexo 


Ruído desagradável 


4 Ruído 


Ruído complexo 


Ruído desagradável 



— 372 — 





1 5. Análise de ruído e música... 



Esta disjunção entre expectativas musicais e produção musical é 
socialmente significativa, a ponto de ela se classificar como um indi- 
cador social. Attali (1985) fez disso o tema de um livro para explorar 
o “poder profético” do ruído através dos séculos. Para ele, a música é 
um modo muito delicado de perceber o mundo. Ele apresenta um 
esquema para observar a produção da música, a fim de antecipar a 
evolução da sociedade: “a música é profética... a organização social 
[a] reflete; ...a mudança está inerente ao ruído antes de começar a 
transformar a sociedade” (1985: 5); “podemos nós ouvir a crise da 
sociedade na crise da música? (1985: 6); “ela torna audível o novo 
mundo que gradualmente se tornará visível” (1985: 1 1). A música 
não apenas representa o presente estado de coisas da ordem con- 
vencional, mas através da ruptura das convenções, o “ruído” anteci- 
pa a crise social e indica a direção da mudança na nova ordem. A 
música ruidosa de hoje, anuncia a nova ordem política e cultural: “a 
música está anunciando a nova era” (1985: 141). 

Ao estudar o ruído como um indicador social, Attali se concentra 
nos sons artificiais que são produzidos intencionalmente para ex- 
pressão musical. O som, compreendendo tanto o ruído natural como 
o artificial, é a preocupação da análise do “cenário sonoro” do com- 
positor canadense R.M. Schafer (1973; 1977). O cenário sonoro é 
descrito com um vocabulário análogo ao da paisagem (ver Tabela 
15.3). Schafer mostra que o cenário sonoro do mundo está mudan- 
do: novos sons, que diferem em qualidade e intensidade, estão sen- 
do criados, enquanto que velhos sons estão desaparecendo. Nós fo- 
mos ensinados a ignorar a maioria dos cenários sonoros que nos ro- 
deiam diariamente, mesmo quando somos afetados por eles. O ce- 
nário sonoro do mundo é uma “vasta composição musical”, que não 
deveria ser deixada ao acaso. Com seu Projeto de um Cenário Sono- 
ro Mundial (World Soundscape Project), Schafer fomentou um mo- 
vimento social (The World Forum for Acoustic Ecology <http://inte- 
ract.uoregon.edu/MediaLitAVFAEHomePage>) para registrar, ana- 
lisar, avaliar, documentar e redesenhar a ecologia acústica do mun- 
do. Esse programa busca sua legitimação em uma curiosa mistura de 
abusos sobre os níveis de “poluição ruidosa”; em uma atenção cuida- 
dosa pelos sons que estão enfrentando a extinção, tais como os sons 
das carruagens puxadas a cavalo, que devem ser preservados para 
memória futura; em uma convicção de que o fato de aguçarmos nos- 
sa sensibilidade auditiva para sons que, de outro modo ficariam ig- 
norados, possui efeitos terapêuticos que melhoram nossas capacida- 



— 373 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



des auditivas; na coleta de ruídos registrados para serem transfor- 
mados em música; e em uma missão re-criadora de redução de ruí- 
dos e melhoria de nosso ambiente sonoro, na “busca da influência 
harmonizadora de sons no mundo naquilo que nos diz respeito” 
(Schafer, 1973; Adams, 1983). 

Tabela 1 5.3 - Uma terminologia para cenário ambiental e cenário sonoro 


Cenário visual 


Cenário audível 


Testemunho ocular 


Testemunho auricular 


Projeto versus natureza 


Proporção entre sons naturais e artificiais 


Clarividência 


Clariaudiência 


Figura-fundamento 


Sinal-ruído; alta, baixa fidelidade 


Telescópio 


Gravação 


Microscópio 


Distribuição 


Fotografia 


Sonografia 


Esquizofrenia 


Esquizofonia 


Dominância = altura, tamanho 


Dominância = sonoridade 


Jardins coníferos 


Jardins soníferos 



A notação musical é inadequada para os ruídos (ela se sente sem 
recursos diante do Harley-Davidson: Schafer, 1973), e mensurações 
materiais são tecnicamente muito complicadas para se poder dar 
conta da grande variedade dos ruídos do nosso cotidiano. Devido a 
essas dificuldades, Schafer sugeriu o desenvolvimento de várias téc- 
nicas de pesquisa. 

O som pode ser registrado colocando microfones em diferentes 
locais, durante as 24 horas do dia. A sonoridade dos ruídos é medida 
o tempo todo, para se obter o “perfil de sonoridade”. Esses perfis 
são comparados, a fim de se medir os ritmos da vida coletiva e o sig- 
nificado de certos ruídos em diferentes comunidades - comparan- 
do, por exemplo, um ambiente rural e um ambiente urbano. A aná- 
lise desses perfis na conversação com as pessoas locais revela, por 
exemplo, que em uma aldeia rural da Suíça, o som do sino da igreja 
não é apenas um sinal da hora, mas é também usado para prever o 
tempo: o som distante do sino varia com as situações de pressão do 
ar. O tempo possui uma qualidade sonora na zona rural que não tem 
nos ambientes urbanos. 



— 374 — 






15. Análise de ruído e música... 



O “passeio de escuta” inclui andar por um determinado local, 
por uma paisagem, por uma rua, ou por um edifício, e ao mesmo 
tempo prestar conscientemente atenção àqueles ruídos que a ativi- 
dade normal iria relegar como um segundo plano irrelevante. Essa 
técnica reativa a escuta e aumenta a consciência, é empregada para 
preparar informantes para investigações de cenários sonoros, e se 
poder falar sobre ambiente sonoro, tópicos que são normalmente ig- 
norados e difíceis de verbalizar (Winkler, 1995a; 1995b). 

O “diário de sons” uma técnica através da qual os informantes 
são solicitados a tomar uma amostra de tempo por dia, ou um perío- 
do mais longo, e registrar e/ou descrever, em intervalos predetermi- 
nados, por exemplo a cada 30 minutos, os ruídos que são audíveis 
naquele momento. Além da vantagem de aumentar a consciência do 
ambiente audível, há o problema do registro sistemático: qual a lin- 
guagem empregada para descrever os sons? Devemos fazer registros 
apenas em termos de características do som, tais como sonoridade e 
duração, vozeio, alaridos, batidas etc., ou devemos registrar direta- 
mente em termos das fontes dos ruídos, por exemplo, um carro pas- 
sando, o tique-taque do relógio, etc., ou fmalmente em termos da 
experiência e do significado emocional do momento? Um diário de 
sons irá, por isso, distinguir três tipos de informação - características 
do som, fonte e significado - registrando-os, por exemplo, em dife- 
rentes colunas do relatório da amostra, enquanto que em outras co- 
lunas se registra o tempo, o lugar e a atividade do observador. A 
compilação e a comparação entre os diários de som nos fornecem 
uma descrição de um “cenário sonoro normal” para um grupo de 
pessoas, e como tal, é um indicador cultural, cujas mudanças podem 
ser mapeadas, tanto através dos contextos, como através do tempo. 

Schafer (1973) sugeriu muitos conceitos analíticos para caracteri- 
zar diferentes cenários sonoros. É o som de alta ou de baixa fidelida- 
de? Um som de alta fidelidade, que se espera de nosso aparelho de 
CD, registra sinais claros e nítidos, evitando ruídos do ambiente. Em 
sons de baixa fidelidade, sinais nítidos são menos audíveis, devido ao 
forte e confuso ruído do ambiente. A zona rural é mais alta-fidelida- 
de; as cidades são mais baixa-fidelidade. Ainda mais, a proporção en- 
tre ruídos tecnológicos e naturais está mudando: as estimativas de 
Schafer, derivadas de fontes literárias e antropológicas, são de que a 
proporção entre ruídos técnicos e artificiais, e ruídos naturais e huma- 
nos mudou, sendo de 5: 95 em “culturas primitivas”, de 14: 86 em so- 
ciedades pré-industriais, e de 66: 34 em culturas pós-industriais. 



— 375 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Cantométrica: o canto como um índice cultural 

Alan Lomax (1959; 1968; 1970), um pioneiro no estudo da mú- 
sica popular, desenvolveu uma análise da música como um instru- 
mento de diagnóstico das práticas culturais: mostre-me como você 
canta e eu vou lhe dizer suas origens culturais. O canto folclórico tra- 
dicional é transmitido oralmente, sem notação formal, é desempe- 
nhado por músicos não-profissionais, e está associado a eventos so- 
ciais específicos, tais como trabalho, cerimônias religiosas, educação 
infantil, ou protestos sociais. A inspiração de Lomax para esse projeto 
veio da observação das diferenças entre os cantos populares dos bran- 
cos e negros americanos, e das viagens pela Espanha e Itália, na déca- 
da de 1950, onde ele notou uma diferença nos estilos de cantar do 
norte e do sul: no norte, encontrou canto coral baixo e aberto, como 
nos corais alpinos; e no sul ele encontrou um cantar individual alto e 
fechado, como nas serenatas italianas, ou no flamengo andaluz. Suas 
observações foram confirmadas pelo conhecido preconceito musical 
italiano, segundo o qual “os do sul não podem cantar juntos”. A partir 
dessas observações, desenvolveu hipóteses sobre correlação entre a 
forma de cantar e os fatores sociais, em particular sobre a posição so- 
cial das mulheres, a permissividade nas relações sexuais pré-matri- 
moniais, e sobre a educação das crianças. Repressão e crueldade, que 
brotam de uma história local de dominação e exploração, se correla- 
cionam com estilos de cantar altos e fechados e individuais. 

Um canto é “uma ação humana complexa - música mais fala, 
que estabelece uma relação entre os cantores e um grupo maior, em 
uma situação especial, a partir de determinados padrões de compor- 
tamento, e dando origem a uma experiência emocional comum” 
(Lomax, 1959: 928). Tal música possui uma função social: “o efeito 
principal da música é dar ao ouvinte o sentimento de segurança, 
pois ela simboliza o lugar onde nasceu, as alegrias de sua primeira 
infância, sua experiência religiosa, o prazer das práticas comunitá- 
rias, seu relacionamento amoroso e seu trabalho - algumas, ou todas 
aquelas experiências que constroem nossa personalidade” (1959: 
929). Lomax conclui que o canto folclórico é o mais conservador dos 
traços culturais, com um ciclo mais longo de mudança que as outras 
formas de arte; e como conseqüência, ele é um indicador privilegia- 
do da cultura e da mudança cultural. A música popular é um “evento 
musical total”, que é música em contexto, e, como tal, é um diagnós- 
tico do ouvinte/observador; a tradição oral do canto popular está en- 
tretecida com o contexto local e toma sua forma, energia e valoriza- 



— 376 — 



1 5. Análise de ruído e música... 



ção a partir da situação onde nasce, e desse modo reflete essas condi- 
ções de maneira muito próxima. O canto popular autêntico é um ín- 
dice, um signo que toma seu sentido de uma correlação com suas 
condições de produção. 

Entre 1962 e 1970, Lomax e seus colegas analisaram um corpus de 
3525 cantos populares gravados, em uma amostra de 233 diferentes 
locais, que resultou em um atlas mundial de estilos de músicas popu- 
lares. Eles propuseram um sistema de análise denominado “cantomé- 
trica” - um conjunto de “fonemas” musicais que assumem diferentes 
significados em diferentes contextos, mas no interior dos quais as di- 
ferenças nos estilos populares estão representadas em escala mundial. 
Trinta e sete características de canto popular - incluindo atividade 
grupai, ritmo, melodia, fraseologia, tempo, e características textuais e 
de vocalização - são codificadas em escalas que são definidas em deta- 
lhe (Lomax, 1968: 34-74). Esse sistema é uma “grade intencional- 
mente geral... [não] para descrever idioletos ou dialetos musicais, ou 
qualquer afirmação musical, mas para indicar as diferenças no estilo, 
em níveis regionais ou de área” (1968: 35). Cada registro musical é 
codificado por um codificador treinado, os dados são computadoriza- 
dos e testados para fins de fidedignidade, a fim de permitir análises 
posteriores. As variáveis musicais são estatisticamente relacionadas 
com variáveis socioculturais dos locais, tais como formas de produção 
agrícola, complexidade da estratificação social, severidade dos costu- 
mes sexuais, dominação masculina e coesão social. 

Os resultados desses estudos foram muitos. Primeiramente, os 
pesquisadores propuseram uma classificação de nove tipos de estilos 
populares em escala mundial, em ameríndio, pigmeu, africano, me- 
lanésio, polinésio, malaio, euro-asiático, europeu antigo e europeu 
moderno. Em segundo lugar, eles identificaram dois tipos principais 
de canto, dentro da dimensão individualismo-coesão (modelos A e 
B). Em terceiro lugar, eles apresentaram um teste de hipóteses rela- 
cionando estilos de canto, com o manejo emocional da cultura local: 

as situações que se colocam mais fortemente contra a solidariedade 
do grupo cantante, são dois tipos de dominação masculina: a agres- 
sividade direta e o controle fem inino da sexualidade, ambas simbo- 
lizadas pela introdução de ruído perturbador e idiossincrático na 
vocalização (1968: 198). 

A complementaridade feminino/masculina no trabalho de sub- 
sistência se correlaciona com estilos de canto que aumentam a coe- 



— 377 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



são grupai, que são polifônicos e tranqüilizadores. O grau de estres- 
se impingido às crianças (tal como a circuncisão), se relaciona ao es- 
pectro de voz empregado ao cantar. A probabilidade de canto coral 
coordenado diminui quando há presença de agressividade masculi- 
na, de organização difúsa no trabalho de subsistência, de estratifica- 
ção rígida, de dominação masculina na produção, ou de controle re- 
pressivo da sexualidade feminina. 

A cantométrica de Lomax foi criticada por Netfl (1990: 48), por se 
basear em amostras limitadas de música nativa. A linguagem analítica 
é ocidental, e emprega, em muitos casos, categorias inadequadas, en- 
quanto que “a compreensão concreta” exigiria o uso de distinções 
inerentes à cultura. As pequenas amostras locais de ao redor de 10 
cantos, dão atenção à maior parte da variedade local de estilos de can- 
to, e desse modo a classificação resultante é precária e apresenta mui- 
tas anomalias. E finalmente, o fato de se restringir unicamente aos 
cantos exclui da caracterização de Lomax a música popular instru- 
mental da cultura musical local. Apesar dessas limitações, seus dados 
fornecem uma base para monitorar a perda de variedade da cultura 
musical mundial e nos permite testar predições do que poderá acon- 
tecer quando grupos sociais migrarem, modificarem suas relações so- 
ciais e desenvolverem formas híbridas de expressão musical. 

Análise de aspectos musicais: ornamentos, complexidade 
e diversidade 

A maioria dos eventos musicais, de um ponto de vista ocidental, 
pode ser caracterizada a partir de diversas dimensões: melodia, que 
é a seqüência de tons que nós podemos facilmente lembrar; a har- 
monia, que é o sistema que ordena a melodia; o ritmo, que é o tem- 
po da progressão musical; o fraseado, que é a ligação e a separação 
das notas em unidades mais amplas; a dinâmica, que são as variações 
de sonoridade e velocidade; a forma, que são os padrões mais am- 
plos de repetições; e a orquestração, que é a designação dos instru- 
mentos para papéis específicos. Cada uma dessas características pos- 
sui suas próprias convenções que, separadas ou combinadas, podem 
servir como indicadores culturais. 

A ornamentação melódica como divergência da expectativa 

Cerullo (1992) desenvolveu uma medida da progressão de uma 
melodia na música vocal/instrumental, como, por exemplo, nos hi- 



— 378 — 




1 5. Análise de ruído e música... 



nos nacionais. Sua inspiração teórica é a relação entre convenções 
simbólicas, a violação dessas convenções, e a conseqüente atenção 
que isso traz. A hipótese é que os afastamentos das progressões me- 
lódicas convencionais chamam a atenção dos ouvintes, e os conduz de 
uma situação passiva, para uma ação ativa de busca de sentido. A fim 
de explorar esse poder estimulador da música, Cerullo desenvolveu 
uma medida de sintaxe melódica. A melodia é uma progressão de no- 
tas que forma um todo reconhecível (uma Gestalt ) - algo que nós facil- 
mente lembramos, sussurramos ou cantamos. A estrutura de uma me- 
lodia é a relação entre as notas. Uma única nota é desprovida de senti- 
do: ela ganha significado a partir da relação com outras notas, que 
podem ser as mesmas, mais altas ou mais baixas. As linhas melódicas, 
ou progressões, são caracterizadas em um continuum, que vai desde a 
linha que é basicamente convencional, altamente estável, constante e 
fixa, com um mínimo de movimento na escala tonal, até uma linha 
que é ornamentada, ou distorcida, que incorpora pontos opostos, é 
errática em sua progressão e imprevisível, e usa uma ampla variedade 
de sons através da abertura de novos caminhos. Quatro variáveis são 
construídas para representar esse contínuo: freqüência da movi- 
mentação melódica, magnitude da movimentação, métodos de cria- 
ção da linha, e ornamentação das notas centrais. 

O instrumental desenvolvido para essa análise é a matriz altu- 
ra-tempo (ver Tabela 15.4). Este método apresenta dois aspectos do 
evento musical: o tempo musical, ou toque, e o grau de altura, que 
é o desvio relativo do centro tonal das melodias diatónicas, em 
meio-tons. Se o centro tonal de um canto é G, isto é, a tonalidade do 
canto é G maior, ou G menor, um A seguindo o G terá o valor de +2, 
pois o A está dois meio-tons acima de G, e um E seguindo o A, terá o 
valor de -3, pois o E está três meio-tons abaixo de G. O gráfico altu- 
ra-tempo das duas primeiras frases melódicas de “God Save the Queen”, 
está mostrado na Figura 15.1. A padronização do centro tonal (tôni- 
ca = 0), permite a comparação de diferentes melodias na mesma re- 
presentação gráfica. Na transcrição melódica, os indicadores são de- 
finidos como segue. 

Freqüência se refere ao número de mudanças direcionais na me- 
lodia - quantas vezes um movimento para cima, muda para um mo- 
vimento para baixo. Magnitude indica quão abruptas são as mudan- 
ças na progressão melódica, relacionando o tamanho médio dos pas- 
sos melódicos. Disjunção representa os intervalos em uma melodia. A 
movimentação conjunta é suave: as notas progridem por graus qua- 



— 379 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



se sucessivos, para cima e para baixo, na escala. A movimentação dis- 
junta é entrecortada: as notas da melodia são separadas por amplos 
intervalos. A ornamentação está atenta à relação entre a música e o 
texto. As vezes uma única sílaba do texto se prolonga por várias no- 
tas diferentes, ornamentando assim e realçando o texto. O embele- 
zamento está presente quando nós temos mais notas que sílabas no 
texto, e ele considera a ffeqüência de tais situações. Cada uma dessas 
medidas possui uma definição matemática precisa, derivada da ma- 
triz de altura-tempo (Cerullo, 1989: 212s), fornecendo números 
para cada canto analisado. 



Tabela 1 5.4 - Matriz altura-tempo das duas primeiras frases melódicas de 
"God Sove the Queen" 



Notas 


Tempo-toque 


Grau de altura 


G 


1 


0 


G 


2 


0 


A 


3 


2 


F# 


4 


-1 


G 


5.5 


0 


A 


6 


2 


B 


7 


4 


B 


8 


4 


C 


9 


5 


B 


10 


4 


A 


11.5 


2 


G 


12 


0 


etc. 


etc. 


etc. 



Empregando esses quatro indicadores de progressão melódica, 
a análise de 154 hinos nacionais mostrou que, quanto mais frequen- 
tes forem as mudanças direcionais, maior será sua amplitude, mais 
disjuntas as progressões de intervalo e mais ornamentação será usa- 
da. Eles provavelmente representam, por isso, um continuum implí- 
cito de uma “ornamentação musical geral”. O critério de consistên- 
cia interna é assegurado. A validade das medidas é demonstrada 
pelo fato de se mostrar como os hinos nacionais variam consistente- 
mente através das regiões geográficas, e através dos períodos e das 
circunstâncias políticas de sua adoção. 



— 380 — 




1 5. Análise de ruído e música... 




Figura 15.1- Gráfico altura-tempo para as duas primeiras frases melódicas de 
“God Save the Queen”. 



Uma limitação clara do método é seu pressuposto de ser uma 
música de estilo ocidental: a matriz altura-tempo pressupõe materi- 
ais musicais, que estão baseados em 1 2 meio-tons e uma tonalidade 
central, um pressuposto que não vale para a música de muitas outras 
culturas. 

A mudança da complexidade na música popular 

Dowd (1992) analisou os cantos campeões de audiência, dos ma- 
pas pop anglo-americanos entre 1955 e 1988. A música se assemelha 
à linguagem, pois ela pode ser usada de maneira “restrita”, ou de 
maneira “elaborada”, e o problema central foi medir a mudança da 
complexidade dos cantos, através do tempo. Três variáveis de cantos 
pop foram construídas, de acordo com Cerullo (1992): ornamenta- 
ção melódica (ornamentação); forma melódica (freqüência, direção, 
disjunção); e estrutura das cordas (a proporção de cordas menores, 
maiores, I, V e IV). Foi estabelecido um número para cada variável, 
em um continuum que ia de um menor para um maior e mais elabo- 
rado grau de complexidade. Os cantos foram posteriormente codifi- 
cados conforme o tempo (toques por minuto), duração (minutos) e 
se eles eram só instrumentados, ou instrumentados e cantados. Esse 
conjunto de variáveis dependentes e de controle foi relacionado, 



— 381 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



ano a ano, a um conjunto de variáveis independentes que caracteri- 
zavam a indústria musical, para testar a hipótese da concentração: 
quanto menor o número de selos no ranking dos selos mais vendi- 
dos, tanto mais restrito é o código musical das paradas de sucesso - 
uma característica que foi descrita como “entropia musical” (Peter- 
son 8c Berger, 1975). A análise de regressão com séries temporais 
não confirma a hipótese da concentração em relação à forma meló- 
dica mas mostra uma relação entre características harmônicas: um 
número maior de companhias de gravação no ranking dos selos mais 
vendidos no ano anterior aumenta a complexidade harmônica das 
paradas de sucesso do ano corrente, enquanto uma mais rápida ro- 
tatividade de músicas por ano, restringe a estrutura cordal. Quanto 
menos paradas de sucesso tiverem em cada ano, maior a probabili- 
dade de músicas mais elaboradas. Além disso, verificou-se que os 
músicos e cantores negros, que cantam sua própria produção, usam 
geralmente um código musical mais elaborado, tanto na melodia, 
como na harmonia. Do mesmo modo, cantos mais longos e música 
puramente instrumental, empregam códigos mais elaborados. A au- 
sência de um teclado, o uso de guitarras acústicas, cantores execu- 
tando músicas de outros, e maior rotatividade anula, levam a uma 
expressão musical mais restrita. 

Empregando uma simples codificação numérica de aspectos me- 
lódicos e harmônicos da música pop, Dowd e outros (por exemplo, 
Alexander, 1996; Peterson & Berger, 1996) criaram indicadores. 
Eles determinaram a influência das condições externas de produção 
na estrutura interna da própria música, demonstrando assim, com 
detalhe, como a autonomia da expressão musical na cultura pop é 
condicionada pelas condições de suprimento do mercado. Quanto 
mais nós soubermos sobre esses fatores restritivos, tanto mais nós 
poderemos converter a análise desse gênero musical em um indica- 
dor representativo do contexto de produção, o que pode se consti- 
tuir em um modo barato e rápido de se conseguir informação sobre 
tendências e desenvolvimento dos negócios. 

Para uma análise de multimídia musical 

Cook (1998) apresenta uma metodologia para o estudo de video- 
clipes, na música popular. O desafio, no caso, era identificar a con- 
tribuição da música para a construção de sentido, onde imagens em 
movimento, texto cantado e sons estivessem interligados. O que nós 



— 382 — 



15. ANÁLISE DE RUÍDO E MÚSICA... 



percebemos como uma textura entrelaçada é diferente do que nós 
perceberíamos se fôssemos olhar para os três modos - imagens, tex- 
to e som - isoladamente. Embora cada um dos três modos interprete 
os outros, parece ser uma característica da música em filmes, que ela 
se torne um pano de fundo, e que não seja percebida nem mesmo 
pelo analista; “o melhor trabalho escrito para vídeos de música é mi- 
nado pela relativa rigidez de suas categorias destinadas a descrever e 
analisar as estruturas musicais” (1998: 150). 

Para preencher essa lacuna analítica, Cook sugeriu uma análise 
gráfica, que ele exemplificou com o vídeo de Madona Material Girl 
(1985). Primeiramente, o texto e os aspectos musicais foram justapos- 
tos. O texto consiste de versos de 4 linhas e refrões; e a estrutura musi- 
cal dá suporte a essa dualidade com seqüências típicas para ambos os 
elementos. A música fornece também uma introdução repetida e uma 
coda. Os elementos musicais são apresentados em um alinhamento 
que mostra a distribuição dos materiais em unidades de quatro ou 
oito compassos, indo do compasso 1 até ao 137, designadas como in- 
trodução, verso, refrão e coda. Isso mostra que o canto consiste de três 
grandes unidades de repetição parcial e prolongamento. 

Num passo seguinte, a música e as imagens são justapostas em 
um segundo gráfico. Esse é um quadro mais complicado, com 1 1 li- 
nhas: o material musical em unidades de oito compassos (linha 1), 
com referência às quais todos os outros elementos estão sincroniza- 
dos, o esquema da trilha básica contínua (linha 2), as introduções 1 
(linha 3) e 2 (linha 4), os versos (linha 5), os refrões (linha 6) e a coda 
(linha 7). Os elementos das imagens são apresentados através da 
enumeração das tomadas (linha 8), da câmera 1 (linha 9), e câmera 2 
(linha 10), que mostram os cortes em relação às unidades de oito 
barras, e finalmente a duração das tomadas (linha 1 1). Esse gráfico 
mostra como os diferentes elementos mudam em conjunção, ou dis- 
junção, com as unidades musicais - como a introdução, verso ou re- 
frão recebem um tratamento visual repetitivo ou expandido. 

Esta é uma análise elaborada e detalhada para uma música de ví- 
deo de poucos minutos. Voltando a Cook - que procura mostrar 
como a música possui apenas sentido potencial, enquanto que o sen- 
tido real surge de seu encontro com o texto e as imagens - po- 
der-se-ia pensar em tomar suas notações analíticas como maté- 
ria-prima para uma notação secundária, em um modo semelhante 
ao Cerullo ou Dowd, a fim de construir indicadores culturais. Que 



383 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



dizer de um índice para se identificar a sincronicidade de mudanças 
entre elementos musicais e tomadas de filme? Há aqui espaço para 
desenvolvimentos futuros. 

Gosto musical: um índice de posição social 

Uma última área, onde os materiais musicais podem ser usados 
como indicadores sociais, é para estudos de grande escala sobre gos- 
to e apreciação musical: diga-me o que você está escutando, e eu vou 
lhe dizer quem você é. Adorno (1976) sugeriu uma tipologia sétupla 
de recepção musical: perito, bom ouvinte, consumidor cultural, ou- 
vinte emocional, ouvinte com ressentimento, ouvinte entretido e 
musicalmente indiferente. Estes tipos caracterizam os ouvintes da 
música nas sociedades industriais atuais; eles representam desconti- 
nuidades no comportamento, que refletem o “grau de adequação” 
entre a música, o ato de ouvir e a capacidade de verbalizar o que é 
ouvido. A tipologia provocou críticas (ver Martin, 1995), devido à 
falta de fundamentação empírica (as fontes das cifras percentuais de 
Adorno para cada tipo não estão documentadas), e por seu elitismo 
cultural que restringe “adequação ao escutar” para profissionais e 
remanescentes de uma aristocracia européia desocupada, relega o 
admirador do jazz ao “ressentimento”, e desconsidera totalmente a 
música popular. 

A análise de Bourdieu (1984) sobre os gostos dos franceses da 
década de 1960, possui um sabor mais empírico. Os gostos musicais 
são, entre outras preferências, parte de um habitus, ou estilo de vida, 
que informa um julgamento, aceito sem discussão, de preferências e 
aversões, que é coletivamente partilhado pelos grupos sociais. Em 
uma aplicação pioneira de análise de correspondência estatística 
com dados de questionários, as pessoas diziam se elas gostavam da 
Rhapsody in Blue, de Gershwin, do Danúbio Azul de Strauss, ou do 
Cravo Bem Temperado, de Bach, em conjunção com outros gostos ar- 
tísticos ou cotidianos, e indicadores socioeconômicos. A análise 
apresenta um espaço social bi-dimensional, de capital econômico 
alto e baixo, e capital cultural alto e baixo. Ela mostra a concordân- 
cia de características tais como dirigir um Citroen 2CV, gostar de 
música jazz, e ser um professor de escola. Tais mapas de predileções 
são a base da maioria das pesquisas atuais sobre consumo, onde o 
gosto musical pode, de fato, ser um marco saliente de certo “estilo 
de vida ou, mais tradicionalmente, de determinada posição social. 



— 384 — 




1 5. Análise de ruído e música... 



Buchhoffer et al. (1974) compilaram 25 planos de pesquisa diferen- 
tes para investigações desse tipo. Além da estratégia empregada 
para marketing musical, tais estudos demonstram que a apreciação 
de determinada música é menos funcional no que se refere a dispo- 
sições universais, e mais funcional com respeito a estereótipos social- 
mente cultivados. 

Conclusões: e então? 

O status do sentido musical é controvertido: pode a música conter 
um sentido em si mesma, ou apenas em conjunção com imagens ou 
linguagem? No que diz respeito à ciência social, podemos deixar essa 
questão sem solução, pois nós estamos usando a música como um in- 
dicador de estruturas sociais, e desse modo, por definição, seu sentido 
surge dessa correlação. Música é um evento no tempo: ela é unica- 
mente acessível para análise, e como indicador cultural, através do re- 
gistro e transcrição. Várias tentativas para construir indicadores de 
questões sociais, com base em material musical, foram apresentadas 
aqui brevemente: o sistema de classificação universal de estilos e can- 
tos de Lomax; as tentativas de relacionar melodias e forças sociais de 
Cerullo & Dows; a mensuração de Peterson 8c Berger da música pop 
como um indicador da concentração da indústria da música; os cená- 
rios musicais de Schafer, servindo tanto para aumentar nossa cons- 
ciência da poluição sonora, como para documentar um ambiente de 
sons que está mudando historicamente, e para o qual não temos um 
registro; a sugestão de Attali de que o ruído, em qualquer período his- 
tórico, está prefigurando a ordem social do futuro; e finalmente, a su- 
gestão de Cook para uma análise complexa de vídeos musicais, que 
podem ser a base de indicadores sociais até agora não definidos. Mui- 
tas dessas sugestões são empreendimentos de indivíduos, ou peque- 
nas redes de pesquisadores. Nenhuma dessas metodologias alcançou 
suficiente massa crítica que pudesse dar origem a um debate sobre 
uma prática boa ou má; a questão principal parece ser provar em pri- 
meiro lugar sua significância para as ciências sociais. 

A predominância dos dados verbais nas ciências sociais deixa o 
som e a música como recursos geralmente subexplorados para pes- 
quisa social. A expansão atual e o poder emocional dos sons, e da 
música como um meio de representação simbólica, parecem sugerir 
que eles podem ser uma fonte útil de dados sociais. Esse potencial, 
contudo, não está ainda combinado com uma metodologia eficiente, 



— 385 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



e uma massa crítica de pesquisa. Para mim, não está ainda claro se 
essa subestimação dos materiais sonoros como fonte de dados, de- 
ve-se às características intrínsecas desses materiais, ou fatores histó- 
ricos. Como acontece seguidamente no mercado, em situações de 
recursos limitados e de prazos definidos, o de que necessitamos são 
maneiras eficientes de coletar e analisar eventos sonoros, a fim de 
competir com a eficiência das pesquisas de opinião e dos grupos fo- 
cais, ou da análise de conteúdo dos materiais textuais. Essa eficiência 
não caiu do céu, mas é o resultado de anos de racionalização e indus- 
trialização. Por agora, os materiais sonoros são um campo ainda vir- 
gem, esperando seu emprego metodológico nas ciências sociais. 



Passos para a construção de indicadores musicais 

1. Decida sobre o tipo de atividade musical que pode ser indicativa 
de, e comparada com diferentes grupos sociais, ou com um grupo 
específico, por diversos períodos de tempo. 

2. Registre materiais sonoros relevantes, produzidos e apreciados 
por grupos específicos de pessoas. 

3. Estabeleça uma transcrição para características musicais relevan- 
tes (melodia, ritmo, harmonia, etc.). 

4. Defina indicadores com base na transcrição. 

5. Relacione esses indicadores a outras características do grupo (va- 
lidação). 

6. Compare os indicadores entre diferentes grupos sociais, ou para 
o mesmo grupo por um determinado período de tempo. 



Passos para um cenário musical 

1. Decida sobre locais para registrar um cenário musical. 

2. Decida sobre um referencial de amostra para um tempo adequa- 
do: por exemplo, registre um dia inteiro, ou cinco minutos a 
cada meia hora. 

3. Faça registros e meça a sonoridade, ou o tempo todo, ou certos 
períodos para um intervalo de tempo específico. Obtenha um dia- 
grama de sonoridade. 

— 386 — 





1 5. Análise de ruído e música... 



4. Verbalize os sons que estão sendo registrados. Colha comentá- 
rios de pessoas vivendo no local, através de entrevista qualitativa 
a partir da gravação, ou verbalize os sons você mesmo. 

5. De maneira alternativa, consiga medidas-padrão, ou diários de 
sons, paralelamente com os registros, onde os informantes 
constituem uma entrada no diário, em intervalos de tempo pre- 
defmidos. 

6. Tabule os sons distinguindo características onomatopaicas, tais 
como chiados ou vozerio, as fontes do som, a sonoridade, e a ati- 
vidade normal das pessoas, em relação a lugar e tempo. 

7. Condense essas tabulações para estabelecer padrões característi- 
cos de sons por local e tempo. 

8. Estabeleça medidas de alta e baixa fidelidade, e proporções de 
som natural/artificial, e compare essas medidas no tempo e no 
espaço. 



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— 389 — 




Parte Hl 

O auxílio do 
computador 



16 

Análise com auxílio de computador: 

CODIFICAÇÃO E INDEXAÇÃO 

Udo Kelle 



Palavras-chave : codificação; análise interpretativa; reapresen- 
tação complexa; reapresentação simples; análise com auxílio de 
computador; dados qualitativos; exame de hipótese; construção 
de teoria. 



Embora software para lidar com dados textuais já fosse acessível 
desde meados da década de 1960, não foi senão nos inícios da déca- 
da de 1980 que os pesquisadores qualitativos descobriram que o 
computador poderia auxiliá-los no tratamento de seus dados (Kelle, 
1995: ls). Antes disso, programas para análise de texto, como o Ge- 
neral Inquirer, chamaram a atenção de apenas um grupo limitado de 
especialistas no campo da análise qualitativa de conteúdo. Essa relu- 
tância da maioria dos pesquisadores qualitativos ao uso de computa- 
dores, marginalizou-os, com certeza, da corrente metodológica pre- 
dominante e da pesquisa experimental onde, durante as décadas de 
1960 e 1970, o computador se tornou uma ajuda indispensável. 
Àquele tempo, os instrumentos de processamento eletrônico de da- 
dos foram vistos por muitos cientistas sociais como instrumentos que 
em nada poderiam contribuir, a não ser para uma análise estatística 
de dados numéricos (ou de análise de conteúdo quantitativa de da- 
dos textuais). A idéia de que computadores poderiam um dia se tor- 
nar um instrumental indispensável para armazenar, reapresentar e 
trabalhar o texto estava ainda distante. 

A situação mudou completamente com a chegada do computa- 
dor de uso pessoal. Do mesmo modo que outros hommes de lettres, os 
pesquisadores qualitativos descobriram muito rapidamente as enor- 



— 393 — 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



mes possibilidades de tratamento de texto, que foram oferecidas pela 
nova metodologia. Em meados da década de 1980, diversos pesqui- 
sadores qualitativos com avançado conhecimento e experiência em 
computação começaram, independentemente um do outro, a de- 
senvolver software que poderia auxiliar na análise de dados qualita- 
tivos. Embora a maioria desses programas fosse planejada apenas 
para fins de projetos específicos de pesquisa, alguns pacotes foram 
colocados no mercado por seus criadores: programas como THE 
ETHNOGRAPH, QUALPRO e TAP, iniciaram uma seqüência de 
desenvolvimentos no campo da computação dentro da pesquisa so- 
cial qualitativa. Uma porção de pacotes de software adicionais, 
NUD*IST, MAX e WINMAX, ATLAS/ti, HIPERRESEARCH, HYPER- 
SOFT (para citar apenas alguns), apareceram em anos subseqüen- 
tes. Hoje em dia, mais de 20 diferentes pacotes de software estão dis- 
poníveis podendo auxiliar pesquisadores qualitativos em seus traba- 
lhos com dados textuais, e alguns desses programas (especialmente 
THE ETHNOGRAPH e NUD*IST) são amplamente usados na co- 
munidade qualitativa. Suas primeiras versões, muitas vezes compli- 
cadas e de aparência hostil, foram rapidamente aperfeiçoadas e 
mais funções, cada vez mais complexas, foram sendo acrescentadas. 
Estes desenvolvimentos culminaram em uma competição entre os 
criadores a fim de incluir tantas características quanto possíveis nas 
últimas versões de seus programas. Hoje, o campo do auxílio com- 
putadorizado à análise de dados qualitativos pode ser visto como o 
campo de mais rápido desenvolvimento no domínio da metodologia 
qualitativa, com seus próprios “projetos de rede”, conferências e lis- 
tas de discussão na Internet. 

Devido ao fato de a literatura apresentar esses pacotes de softwa- 
re de maneira detalhada (por exemplo, Tesch, 1990; Weitzman & 
Miles, 1995) e estar sempre correndo o perigo de se tornar rapida- 
mente desatualizada, este capítulo não vai se concentrar em progra- 
mas específicos, mas irá discutir, de maneira mais geral, aquelas téc- 
nicas de tratamento e de análise de dados qualitativos que podem 
receber apoio dos programas de computador. Será dada maior ênfa- 
se aos aspectos metodológicos do emprego do computador em pes- 
quisa qualitativa. 

Questões teóricas 

A operação chamada Verstehen (Abel, 1948), a compreensão do 
sentido do texto, não poderá certamente ser executada com o auxí- 



— 394 — 




1 6. ANÁLISE COM AUXÍLIO DE COMPUTADOR... 



lio de uma máquina de processamento de informação, pois ela não 
pode ser facilmente formalizada (Kelle, 1995: 2). Há, contudo, uma 
grande variedade ainda de tarefas mecânicas, implicadas na análise 
de dados textuais. O processo de pesquisa qualitativa gera, muitas 
vezes, quantidades enormes de transcrições de entrevista, protoco- 
los, notas de campo e documentos pessoais que, se não forem traba- 
lhados de maneira correta, podem resultar em uma “sobrecarga de 
dados” (Miles & Huberman, 1994). Sendo que a análise de dados e a 
construção de teoria estão estreitamente interligadas na pesquisa 
qualitativa, o pesquisador pode criar muitos conceitos teóricos, nes- 
se processo continuado, que são muitas vezes registrados em nume- 
rosos cadernos, páginas manuscritas e fichas de arquivos. Manter-se 
informado das idéias emergentes, das argumentações e conceitos 
teóricos, pode se tornar uma tarefa organizacional gigantesca. 

Estes problemas já eram há séculos do conhecimento dos estu- 
diosos que tinham de trabalhar com grandes quantidades de textos. 
Foi desenvolvida uma variedade de métodos que dessem conta des- 
ses problemas, a maioria deles com base ou na construção de índices 
(“registros” ou “concordâncias”) de vários tipos, ou na inclusão de 
referências cruzadas no texto. Ambas as técnicas podem colaborar 
como uma tarefa importante no tratamento dos dados: o agrupa- 
mento de todas as passagens do texto que tenham algo em comum. 
Antes da chegada dos computadores, as técnicas de “cortar e colar” 
eram os métodos mais comumente empregados na pesquisa qualita- 
tiva para organizar o material dos dados desta maneira: os pesquisa- 
dores eram obrigados a “cortar anotações de campo, transcrições e 
outros materiais, e colocar os dados relacionados a cada categoria de 
codificação, em um arquivo separado, ou envelopes” (Taylor & Bog- 
dan, 1984: 136; ver também Lofland 8c Lofland, 1984: 134). 

Para desempenhar tais tarefas no computador, deve ser criado 
um banco de dados textuais não formatado. Infelizmente, software 
padrão como os processadores de palavras ou sistemas de bancos de 
dados-padrão são, em geral, de uso apenas limitado, para a constru- 
ção de bancos de dados textuais não formatados, pois eles não dão 
conta das técnicas de tratamento de dados necessárias para estrutu- 
rá-los, tais como: 

• A definição de “indicadores” que contenham palavras-índice 
junto com os “endereços” das passagens de texto que possam ser 
empregadas para reapresentar segmentos de texto indexados. 



— 395 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



• A construção de referências eletrônicas cruzadas, com a ajuda 
dos assim chamados “hyperlinks”, que podem ser empregados 
para “saltar” por entre passagens de texto que estão ligadas 
entre si. 

Todos os pacotes de software desenvolvidos especialmente para 
pesquisa qualitativa, estão baseados em uma, ou ambas, dessas técnicas. 
Além do mais, versões atuais de programas como THE ETHNO- 
GRAPH, HYPERRESEARCH, HYPERSOFT, MAX, NUD*IST ou 
ATALAS/ti, contêm uma variedade de propriedades adicionais: 

• Facilidades para armazenar os comentários dos pesquisadores 
(“memorandos”), que podem ser ligados a palavras-índice, ou 
segmentos de textos. 

• Propriedades para definir ligações entre palavras-índice. 

• O uso de variáveis e filtros, de tal modo que a busca de seg- 
mentos de texto possa ser restringida por certas exigências. 

• Facilidades para reapresentar segmentos do texto que tenham 
entre si relações formais especificadas (por exemplo, segmen- 
tos de texto que aparecem separados entre si por uma distân- 
cia máxima especificada). 

• Facilidades para reapresentação de atributos quantitativos do 
banco de dados. 

Técnicas para análise qualitativa com auxílio de computador 

Exemplos a partir da prática de pesquisa mostram como essas 
técnicas podem ser empregadas para auxiliar a análise de dados 
qualitativos. 

O emprego de computadores na pesquisa qualitativa não pode 
ser visto como um método único, que pode ser seguido passo a pas- 
so: ele compreende uma variedade de diferentes técnicas - tanto 
simples, como muito complexas. Certamente, a escolha correta de 
uma dessas técnicas somente pode ser feita tendo em vista o passado 
metodológico do pesquisador/a, seus problemas de pesquisa, e os 
objetivos desta pesquisa. 

Uma precaução terminológica deve ser tomada aqui: “análise de 
dados qualitativos com auxílio de computador (ou com a assistência 
do computador)” estará, com certeza, sendo entendida erronea- 
mente se alguém considerar os pacotes de software como THE ETH- 



— 396 — 



1 6. Análise com auxílio de computador... 



NOGRAPH, ATLAS/ti, ou NUD*IST como sendo capazes de de- 
sempenhar “análise qualitativa” do mesmo sentido que o SPSS pode 
fazer uma análise de variância. Estes pacotes de software são instru- 
mentos para mecanizar tarefas de organização e arquivamento de 
textos, e se constituem em um software para “tratamento e arquiva- 
mento de dados”, mas não são instrumentos para “análise de da- 
dos”. Desse modo, a expressão “análise de dados qualitativos com 
auxílio de computador”, como é empregada nesse capítulo, refe- 
re-se à análise interpretativa de dados textuais onde o software é 
usado para a organização e tratamento dos dados. 

A identificação de diferenças, atributos comuns e relações entre segmentos 
de texto 

Depois de ter coletado informações textuais não estruturadas 
através de trabalho de campo, ou entrevista aberta, o pesquisador 
qualitativo terá de construir “padrões significativos dos fatos” (Jor- 
genson, 1989: 107), procurando por estruturas nos dados. Tal tarefa 
é geralmente levada a termo através da comparação de diferentes 
partes dos dados, a fim de encontrar atributos comuns, diferenças 
ou relações entre eles. Até certo ponto, esse processo é semelhante 
ao de resolver um quebra-cabeça. O analista irá começar coletando 
certas partes dos dados textuais que se assemelham sob determina- 
do aspecto. Ele/ela irá analisar as diversas partes e suas intercone- 
xões, isto é, a maneira específica como elas possam estar ligadas ou 
conectadas, para montar um quadro que tenha sentido. Em sua fa- 
mosa monografia The Discovery of Grounded Theory (1967) 1 , Glaser & 
Strauss cunharam, para esse processo, o termo “método de compa- 
ração constante”, com o qual são identificados “padrões subjacen- 
tes”, através de comparação cuidadosa e intensa. O pré-requisito 
central para isso é a “codificação”, isto é, a ação de relacionar passa- 
gens do texto a categorias que o pesquisador ou já desenvolveu ante- 
riormente, ou irá desenvolver para o caso específico: 

O analista começa codificando cada incidente identificado em seus 
dados, em tantas categorias de análise, quantas possíveis, à medi- 
da que as categorias emergem, ou à medida que emirjam dados que 
se ajustem a uma categoria existente (1967: 105). 



1. Estamos traduzindo nesse livro “Grounded Theory” por “Teoria Fundamentada”, por já existi- 
rem traduções anteriores feitas desse modo. 



— 397 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Em termos práticos isso significa: 

anotando categorias nas margens, mas [isso] pode ser feito de ma- 
neira elaborada ( por exemplo, em cartões). Deve-se manter em men- 
te o grupo comparativo em que esse incidente ocorre (1967: 106). 

A maioria dos programas de software para análise qualitativa dá 
conta desse processo de categorização e comparação dos segmentos 
do texto, oferecendo recursos para “codificar e reapresentar” (Kelle, 
1995: 4s; Richards & Richards, 1995), que permitem a anexação de 
“códigos” (palavras-índice), a segmentos de texto, e a reapresenta- 
ção de todos os segmentos de um conjunto definido de documentos, 
para o qual o mesmo código foi atribuído (ver Figura 16.1). 




Figura 16. 1 - Codificação e reapresentação. 



A comparação das passagens de texto pode ser auxiliada, ane- 
xando a documentos inteiros variáveis particulares que podem ser 
usadas para reapresentações seletivas, onde a busca por segmentos 
de texto é dificultada devido a certas limitações, permitindo, por 
exemplo, a reapresentação de afirmações sobre determinados tópi- 
cos apenas naquelas pessoas entrevistadas que possuam determina- 
das características em comum. Por exemplo, um pesquisador quali- 
tativo, ao analisar a divisão do trabalho doméstico entre casais, po- 
derá primeiramente reapresentar todos os segmentos de texto em 
que as mulheres falam sobre trabalho doméstico, e depois contrastar 
esses segmentos de texto com os segmentos do mesmo tópico, pre- 
sentes nas entrevistas com os maridos. 



— 398 — 



1 6 . Análise com auxílio de computador... 



A maioria dos programas de análise qualitativa se baseia nos re- 
cursos de “codificação e reapresentação”. Em um artigo sobre aspec- 
tos metodológicos do emprego do computador em pesquisa qualita- 
tiva, Coffey et al. (1996) alertaram que a ênfase unilateral nas opera- 
ções de codificação e reapresentação pode levar ao esquecimento de 
outras técnicas no uso do computador, especialmente técnicas ofere- 
cidas por sistemas de hipertexto. Olhando para outras ciências her- 
menêuticas (especialmente a exegese histórico-crítica e a bíblica), 
podemos ver, de fato, que a indexação (codificação e reapresenta- 
ção) não é sempre o melhor instrumento para auxiliar a comparação 
dos segmentos de texto (ou “sinopse”, como é chamada na exegese 
bíblica). O emprego de referências cruzadas (hyperlinks), é outra es- 
tratégia importante para a administração de dados, que poderia ser 
útil aqui. Infelizmente, tem havido até agora somente alguns poucos 
pacotes de software, especificamente ATLAS/ti e HYPERSOFT, que 
comportem a construção de hyperlinks. 



O desenvolvimento de tipologias e teorias 

Em muitos projetos de pesquisa qualitativa, a comparação de 
segmentos de texto leva à construção de tipologias descritivas e ao 
desenvolvimento de teorias. Sendo que a pesquisa qualitativa muitas 
vezes começa com a coleta de dados empíricos, e depois, com base 
neles, as teorias são desenvolvidas, os metodólogos qualitativos ado- 
taram, às vezes, um modelo indutivista ingênuo do processo de pes- 
quisa, supondo que as categorias teóricas iriam simplesmente emer- 
gir do material empírico, se os pesquisadores estivessem com as 
mentes livres de preconcepções teóricas. Este enfoque, muitas vezes 
influenciado pelos primeiros escritos metodológicos de Glaser Sc 
Strauss (ver, por exemplo, Glaser & Strauss, 1967: 37), implica que 
os pesquisadores qualitativos entram em seu campo empírico com 
absolutamente nenhum conceito teórico. 

Um dos discernimentos críticos mais cruciais da filosofia moder- 
na da ciência e da psicologia cognitiva, contudo, é o fato de que “não 
há, nem poderá haver, sensações que não estejam impregnadas de 
expectativas” (Lakatos, 1982: 15). Em seus últimos escritos metodo- 
lógicos, Strauss levou em consideração seu enfoque de observação 
empírica “carregada de teoria”, propondo um modelo de paradig- 
ma (Strauss & Corbin, 1990: 99s). Conforme Strauss & Corbin, um 
“paradigma de codificação” representa uma teoria geral de ação, 
que pode ser empregada para construir um esqueleto, ou um “eixo”, 



— 399 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



da Teoria Fundamentada em desenvolvimento; Glaser, embora em 
um livro posterior repudiasse totalmente os conceitos de Strauss & 
Corbin (Glaser, 1992), propôs uma idéia semelhante: “códigos teó- 
ricos” representam aqueles conceitos teóricos que o pesquisador/a 
tem a seu dispor, independentemente da coleta e da análise de da- 
dos (Glaser, 1978). 

Tais paradigmas de codificação e códigos teóricos (que estão, mui- 
tas vezes, implícitos no início do estudo empírico) podem se tornar 
explícitos através da construção de um esquema de codificação. O se- 
guinte exemplo mostra um esquema de codificação de um projeto de 
pesquisa que estuda a transição da escola para o mercado de trabalho 
(Heinz, 1996; Heinz et ai, 1998). Foram feitas entrevistas abertas, a 
fim de reconstruir os processos de decisão de alunos que, já tendo 
completado a escola, iniciavam cursos de treinamento vocacional. No 
nosso projeto, os processos de decisão descritos pelos entrevistados 
eram estruturados de acordo com as três categorias seguintes: 

1 . aspirações, que representam as preferências dos responden- 
tes, usadas para representar as opções ocupacionais; 

2. realizações, que consistem dos passos concretos de ação que 
foram tomados para realizar as aspirações; 

3. estimativas, que foram as avaliações dos respondentes sobre as 
relações entre aspirações, condições e conseqüências de ação. 

Essas categorias representam os subcódigos 1.1-1. 3; 5. 1-5.3; 
8. 1-8.3, como mostrados na Tabela 16.1. 

Tabela 1 6.1 - Extrato de um esquema de codificação 



1 Trabalho e profissão 

1.1 Trabalho e profíssão/aspirações 

1 .2 Trabalho e profissão/realizações 

1 .3 Trabalho e profissão/estimativas 

5 Coa b/fação 

5.1 Coabitação/aspirações 

5.2 Coabitação/realizações 

5.3 Coabitação/estlmativas 

8 Cr/anças 

8.1 Crianças/aspirações 

8.2 Crianças/realizações 

8.3 Crianças avaliações 



— 400 — 



16. ANÁLISE COM AUXÍLIO DE COMPUTADOR... 



O segundo tipo de categorias de codificação, freqüentemente 
usadas para codificação qualitativa, é composto de códigos deriva- 
dos do conhecimento do senso comum. Nas entrevistas com os que 
já tinham concluído a escola, foram codificadas todas as passagens 
de texto, quando o entrevistado falava, por exemplo, sobre expe- 
riências em seu trabalho, sobre instituições relevantes, sobre sua fa- 
mília e assim por diante. As principais categorias (1,5, 8), mostrados 
na Tabela 16. 1, representam exemplos de categorias que foram fei- 
tas a partir do conhecimento do senso comum. 

Ambos os tipos de codificação (tanto os derivados do conheci- 
mento do senso comum, como os abstraídos de conceitos teóricos) 
que desempenham os papéis mais importantes no começo dos pro- 
cessos de pesquisa qualitativa, são, ou muito triviais, ou muito abs- 
tratos. Por conseguinte, eles têm algo em comum: não denotam 
eventos empíricos bem definidos, mas servem a propósitos heurísti- 
cos. Eles representam algum tipo de eixo teórico, ou “esqueleto”, ao 
qual é acrescentada a carne da informação de conteúdo empírico 
(Strauss & Corbin, 1990; Kelle, 1994). O projeto de pesquisa men- 
cionado acima, que começou com a estruturação do material de 
acordo com as categorias gerais “aspirações”, “realizações” e “esti- 
mativas”, acabou identificando oito diferentes tipos de aspirações 
biográficas, por exemplo o tipo “delegação”: alguns jovens adultos 
tentam delegar a responsabilidade de sua carreira ocupacional aos 
gerentes de suas companhias ou aos oficiais da agência de emprego. 

Para desenvolver tais tipologias de conceitos teóricos, é necessá- 
rio uma análise bem detalhada dos segmentos de texto, a fim de en- 
contrar aqueles aspectos (ou “dimensões”) que podem servir como 
critérios para uma comparação, com a finalidade de desenvolver ou 
subcategorias, ou subdimensões das categorias já empregadas para 
a codificação. Esse processo de “dimensionamento” (Strauss & Cor- 
bin, 1990: 69s) pode ser esclarecido com outro exemplo de nosso 
projeto de pesquisa. Ali, as tendências dos respondentes com respei- 
to ao casamento foram investigadas codificando, primeiramente, os 
segmentos de texto, conforme os tópicos “casamento”, ou “família”, 
fossem ou não mencionados. Em um segundo passo, os segmentos 
daqueles respondentes que consideravam o casamento como um ob- 
jetivo crucial na vida, foram seletivamente reapresentados. A com- 
paração dessas passagens do texto levou à identificação de três dife- 
rentes dimensões dessa categoria: 



401 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



1 . O casamento era visto por alguns respondentes como a única 
forma aceitável de coabitação. 

2. Outros consideravam o casamento como o pré-requisito para 
a formação de uma família centrada nos filhos. 

3. Ainda outros viam o casamento como uma salvaguarda. Os 
respondentes com essa última orientação ofereciam três argu- 
mentos diferentes: o casamento era visto como: a) oferecendo 
proteção financeira; b) fornecendo um apoio para o vínculo 
entre os parceiros; c) como um meio de responder às expecta- 
tivas do meio social (pais, parentes, etc.). 

Através da comparação e dimensionamento, três diferentes con- 
juntos de categorias de codificação foram desenvolvidas no processo 
de análise: primeiramente, categorias que se referem a quão impor- 
tante era o tema casamento para os respondentes; segundo, catego- 
i ias que se referem às orientações com respeito ao casamento entre 
aqueles que vêem o casamento como um projeto central na vida 
(como a única forma aceitável de coabitação, como um pré-requisito 
pai a a formação de uma família centrada nos filhos, e como uma sal- 
vaguarda); e em terceiro lugar, categorias que se referem à defesa de 
poi que o casamento é uma salvaguarda. A relação hierárquica entre 
esses conjuntos de categorias é mostrada na Figura 16.2. 




Figura 16.2 - Um esquema de categorias hierárquicas como resultado do 
diviensionamento . 



— 402 — 















16. Análise com auxílio de computador... 



Em termos de ciência da informação, a estrutura em forma de ár- 
vore, mostrada na Figura 16.2, pode ser formalmente descrita como 
uma rede, ou gráfico, em que as categorias, ou códigos, representam 
os nós do gráfico, e as linhas entre eles, as extremidades. Empregan- 
do esse enfoque de rede, é possível ampliar o princípio básico de siste- 
mas não formatados de bancos de dados textuais, em que os códigos 
foram conectados por indicadores aos segmentos do texto (Muhr, 
1991; 1992). Por conseguinte, é possível armazenar eletronicamente 
a estrutura completa da tipologia hierárquica, ou o gráfico, mostra- 
dos na Figura 16.2. Conseqüentemente, esse gráfico não apenas pode 
ser usado para dar conta da tipologia emergente, ou teoria, mas ele 
também permite procedimentos de reapresentação mais complexos, 
que percorrem um longo caminho, desde um nó em uma ponta da 
rede ou gráfico, até um nó na outra extremidade. 

Devemos notar aqui que os gráficos podem ser estruturados de 
maneiras bastante diversas: ATLAS/ti e HYPERSOFT são programas 
que permitem ao pesquisador definir todas as ligações possíveis entre 
nós (permitindo ao pesquisador definir “ciclos” e “circuitos”). Outros 
programas (como o NUD*IST), impõem certas restrições ao pesqui- 
sador: por exemplo, podem limitar a construção de redes estrutura- 
das de maneira mais fechada (tais como árvores hierárquicas). 

O exame de hipóteses 

O software para análise de dados textuais com auxílio de compu- 
tador pode também ser útil para aprimorar conceitos teóricos e exa- 
minar hipóteses. Não se deve esquecer, porém, que nesse caso o exame 
de hipótese qualitativa é um processo muito diferente do teste esta- 
tístico de hipótese. Na literatura metodológica qualitativa, não se 
encontrará nada comparável às regras precisas de decisão, que são 
aplicadas no teste de significância estatística. Em lugar disso, “testar 
e confirmar os resultados” (Miles & Huerman, 1994: 262), ou a “ve- 
rificação” (Strauss & Corbin, 1990: 108), significam, na pesquisa 
qualitativa, retornar aos dados (reler as transcrições ou as anotações 
de campo), ou retornar ao campo (fazer novas observações e entre- 
vistas), a fim de encontrar alguma evidência que confirme ou des- 
confirme os resultados. Não há, em lugar algum, regras precisas for- 
muladas para informar ao pesquisador, com certeza, sobre quando 
ele/ela tem de rejeitar ou abandonar determinada hipótese. As hipó- 
teses qualitativas, quando elas inicialmente se apresentam à mente 



— 403 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



do pesquisador não são, normalmente, proposições muito específi- 
cas e definidas sobre certos fatos, mas são conjeturas com fins de 
sondagem, imprecisas, e algumas vezes muito vagas, sobre possíveis 
relações. Melhor que chamá-las de hipóteses, seria chamá-las de hi- 
póteses sobre que tipo de proposições, descrições ou explicações se- 
riam úteis para uma análise posterior. Elas são intuições que “seja 
qual for a afirmativa específica que a [hipótese] bem-sucedida irá fa- 
zer, ela será apenas uma hipótese de um tipo, e não de outro” (Han- 
son, 1971: 291). 

Um pesquisador qualitativo que investigue carreiras ocupacio- 
nais relacionadas a gênero pode, por exemplo, formular a hipótese 
de que poderá haver uma relação entre as tendências de seus entre- 
vistados com respeito ao trabalho e à família. Para examinar essa hi- 
pótese, recursos complexos de reapresentação de dados podem ser 
extremamente úteis. A maioria dos pacotes de software hoje acessí- 
vel, possui tais recursos complexos de reapresentação, que favore- 
cem a busca de códigos que ocorrem conjuntamente. Tais co-ocor- 
rências podem ser definidas de diversas maneiras: 

• Elas são indicadas por segmentos de texto que se sobrepõem 
ou estão hierarquizados, aos quais os códigos sob investigação 
estão anexados, como é mostrado na Figura 16.3. 

• Elas são indicadas por segmentos de texto que são codificados 
sob determinados códigos (no caso da Figura 16.3, A e B), que 
aparecem dentro de certa distância máxima especificada (pro- 
ximidade) um do outro. Se essa distância máxima é um con- 
junto, digamos, de oito linhas, o programa irá reapresentar to- 
dos os casos onde um segmento de texto, codificado com o có- 
digo B, comece dentro de até oito linhas a partir do começo, 
ou do fim, de um segmento de texto codificado com o código A 
(ver figura 16.4). 

• Elas são indicadas em uma ordenação seqüencial (o código A é 
regularmente seguido pelo código B), como mostrado na Fi- 
gura 16.4). 




1 6. ANÁLISE COM AUXÍLIO DE COMPUTADOR... 





Seqüência 



Figura 16.4 - Proximidade de seqüência de códigos. 



Deste modo, a hipótese de uma relação entre tendências com res- 
peito ao trabalho e à família pode ser examinada pela reapresentação 
de todos os segmentos de texto codificados com “tendência com res- 
peito ao trabalho” e “tendência com respeito à família”. É claro que a 
noção de teste de hipótese seria, nesse caso, muito errada, caso al- 
guém a tomasse como uma tentativa de “verificar” ou “falsificar” uma 
afirmação de conteúdo empírico. Mas esse tipo de exame de hipótese 
pode levar ao desenvolvimento de proposições que podem ser falsifi- 
cadas, por exemplo, se alguém descobre que os entrevistados com 
tendências específicas com respeito ao trabalho, mostram também 
tendências específicas com respeito à família. Nesse caso, os recursos 
de co-ocorrência de códigos são empregados como um recurso heu- 
rístico com o objetivo de reapresentar o texto original no qual os códi- 
gos de co-ocorrência estão anexados. O pesquisador investiga, então, 
o sentido de determinada co-ocorrência através de uma análise com- 
pleta do texto original. A análise interpretativa dos textos da entrevis- 
ta forma a base para o esclarecimento e modificação dos pressupostos 
iniciais (gerais ou vagos) do pesquisador. 



405 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Os criadores de dois diferentes pacotes de software, HYPERRE- 
SEARCH e AQUAD, propõem um enfoque mais formal para o exa- 
me de hipótese qualitativa (ver Hesse-Biber & Dupuis, 1995; Huber, 
1995). Ao empregar o módulo de teste de hipótese do HYPER- 
RESEARCH, o pesquisador formula sua hipótese na forma de “re- 
gras de criação”, às quais os códigos são conectados com proposições 
do tipo se-então . Um pesquisador que codificou seus dados com 
códigos para eventos críticos da vida” e “distúrbios emocionais”, 
poderá querer examinar a hipótese de que certos eventos críticos da 
vida são sempre, ou freqüentemente, acompanhados por distúrbios 
emocionais. Ele poderá, então, transformar sua hipótese em uma 
busca de todas as co-ocorrências de segmentos de texto codificados 
como evento crítico da vida, com segmentos codificados como dis- 
túrbio emocional. Empregando o verificador de hipótese do HIPER- 
RESEARCH, poder-se-ia formular a regra: 

Se “eventos críticos da vida” e distúrbios emocionais”, então acres- 
centar “o evento da vida causou estresse”. 

Se o programa encontrar ambos os códigos, “eventos críticos da 
vida” e o código “distúrbios emocionais”, em um determinado docu- 
mento, a hipótese é confirmada para aquele documento, e o código 
“evento da vida causou estresse” é acrescentado a ele. 

O HIPERRESEARCH procura apenas a presença de determina- 
dos códigos dentro de um conjunto de documentos, e ao fazer isso, 
não leva em consideração a localização precisa dos segmentos de tex- 
to. Ao contrário, o programa AQUAD ajuda o pesquisador/a a usar a 
informação com respeito a sobreposição, hierarquização, proximida- 
de, ou seqüência de segmentos de texto, para exame de hipótese. Reto- 
mando nosso exemplo anterior, e empregando AQUAD, poder-se-ia 
primeiramente codificar os segmentos de texto com os códigos ecv 
(para “eventos críticos da vida”) e emo (para “distúrbios emocionais”). 
Vamos supor que, durante esse processo, venha à mente do pesquisa- 
dor a seguinte hipótese: “Sempre que os entrevistados falarem sobre 
eventos críticos da vida, eles irão, também, ao mesmo tempo, mencio- 
nar distúrbios emocionais”. Poder-se-ia operacionalizar “ao mesmo 
tempo” como “dentro de uma distância máxima de cinco linhas na 
transcrição da entrevista”, e fazer uma reapresentação que encontre 
todos os segmentos de texto codificados com ecv, onde o segmento de 
texto codificado com emo também ocorre dentro de uma distância 
máxima de cinco linhas. Examinando o resultado de tal reapresenta- 




1 6. ANÁLISE COM AUXÍLIO DE COMPUTADOR... 



ção, mostrado na Tabela 16.2, pode-se ver, por exemplo, que na en- 
trevista “biossl”, a associação de ecv e emo ocorre apenas uma vez (na 
linha 102), enquanto que na entrevista “bioss2”, há cinco passagens 
de texto onde os segmentos de texto codificados com esses códigos es- 
tão muito próximos um do outro. 

Tabela 1 6.2 - O resultado de uma busca de código de co-ocorrência com AQUAD 
Hipótese 1 / arquivo de codificação biossl .cod 



100 


102 


ecv - 


102 


104 


emo 


Hipótese 1 / arquivo de codificação 


bioss2.cod 








24 


28 


ecv - 


26 


30 


emo 


65 


70 


ecv - 


72 


82 


emo 


110 


112 


ecv - 


111 


115 


emo 


220 


228 


ecv - 


212 


224 


emo 


450 


452 


ecv - 


456 


476 


emo 



A co-ocorrência, pois, de códigos (definidos como sobreposição, 
hierarquização, proximidade ou ordenação seqüencial de segmen- 
tos de texto), indica a presença de evidência crítica a favor, ou con- 
tra, a hipótese. Diferentemente do primeiro exemplo de exame qua- 
litativo de hipótese (com respeito à relação entre tendências com re- 
lação ao trabalho e à família), o objetivo principal com este enfoque 
mais formal, seria a não reapresentação do texto, mas usar a infor- 
mação representada pelos próprios códigos como um critério de to- 
mada de decisão. Do mesmo modo que o teste de significância esta- 
tística, o processo de tomada de decisão é estritamente governado 
por regras. Há, contudo, determinadas exigências e limitações me- 
todológicas para o emprego de tal estratégia: 

1. O pré-requisito de teste independente exige que a hipótese 
não seja testada com o mesmo material empírico a partir do 
qual ela foi desenvolvida. 

2. As hipóteses devem ser empiricamente testáveis, o que signifi- 
ca que elas devem ser suficientemente precisas e tenham con- 
teúdo empírico. 

3. Os códigos que são empregados para teste de hipótese devem 
denotar claramente fenômenos precisos de maneira confiável 
e estável. 



— 407 — 






Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Proveitos metodológicos e problemas 

Desde a chegada dos primeiros programas de computador, que 
auxiliaram a pesquisa qualitativa, houve um debate acirrado sobre 
suas possíveis vantagens metodológicas e seus perigos, no qual os 
debatedores expressaram tanto um grande otimismo (Conrad 8c 
Reinarz, 1984; Richards 8c Richards, 1991), como também preocu- 
pação (Agar, 1991; Seidel, 1991; Seidel& Kelle, 1995; Coffey etal, 
1 996). Com relação às vantagens do software para pesquisa qualita- 
tiva, os três aspectos seguintes são freqüentemente mencionados 
na literatura. 

Em primeiro lugar, pelo fato de mecanizar tarefas tediosas e 
complicadas na organização dos dados, tais como localizar e copiar 
segmentos de textos, o computador pode trazer grande eficiência. 
Desse modo, o software ajuda a poupar tempo e pode auxiliar o tra- 
tamento de grandes amostras (Kelle 8c Laurie, 1995). É crucial estar 
consciente, contudo, que apenas um simples aumento no tamanho 
da amostra não irá implicar, necessariamente, que os achados da 
pesquisa sejam mais válidos. Na pesquisa qualitativa, uma grande 
amostra não é, normalmente, considerada como tendo valor em si 
mesma. Comparações múltiplas, contudo, entre casos intencional- 
mente selecionados, são cruciais para um estudo qualitativo, a fim 
de identificar padrões e criar categorias. Um aumento no tamanho 
da amostra poderá, então, acrescentar maior amplitude ao objetivo 
da análise. Há, contudo, também um perigo real de o software para 
tratamento de dados textuais ser sufocado pelo enorme volume de 
informação que é conseguido, quando se emprega tecnologia com- 
putadorizada. A quantia de tempo e esforço exigida para preparar 
os dados e colocá-los no programa, não devem ser desconsiderados 
e aumentam proporcionalmente com o tamanho da amostra. De- 
ve-se, pois, estar consciente de que as possíveis vantagens de uma 
amostra maior, podem ser prejudicadas pelos custos extra de tempo 
e esforço exigidos para a preparação e entrada dos dados. 

Em segundo lugar, o emprego de pacotes de software pode tomar 
o processo de pesquisa mais sistemático e explícito, e por isso mais 
transparente e rigoroso, pois sistematiza procedimentos que anteri- 
ormente eram não sistemáticos, e dando possibilidade aos pesquisa- 
dores paia documentar exatamente como eles analisam seus dados 
(Conrad 8c Reinarz, 1984). Por conseguinte, os computadores podem 
trazer maior confiabilidade a uma metodologia que foi sempre preju- 



— 408 — 



1 6. Análise com auxílio de computador... 



dicada devido a sua fama de seduzir o pesquisador para estilos de in- 
vestigação não sistemáticos, subjetivos e jornalísticos. 

Em terceiro lugar, ao livrar o pesquisador de tarefas mecânicas 
tediosas e complicadas, o software para tratamento de dados tex- 
tuais pode liberar mais tempo, que pode ser empregado em tarefas 
mais criativas e analíticas. Desse modo, os programas de computa- 
dor podem ampliar a criatividade do pesquisador, permitindo-lhe 
fazer experimentos e “brincar” com os dados, explorando a relação 
entre diferentes categorias de maneira mais generalizada (Lee & Fi- 
elding, 1995). 

Alertas sobre os perigos metodológicos potenciais do uso de 
computadores, muitas vezes estão relacionados com a possibilidade 
de que este possa alienar o pesquisador de seus dados e reforçar es- 
tratégias de análise, que vão contra as orientações metodológicas e 
teóricas que os pesquisadores qualitativos vêem como a marca dis- 
tintiva de seu trabalho. Em síntese, a preocupação é que o uso de 
programas de computador possa impor uma metodologia específica 
ao que os emprega. Tais inquietações foram particularmente refor- 
çadas pela observação de Lonkila (1995: 46), de que as orientações 
para os usuários, bem como os escritos metodológicos sobre softwa- 
re para tratamento de dados qualitativos, dão a impressão de uma 
forte influência da Teoria Fundamentada. Mas a Teoria Fundamen- 
tada e a análise qualitativa com auxílio de computador, partilham 
também alguns aspectos muito problemáticos, como aponta Lonki- 
la: ambas enfatizam exageradamente a codificação e, ao fazer isso, 
negligenciam outras formas de análise textual, especialmente o tipo 
de análise mais aprimorada, empregada na análise de discurso. Cof- 
fey etal. (1996) alertaram que os fortes laços entre software de “codi- 
ficação e reapresentação”, e a metodologia empírica, podem inspi- 
rar uma nova ortodoxia na pesquisa qualitativa. Um olhar mais pró- 
ximo, contudo, para os fundamentos metodológicos dos criadores, 
dá a clara impressão de que os diferentes programas foram desen- 
volvidos com base em concepções teóricas e metodológicas bastante 
diferentes. O mesmo se aplica aos usuários: em uma meta-análise de 
estudos empíricos, Lee & Fielding (1996: 3.2) descobriram que 70 
por cento de uma amostra de estudos qualitativos realizados com o 
auxílio de computadores mostraram que não há neles uma relação 
explícita com a Teoria Fundamentada. Por conseguinte, a menção 
freqüente à Teoria Fundamentada pode, talvez, ser explicada pelo 
fato de que os proponentes do enfoque da Teoria Fundamentada 



— 409 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



pertencem àqueles poucos autores que tentam descrever em detalhe 
os procedimentos analíticos aplicados à pesquisa qualitativa. Conse- 
qüentemente, não é de se surpreender que os criadores de software 
auxiliadores da análise qualitativa, que não estão à procura de uma 
sustentação metodológica, normalmente se apoiem na metodologia 
da Teoria Fundamentada como um dos enfoques mais conhecidos e 
mais explícitos na análise qualitativa. 

Lee & Fielding (1991: 8) relacionaram o medo de que o compu- 
tador tome conta da análise, ao famoso arquétipo literário da novela 
de Mary Shelley, do século dezenove, Frankenstein, ou o Moderno Pro- 
meteu. Partindo de investigações empíricas entre pesquisadores qua- 
litativos que empregam software para trabalhar com dados textuais, 
eles chegaram à conclusão de que o medo dos programas de compu- 
tador, como se fosse um tipo de “monstro Frankenstein”, é muitas 
vezes exagerado: na prática, os pesquisadores tendem a interrom- 
per o uso de determinado pacote, antes de se submeter a uma lógica 
do programa de software que seja totalmente diferente da lógica de 
investigação que eles querem empregar. 

Outras preocupações, muito freqüentemente mencionadas em 
debates atuais, referem-se ao perigo de que os computadores pos- 
sam alienar o pesquisador de seus dados (Agar, 1991; Seidel, 1991; 
Seidel & Kelle, 1995). Do mesmo modo que com o perigo de que o 
programa de computador possa tomar conta da análise, esse risco 
metodológico é também muitas vezes relacionado à codificação. Sei- 
del & Kelle (1995) argumentam que a distinção entre dois diferentes 
modos de codificação é crucial para evitar uma alienação séria dos 
dados: os códigos podem ter uma função referencial, o que significa 
que eles são como que sinalizadores para certas passagens de texto; 
ou eles podem ter uma função factual, o que significa que eles são 
empregados para denotar determinados fatos. O primeiro tipo de 
codificação é característico de um estilo aberto e indutivo de investi- 
gação, empregado por uma análise interpretativa de dados textuais, 
na tradição dos enfoques da hermenêutica e do interacionismo. O 
segundo tipo se relaciona com o estilo dedutivo de análise textual, 
na tradição da análise de conteúdo clássica. Ao empregar determi- 
nados procedimentos de software para tratamento de dados textuais, 
os analistas podem - sem se dar conta - confundir esses dois modos 
de codificação: eles podem, involuntariamente, passar do uso da 
função referencial dos códigos (coletando segmentos de texto que se 
referem, de maneira ampla e geral, a um número de conceitos defi- 



— 410 



1 6. Análise com auxílio de computador... 



nidos de maneira mais ou menos vaga), para o tralamento dos códi- 
gos, como se eles fossem represenLações de uma informação concre- 
ta. Seidel 8c Kelle chamam a atenção para o perigo de se perder o fe- 
nômeno, devido à reiflcação dos códigos: o analista começa traba- 
lhando exclusivamente com seus códigos, e se esquece dos dados 
brutos, sucedendo então que o pré-requisito necessário para que ele 
pudesse trabalhar, não foi ainda assegurado. Há apenas uma união 
vaga entre um código e um dado, em vez de uma relação claramente 
definida entre tal código e o fenômeno: o código não foi atribuído 
para denotar certo acontecimento, incidente ou fato discretos, mas 
apenas para informar ao analista que há uma informação interes- 
sante, contida em determinado segmento de texto, relacionada a 
um tópico representado por um código. Esse perigo de se perder o 
fenômeno e reificar os códigos é especialmente predominante nos 
“recursos para teste de hipótese”, descritos acima: ao procurar “tes- 
tar hipóteses”, sem ter observado os pré-requisitos necessários, isto 
é, ao aplicar regras estritas a códigos vagos e “difusos”, os pesquisa- 
dores podem, facilmente, produzir artefatos. 

Por conseguinte, a ênfase nos recursos de codificação e reapre- 
sentação dos dados, oferece novas e fascinantes possibilidades para 
que os analistas possam “brincar” com seus dados e, com isso, ajudar 
a abrir novas perspectivas e estimular novas intuições. Mas a combi- 
nação de metodologias de construção de teorias e de teste de teorias 
não nos deve seduzir, levando-nos a produzir uma simples mistura, 
ou mesmo uma confusão, nos dados. 



Passos 

Dentre uma grande variedade de diferentes possíveis estraté- 
gias, dois exemplos são: 

1 

Passo 1: formatação de dados textuais. 

Passo 2: codificação dos dados com códigos específicos (codificação 
aberta). 

Passo 3: produção de memorandos e sua anexação aos segmentos 
de texto. 

Passo 4: comparação dos segmentos de texto aos quais os mesmos 
códigos foram atribuídos. 



— 411 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Passo 5: integração dos códigos e anexação de memorandos aos có- 
digos. 

Passo 6: desenvolvimento de uma categoria central. 

2 

Passo 1 : formatação dos dados textuais. 

Passo 2: definição de um esquema de codificação. 

Passo 3: codificação dos dados dentro de um esquema de codifica- 
ção predefmido. 

Passo 4. anexação de memorandos aos códigos (não aos segmentos 
do texto!) enquanto se codifica. 

Passo 5: comparação dos segmentos de texto, aos quais os mesmos 
códigos foram atribuídos. 

Passo 6: desenvolvimento de subcategorias a partir dessa compa- 
ração. 

|I asso 7: recodificação dos dados com essas subcategorias. 

Passo 8: produção de uma matriz de dados numérica, na qual as li- 
nhas representam os documentos do texto, as colunas apresen- 
tam as categorias (códigos), os valores das categorias e as subcate- 
gorias. 

Passo 9: análise dessa matriz de dados com o SPSS. 

Os usuários que empregam outras estratégias de análise qualitativa 
(por exemplo, teste de hipótese qualitativa, ou análise qualitativa com- 
parativa), seguirão diferentes passos, mas irão empregar técnicas 
de codificação e reapresentação, de uma maneira ou outra. 



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TESCH, R. (1990). Qualitative Research: Analysis Types and Software Tools. 
New York, NY: Falmer Press. 

WEITZMAN, E. 8c MILES, M.B. (1995). Computer Programs for Qualitati- 
ve Data Analysis. Thousand Oaks, CA: Sage. 

Leitura adicional 

KELLE, U. (1997). Theory Building in Qualitative Research and Com- 
puter Programs for the Management of Textual Data, Sociological Rese- 
arch Online, 2(2): <http:/A\ww.soaesonUne.org.uk/soaesonline/2/2/l .html > 



— 415 



17 

PALAVRAS-CHAVE EM CONTEXTO: ANÁLISE 
ESTATÍSTICA DE TEXTOS 

Nicole Kronberger e Wolfgang Wagner 



Palavras-chave: ALCESTE; preparação; pergunta aberta; técni- 
ca de associação de palavras; variáveis passivas. 



As respostas a perguntas abertas são uma fonte útil de informa- 
ções para complementar os dados quantitativos obtidos de investi- 
gações com questionário. As respostas abertas não ficam restritas às 
escolhas de categorias feitas pelo pesquisador, como nas respostas a 
perguntas fechadas. Por isso, elas propiciam um fácil acesso à com- 
preensão espontânea dos respondentes com relação ao objeto em 
questão. Quando analisadas com cuidado, as respostas abertas po- 
dem ser transformadas em variáveis e juntadas ao conjunto dos da- 
dos quantitativos. Existem também programas de computador que 
permitem a análise automática de tais dados. 

Em certo sentido, perguntas abertas são um tipo de “microentre- 
vista” sobre um objeto específico. Diferentemente das entrevistas 
mais longas, contudo, as respostas a questões abertas podem ser ob- 
tidas de uma grande amostra, sem incorrer na sobrecarga normal- 
mente implícita na transcrição e análise de longos textos. A evidente 
vantagem de uma amostra ampla, contudo, implica uma negociação 
entre a necessária brevidade das respostas e a impossibilidade de 
formular perguntas adicionais, como nas entrevistas mais longas. 

As técnicas de associação de palavras são uma variante das per- 
guntas abertas. Em vez de exigir dos respondentes que dêem respos- 
tas através de uma frase completa, nas técnicas de associação de pa- 
lavras os respondentes são solicitados a escrever quaisquer palavras 



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1 7. Palavras-chave em contexto... 



que eles associem ao objeto em questão. As associações possuem a 
vantagem de não conter todos os diferentes termos “formais” que 
estruturam as linguagens naturais. Sua análise é mais direta que a 
das respostas abertas. 

O delineamento de questões abertas 

Apesar dos muitos livros-texto que tratam do delineamento de 
questionários, sua construção para objetivos específicos de pesquisa 
é ainda um tipo de arte. Se nosso interesse não for pesquisa de levan- 
tamento comercial, que necessita obedecer a um padrão estrito para 
garantir comparações, o delineamento de questionários para fins de 
pesquisa científica irá depender grandemente da criatividade do 
pesquisador e do tópico específico de pesquisa. Os critérios podem 
ser apenas um roteiro preliminar para coisas essenciais. O mesmo se 
diga com respeito à construção de questões abertas. As regras apre- 
sentadas nesse texto não são mais que orientações gerais e devem 
motivar os leitores a criar seus próprios delineamentos de acordo 
com o problema específico de pesquisa. Três aspectos, contudo, de- 
vem geralmente ser tratados com cuidado: a localização das pergun- 
tas abertas dentro do questionário, a preparação e a orientação para 
os respondentes. 

A localização das questões abertas dentro de um questionário 

Um ponto importante na construção do questionário é que as 
perguntas não apenas buscam informação dos respondentes: elas 
também contêm informação. Vejamos a pergunta: “Quando você 
ouviu falar pela primeira vez sobre alimento geneticamente modifi- 
cado?” Essa frase faz com que o respondente se torne conhecedor do 
fato de que o alimento geneticamente modificado existe, mesmo 
que ele nunca tenha ouvido falar nele antes. Quando se faz uma per- 
gunta aberta sobre, digamos, biotecnologia depois dessa pergunta, 
o nosso respondente irá, com muita probabilidade, apresentar opi- 
niões sobre alimento. E, portanto, uma boa regra apresentar asso- 
ciações de palavras logo no início, ou o mais próximo possível do iní- 
cio de um questionário. 

Uma colocação logo no início, contudo, traz outro problema. 
Para perguntas abertas, o respondente necessita estar em um estado 
de espírito mais espontâneo e confiável do que para perguntas fe- 



— 417 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



chadas. Uma solução para esse problema pode ser uma conversa in- 
trodutória com o respondente, ou um conjunto de questões sem re- 
lação nenhuma com o tópico que sirvam como uma preparação para 
a apresentação da questão aberta. Para se encontrar um equilíbrio 
entre essas exigências contraditórias, deveriam ser feitos alguns tes- 
tes com alguns poucos respondentes e uma entrevista subseqüente 
sobre suas impressões. 

A preparação 

A preparação do entrevistado, para que dirija sua atenção para o 
estímulo, é um meio de reduzir a variância nas respostas. A instrução 
de preparação deve ser bem próxima ao estímulo concreto. Se a per- 
gunta é sobre, digamos, biotecnologia, uma boa idéia é predispor os 
respondentes pedindo-lhes que pensem sobre a última vez que ouvi- 
ram alguém falar sobre biotecnologia. Eles devem, então, escrever 
quem era e também, talvez, quando e onde tal fato aconteceu. Ten- 
do completado essa tarefa preparatória, o respondente será capaz 
de concentrar-se totalmente sobre o estímulo. 

A preparação poderá tomar, também, outras formas. Em lugar 
de uma instrução verbal para que o entrevistado pense sobre o obje- 
to-estímulo, poder-se-ia apresentar o objeto em uma forma icônica. 
As fotografias sempre produzem reações mais fortes que as instru- 
ções puramente verbais. ícones, contudo, devem ser empregados 
com cautela. O pesquisador deve estar seguro de que a fotografia 
não contenha qualquer informação específica que possa, posterior- 
mente, distorcer a resposta. 

A instrução 

Depois que a atenção do respondente estiver concentrada no ob- 
jeto-estímulo, a instrução deverá ser a mais direta possível. Um 
exemplo poderia ser: “Quando você pensa sobre X (o objeto-estímu- 
lo), o que vem à sua mente? Por favor, escreva o que lhe vem à mente 
com relação a X. Você pode escrever até cinco frases”. A instrução 
contém três mensagens: 

a) qual é o objeto de estímulo 

b) o que deve ser escrito 

c) quanto deve ser escrito. 



418 — 




1 7. Palavras-chave em contexto... 



O ponto a) é direto, como é também o ponto b). Se um respon- 
dente nunca ouviu falar do objeto-estímulo antes, o entrevistador 
poderá simplesmente passar para a pergunta seguinte. O ponto c) é 
importante: o tipo de informação que o pesquisador quer conseguir, 
através de questões abertas e associações de palavras, é um padrão 
de contingências de palavras na amostra. Isto permite ao pesquisa- 
dor avaliar campos semânticos relacionados ao objeto-estímulo que 
são características de subgrupos na amostra. Por isso é uma boa idéia 
motivar o respondente a escrever o quanto mais possível. 

Quantas questões abertas são viáveis por questionário ? 

Responder a questões abertas é, para os respondentes, uma tare- 
fa penosa. A fim de não sobrecarregar os que concordaram em pre- 
encher questionários, provavelmente três questões abertas por ques- 
tionário seria o máximo. O tempo total de preenchimento não deve- 
ria exceder, digamos, meia hora se o pesquisador não quiser abusar 
da boa disposição e da boa vontade dos respondentes em colaborar. 
O pesquisador deverá testar a disposição dos respondentes, pois isso 
depende também, em grande parte, de seu nível de escolaridade e 
de sua prática em escrever. 

A amostra 

Os levantamentos com questões abertas exigem, normalmente, 
tamanhos de amostra maiores dos que são feitos normalmente. A ra- 
zão para uma proporção maior de amostra, é que as respostas aber- 
tas sempre variam mais do que as respostas a perguntas fechadas. 
Esta variância necessita ser levada em consideração quando se pla- 
neja o tamanho da amostra. Além disso, a construção de tabelas de 
contingência de palavras dilui ainda mais a freqüência dos padrões 
de contingência de associação. 

A pesquisa lida com ao menos três comparações que permitem 
diferentes tamanhos de amostra. Se a comparação é a) entre associa- 
ções de palavras de subamostras predefinidas e grupos sociais, cada 
grupo deve compreender um mínimo de 100 respondentes se a ex- 
pectativa for um consenso relativamente alto dentro dos grupos. A 
amostra deve crescer à medida que o consenso esperado diminuir. 
Se o estudo tem como objetivo b) descobrir e comparar subgrupos 
com diferentes respostas a uma questão aberta, será difícil estimar o 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



tamanho de tais grupos que só poderão ser conhecidos a posteriori-, 
contudo, um bom palpite é um mínimo de 400 respondentes. Se c) 
subgrupos devem ser comparados de acordo com um delineamento 
experimental que envolva questões abertas, ou técnicas de associa- 
ção de palavras (veja a seção sobre delineamento experimental abai- 
xo), então cada situação experimental deve compreender ao menos 
100 respondentes. 

Não é raro combinar tais subgrupos para objetivos de pesquisa 
específicos. O pesquisador pode, por exemplo, estar interessado em 
ver se seu delineamento experimental produz diferentes resultados 
em grupos socioeconômicos definidos a priori, combinando assim a) 
e c). Nesse caso, cada condição deve conter um número razoável de 
respondentes. A regra geral é: quanto mais, melhor. 

Delineamentos experimentais 

Apesar de serem perguntas abertas e produzirem um tipo de ban- 
co de dados qualitativos, as técnicas de tarefas de associação de pala- 
vras permitem um espectro de delineamentos experimentais interes- 
santes. Delineamentos experimentais podem ser variações nas verba- 
lizações ou na ordem das perguntas nos questionários. Tecnicamente, 
tais delineamentos são chamados de levantamentos por metades. 

Um exemplo de um delineamento experimental poderá ser apre- 
sentar subamostras com fraseados levemente diferentes do obje- 
to-estímulo: por exemplo, para a metade dos respondentes se solici- 
ta que escrevam opiniões sobre “biotecnologia” e para a outra meta- 
de opiniões sobre “engenharia genética”. Toda diferença entre as 
duas subamostras irá indicar diferentes estilos de pensamento sobre 
esses dois conceitos, mesmo que, tecnicamente falando, os dois ter- 
mos possam ser considerados equivalentes. 

O planejamento de duas questões abertas sobre dois objetos-estí- 
mulo diferentes, mas relacionados, em um questionário, nos vai per- 
mitir avaliar a interdependência semântica entre eles. No pensar co- 
tidiano, os campos conceptuais são, muitas vezes, hierarquicamente 
relacionados. Isso significa que um objeto A é inferido, ou pensado, 
dentro do contexto do objeto B, mas não vice versa. Para esse fim, 
modifica-se a seqüência de questões abertas sobre o estímulo A e o 
estímulo B varia, com metade da amostra respondendo ao A antes 
do B, e a outra metade respondendo ao B antes do A. Se, por exem- 
plo, nós quisermos saber se os campos semânticos de “paz” e “guer- 



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1 7. Palavras-chave em contexto... 



ra” estão ou não hierarquicamente relacionados, poderemos consta- 
tar que os respondentes têm suas associações sobre “paz” influencia- 
das quando pensaram primeiro sobre “guerra”, mas suas associa- 
ções sobre “guerra” são menos influenciadas quando pensaram pri- 
meiro sobre “paz” (ver Wagner et ai, 1996, para um exemplo). 

A preparação de respostas abertas para análise 

Há duas maneiras de lidar com respostas a perguntas abertas: 
uma é categorizar as respostas de acordo com algum esquema de ca- 
tegorização teoricamente informado e o outro é tomar as respostas 
como elas são. O primeiro modo, categorização, produz uma in- 
fluência forte, e muitas vezes indevida, do referencial conceptual do 
pesquisador sobre os dados. A categorização somente é aceitável se 
os pesquisadores tiverem uma fortejustificação para suas categorias. 
As categorizações podem facilmente ser aplicadas a um arquivo de 
dados quantitativos e sua análise através de pacotes estatísticos pa- 
dronizados é bastante simples. Por isso, o restante desse capítulo irá 
se referir apenas à análise de respostas à linguagem natural. 

Respostas abertas e tarefas de associação de palavras podem ser 
analisadas tanto através de análise de conteúdo manual (ver Bauer, 
cap. 8 neste livro), como através de procedimentos estatísticos auto- 
máticos. A análise de conteúdo clássica tem a ver com o sentido de 
proposições e sentenças, em falas que um locutor de uma respectiva 
língua, culturalmente instruído e competente, pode facilmente dis- 
cernir. Análise automática é feita com programas de computador 
que, mesmo hoje, são incapazes de entender o sentido. A análise 
computadorizada substitui o sentido da frase, analisando co-ocor- 
rências localizadas de palavras. A idéia subjacente é que o sentido 
das proposições e sentenças pode ser captado, se for possível identi- 
ficar aquelas palavras que andam juntas nas frases e que são ditas 
pelo maior número de respondentes possível. 

Imaginemos o seguinte exemplo. Suponhamos que estamos fa- 
zendo um levantamento sobre o que as pessoas pensam sobre biotec- 
nologia. Uma pergunta aberta é inserida, solicitando-se aos entre- 
vistados que escrevam tudo o que lhes vem à mente quando eles 
pensam em biotecnologia. Obteremos algo semelhante à seguinte 
série de afirmações: 

0001 ... Biotecnologia produz novo alimento. Isso fará com 

que fiquemos doentes... 



— 421 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



0002 ... As pessoas podem contrair toda sorte de doenças ao 
comer verduras artificialmente criadas... 

i ... Nós não sabemos ainda se o alimento geneticamente 
modificado produz alergias... 

k ... etc. ... 



Dado que um número qualificado de respondentes produz afir- 
mações desse tipo, ou similares, que basicamente expressam o mes- 
mo sentido, seremos capazes de observar muitas co-ocorrências en- 
tre “biotecnologia”, “criação”, “geneticamente modificados”, “ali- 
mento” e “verduras”, por um lado, e “doente”, “doença” e “alergi- 
as”, por outro lado. Os respectivos termos co-ocorrem, tanto na 
mesma, como nas sentenças subseqüentes. O programa poderá ser 
informado de que os termos relevantes são sinônimos com respeito à 
questão de pesquisa em foco. Por essa razão, os programas tanto nos 
permitem definir sinônimos manualmente ou podem possuir já um 
dicionário próprio. O resultado, para nosso exemplo, será que o 
programa irá produzir um gráfico que mostrará os termos “biotec- 
nologia”, “alimento” e “doença” em estreita proximidade. Isso leva 
o pesquisador a concluir que um número substancial de responden- 
tes considere o alimento manipulado biotecnologicamente como 
prejudicial à saúde humana. 

De maneira geral, o pesquisador pode fazer a maioria das análi- 
ses básicas manúalmente e não necessitará programas como o SPAD.t 
ou ALCESTE, embora eles tornariam, certamente, a vida mais fácil. 
Antes de discutir o emprego desses programas, devemos descrever 
brevemente o procedimento “manual”, que emprega um editor de 
texto e SPSS. Isso irá mostrar os elementos básicos para analisar res- 
postas a perguntas abertas. 

O tratamento de sinônimos 

Respostas verbais necessitam ser tornadas homogêneas com res- 
peito a sinônimos. O que passa a ser um sinônimo é uma questão 
complicada, e depende do problema de pesquisa em questão. “Pro- 
teção para a cabeça”, “chapéu”, “gorro” e “boné”, podem ser sinôni- 
mos em alguns contextos de pesquisa, mas não em outros. Por con- 
seguinte, o pesquisador deve decidir que variações semânticas se- 
cundárias ele quer reter. Se for aceitável homogeneizar essas ex- 



— 422 




1 7. Palavras-chave em contexto... 



pressões, então podemos substituir expressões menos freqüentes na 
amostra, pelas mais freqüentes. Assim, se “chapéu” for a palavra 
mais freqüente nos dados, toda outra expressão sinônima, tal como 
“proteção para a cabeça”, “gorro” e “boné”, podem ser substituídas 
por “chapéu”. 

Os dados, muitas vezes, devem ser também homogeneizados com 
respeito a palavras semanticamente equivalentes em classes de pala- 
vras. Em um contexto específico de pesquisa, poderá ser perfeita- 
mente correto igualar nomes, adjetivos e verbos que expressem um 
objeto, um estado de espírito ou uma atividade que estejam a eles re- 
lacionados. Qualquer uma das duas expressões “lutar” (verbo), e 
“batalha” (substantivo), podem ser substituídas uma pela outra, sem 
perda de detalhes relevantes. A mesma regra se aplica a “beleza” 
(substantivo), e “lindo” e “bonito” (adjetivos). Geralmente o sinôni- 
mo mais freqüente deve substituir os menos freqüentes. 

Os sinônimos podem ser homogeneizados de maneira melhor se 
o pesquisador construir duas listas de palavras, uma ordenada alfabe- 
ticamente e a outra pela freqüência das palavras. Tanto SPAD.t como 
ALCESTE nos permitem construir tais listas, mas há um bom número 
de outros programas no mercado que nos permitem também ler da- 
dos verbais e produzir listas de palavras. E muito cansativo produzir 
tais listas manualmente, mesmo com amostras pequenas. 

Muitas vezes é difícil decidir o que fazer com negações. Palavras 
como “não”, “nunca”, “nem”, e “contra” devem ser, ou não, conecta- 
das com a palavra, ou expressão, negadas, por exemplo, através de 
um hífen, ou outro símbolo? Muitas vezes é suficiente homogeneizar 
as diferentes formas de negação que existem nos textos, pois assim a 
negação irá aparecer na análise juntamente com a palavra negada, 
se elas forem suficientemente freqüentes nos dados. Isso depende, 
certamente, do problema específico de pesquisa. 

A seleção das palavras relevantes e a preparação do arquivo de dados 

Uma vez homogeneizados, os dados devem ser examinados com 
respeito às palavras relevantes, através do emprego de uma lista de 
palavras ordenadas por freqüência. Uma amostra média de, diga- 
mos, 200 entrevistados produzirá, em geral, mais de 1000 palavras 
diferentes, muitas das quais serão muito raras. As palavras que pro- 
duzem contingências são aquelas com uma relação mais direta com 
o objeto-estímulo e com uma razoável freqüência na amostra. O nú- 



— 423 — 




PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



mero de palavras relevantes, empregado para análise posterior ra- 
ramente excederá o número de 20, mesmo em grandes amostras. 
Do mesmo modo que com o teste da “curvatura” {scree test ) na análise 
fatorial clássica, o número de palavras relevantes é determinado por 
certa curva significativa na distribuição das palavras ordenada pela 
freqüência. Essa técnica é razoavelmente segura no processo de se- 
parar palavras relevantes com sentido compartilhado dos termos 
idiossincráticos. 

Por mais radical que possa parecer o fato de reduzir uma lista de 
1.000 palavras, ou mais, a uma lista de apenas pouco mais ou menos 
de 20, esse é um passo necessário se quisermos descobrir campos de 
co-ocorrência de palavras. Quanto menos freqüente uma palavra, 
menos provável que um número razoável de contingências com ou- 
tras palavras possa ser observado na amostra. 

Como uma espécie de salvaguarda, é geralmente aconselhável 
incluir até duas vezes mais palavras no conjunto de dados, do que o 
número de palavras julgado relevante, de acordo com o teste da 
“curvatura” {scree test). Isto é, o pesquisador poderá incluir palavras 
com ocorrência menos freqüente que o mínimo exigido. Embora 
esse surplus de palavras raramente seja incluído na análise subse- 
qüente, poderá muito bem suceder que algum resultado inesperado 
nos leve a examinar palavras adicionais, para esclarecer o sentido es- 
pecífico das classes de palavras. Especialmente ao se comparar as es- 
truturas semânticas em diferentes amostras, essas palavras adicio- 
nais podem acabar tornando-se necessárias para garantir uma com- 
pleta sobreposição entre listas de palavras de diferentes amostras. 

Deve-se notar que entre as palavras mais freqüentes haverá sem- 
pre um grande número de verbos auxiliares, termos formais sem 
sentido, em geral curtos, repetidos por hábito, e outras formas lin- 
güísticas, que são irrelevantes para a pesquisa. Estas palavras, é evi- 
dente, não entrarão na lista de palavras relevantes a serem analisa- 
das e serão descartadas. 

Idealmente, os dados preparados constando de palavras, serão 
juntados ao arquivo que contém os dados quantitativos do estudo. 
Isso significa juntar o arquivo de dados quantitativos a um arquivo 
que contém o mesmo número de casos e n variáveis, onde n é o nú- 
mero de palavras relevantes e freqüentes mais as “palavras surplus”, 
e cada uma das variáveis designa uma palavra. Esse arquivo será 
uma matriz de indicadores, onde o número 1, na coluna i, significa 



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1 7. Paiavras-chave em contexto... 



que o respondente empregou a palavra i, e o número 0 significa que 
ele/ela não a empregou. Note-se que ambos os arquivos necessitam 
ser ordenados de acordo com um critério comum, antes de serem 
juntados. O espaço não nos permite aqui um tratamento extensivo 
de como preparar o arquivo de dados (ver Wagner, 1997, para um 
exemplo prático), mas é suficiente dizer que os procedimentos de 
“procurar-e-substituir”, nos editores de texto, bem como certos pro- 
cedimentos no SPSS, permitem facilmente, com apenas alguns pas- 
sos, a conversão do arquivo de dados de palavras em um arquivo de 
dados para o SPSS. 

Análise estatística de listas de palavras com o emprego de 
pacotes estatísticos padronizados 

Uma vez construída a matriz de indicadores e/ou juntada ao ar- 
quivo dos dados quantitativos, a análise estatística é simples. Sendo 
que as variáveis de palavras n representam dados de categorias, mé- 
todos como análise de correspondência (ANACOR no SPSS) são os 
métodos para escolha. (Note-se que HOMALS não é muito apropria- 
do para analisar matrizes de indicadores, porque esse programa irá 
processar as ocorrências 0 bem como as ocorrências 1 simultanea- 
mente, o que irá obscurecer consideravelmente os gráficos resultan- 
tes). De maneira alternativa, o uso de escalas multidimensionais po- 
derá ser aplicado a uma matriz de correspondência, descrevendo o 
padrão de co-ocorrências entre palavras. 

A análise de correspondência trabalha com matrizes de corres- 
pondência e ela compara perfis das linhas e colunas das categorias. 
Ela calcula as distâncias do X quadrado dos perfis linha/coluna, a 
partir da média do perfil linha/coluna, e submete a matriz da distân- 
cia resultante a uma decomposição de “valor próprio” 1 (“eigenva- 
lue”). Isto resulta em um espaço dimensional (n-1), onde n é o nú- 
mero de linhas ou colunas, dependendo de qual seja o menor. As li- 
nhas/colunas são, então, projetadas nesse espaço, e aparecem tanto 
mais próximas umas às outras, quanto maior for a semelhança entre 
seus perfis (ver Greenacre, 1993). 

Este método estatístico opera em matrizes simétricas e quadradas, 
palavra por palavra, representando as freqüências de co-ocorrência 



1. “Eigenvalue” - “valor próprio” - cada um de um conjunto de valores de um parâmetro, para 
o qual uma equação diferencial tem solução não-zero (uma “eigenfunction”), sob determina- 
das condições. 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



de palavras, e em matrizes assimétricas, onde, por exemplo, as linhas 
são categorias socioestatísticas, e as colunas são palavras. No caso das 
matrizes palavra por palavra, do mesmo modo, as classes no espaço 
resultante são compostas de palavras que aparecem em contextos se- 
melhantes. No caso de matrizes assimétricas, as classes revelam o em- 
prego comum, ou distinto, de palavras pelos respondentes que per- 
tençam a diferentes categorias socioestatísticas. Devido ao fato de po- 
der ser aplicada a todo tipo de matrizes, a análise de correspondência 
é freqüentemente empregada para analisar dados verbais. 

Enquanto que a análise de correspondência leva em consideração 
as distâncias entre perfis, o uso de escalas multidimensionais analisa 
apenas matrizes de correspondência quadradas e simétricas, assu- 
mindo que tenham dados semelhantes. A matriz é, então, submetida 
à decomposição de “valor próprio” (veja nota 1), e um espaço n-di- 
mensional é construído, onde os objetos se apresentam tanto mais 
próximos quanto mais freqüentemente eles aparecerem juntos nas 
respostas. Este método é em geral menos usado, mas merece ser leva- 
do em consideração em determinados delineamentos de pesquisa. 

Análise estatística de texto com linguagem natural usando 
ALCESTE 

Visão geral 

ALCESTE é uma técnica computadorizada e também uma meto- 
dologia para análise de texto. Foi desenvolvida por Max Reinert 
(1983; 1990; 1993; 1998) como uma técnica para investigar a distri- 
buição de vocabulário em um texto escrito e em transcrições de texto 
oral. E também uma metodologia, porque o programa integra uma 
grande quantidade de métodos estatísticos sofisticados em um todo 
orgânico que se ajusta perfeitamente ao seu objetivo de análise de 
discurso. Tomado em seu conjunto, o programa realiza uma com- 
plexa classificação hierárquica descendente, combinando elementos 
de diferentes métodos estatísticos como segmentação (Bertier 8c 
Bouroche, 1975), classificação hierárquica e dicotomização, basea- 
das em médias recíprocas, ou análise de correspondência (Benzécri, 
1981; Greenacre, 1993; Haiashi, 1950) e a teoria das “nuvens dinâ- 
micas” (Diday^faZ., 1982). 

Como todos os outros métodos destinados a analisar respostas a 
questões abertas, ALCESTE não é uma técnica para testar hipóteses 



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1 7. Palavras-chave em contexto... 



a priori, mas um método para exploração e descrição. Embora não 
possa dar conta do sentido e contexto, como o fazem os métodos 
manuais de análise qualitativa, sua vantagem é que dentro de um 
curto espaço de tempo o pesquisador pode conseguir uma visão ge- 
ral do volumoso corpus de dados. 

As precondições para bons resultados com ALCESTE são as se- 
guintes. Primeiro, os dados do texto que vão ser analisados com 
ALCESTE devem mostrar certa coerência. Esta é normalmente a si- 
tuação quando informações como respostas a uma pergunta aberta, 
entrevistas, narrativas orais, dados da mídia, artigos ou capítulos de 
livro, enfocam um tópico específico. Em segundo lugar, o texto deve 
ser suficientemente grande. O programa é útil para dados de um 
texto de no mínimo 10.000 palavras, até documentos tão volumosos 
como 20 exemplares de Madame Bovary. 

Em ALCESTE, uma afirmação é considerada uma expressão de 
um ponto de vista, isto é, um quadro de referência, dita por um nar- 
rador. Este referencial traz ordem e coerência às coisas sobre as 
quais se está falando. Quando se estuda um texto produzido por di- 
ferentes indivíduos, o objetivo é compreender os pontos de vista que 
são coletivamente partilhados por um grupo social em um determi- 
nado tempo. Quando se pensa sobre um objeto, existem sempre di- 
ferentes e contrastantes pontos de vista. O pressuposto de ALCESTE 
é que pontos diferentes de referência produzem diferentes manei- 
ras de falar, isto é, o uso de um vocabulário específico é visto como 
uma fonte para detectar maneiras de pensar sobre um objeto. O ob- 
jetivo de uma análise com ALCESTE, portanto, é distinguir classes 
de palavras que representam diferentes formas de discurso a respei- 
to do tópico de interesse. 

A análise de ALCESTE 

Preparando os dados do texto : em primeiro lugar, o corpus dos tex- 
tos é preparado pelo analista. O texto de cada respondente, ou outra 
unidade de texto de linguagem natural, é caracterizado por seus as- 
pectos relevantes, como idade, sexo, profissão, etc. Em segundo lu- 
gar, as unidades de análise relevantes são definidas. Na linguagem 
natural, uma afirmação é uma unidade de sentido que liga um con- 
teúdo proposicional com a intenção, a crença, o desejo e a cosmovi- 
são de um sujeito. Ao contrário de uma única palavra, a afirmação é 
sobre um objeto do ponto de vista do sujeito que fala ou que escreve. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



É essa dupla dimensão do sujeito e do objeto que faz da afirmação 
uma unidade adequada para estudar o discurso que tem lugar entre 
indivíduos e dentro dos grupos. 

Falando de maneira geral, a definição de uma afirmação pode 
ser sintática, pragmática, semântica ou cognitiva. Para evitar ambi- 
güidades, as afirmações são operacionalizadas como “unidades con- 
textuais” na nomenclatura de ALCESTE. O programa determina 
automaticamente as unidades contextuais ao considerar a pontua- 
ção, de um lado, e o tamanho de uma afirmação (que pode ser deter- 
minado pelo usuário) com até o máximo de 250 caracteres, por ou- 
tro lado. 

A fim de eliminar sinônimos (ver acima), diferentes formas da 
mesma palavra (por exemplo, plurais, conjugações e sufixos) são au- 
tomaticamente reduzidos à sua radical. Verbos irregulares são iden- 
tificados e transformados ao indicativo. Tudo isso é conseguido atra- 
vés da ajuda de um dicionário e resulta em uma matriz contendo as 
assim chamadas “formas reduzidas”. Esse procedimento muitas ve- 
zes aumenta o número de entradas 1 na matriz dos dados e torna o 
método estatisticamente mais poderoso. 

Um outro ponto é que nem todas as palavras carregam informa- 
ção relevante. Por exemplo, em um texto a palavra “fome” é mais re- 
levante que o artigo “o”. Com base, novamente, em um dicionário, o 
corpus é subdividido em um grupo de “palavras com função”, tais 
como artigos, preposições, conjunções, pronomes e verbos auxilia- 
res, e um grupo de “palavras com conteúdo”, tais como substantivos, 
verbos, adjetivos e advérbios. E esse segundo grupo de palavras que 
contém o sentido do discurso e a análise final é baseada nessas pala- 
vras. As palavras com função são excluídas da primeira análise, mas 
servem como informação adicional. Deve-se notar, contudo, que 
ALCESTE também trabalha com textos em línguas para as quais não 
existem dicionários; nesse caso, não são criadas formas radicais, 
nem é identificada a função das palavras. 

A segmentação em unidades contextuais e a identificação de pa- 
lavras relevantes ao discurso, concluem os primeiros passos executa- 
dos por ALCESTE. 

Criando as matrizes de dados : o objetivo da metodologia de 
ALCESTE é investigar as semelhanças e dessemelhanças estatísticas 
das palavras a fim de identificar padrões repetitivos de linguagem. 
Tecnicamente, tais padrões são representados por uma matriz de in- 



— 428 



1 7. Palavras-chave em contexto... 



dicadores que relaciona palavras relevantes em colunas e unidades 
contextuais (isto é, a operacionalização das afirmações) em linhas. 
Lembremos que uma matriz de indicadores é uma tabela com 1 se 
determinada palavra está presente, e com 0 se ela está ausente, na 
respectiva afirmação. Normalmente essa é uma matriz bastante va- 
zia, contendo até 98 por cento de zeros. 

A distribuição de entradas nessa matriz, bem como os resultados 
conseqüentes, dependem, com menor ênfase, do tamanho das uni- 
dades contextuais empregadas no recorte do texto. Afim de reduzir 
a ambiguidade de possíveis resultados e encontrar uma solução que 
seja relativamente estável, ALCESTE sempre calcula matrizes e so- 
luções para duas unidades de tamanho um pouco diferentes. Por 
exemplo, uma matriz pode estar baseada em unidades com um ta- 
manho mínimo de 10 palavras e a outra com 12. Se as duas classifica- 
ções, resultantes das duas matrizes são razoavelmente semelhantes, 
ALCESTE, ou o pesquisador, pode supor que os tamanhos de unida- 
de escolhidos são adequados para o texto em questão. Se isso não 
acontecer, os tamanhos das unidades podem ser mudados até que se 
encontre uma solução relativamente estável. A modificação experi- 
mental do tamanho das unidades de texto é um tipo de teste empíri- 
co para a estabilidade do resultado. 

Procurando uma classificação : o passo seguinte consiste na identifi- 
cação de classes de palavras. O método é a análise de classificação hie- 
rárquica descendente, que é adequado para matrizes de indicadores 
de grande escala, com poucas entradas. (Note-se que para a análise 
de classificação hierárquica descendente nós empregamos o termo 
“classe”, em vez de “agrupamento” -“cluster”-, que é usado para a 
análise mais tradicional de agrupamento ascendente.) 

O conjunto total de unidades contextuais na matriz de indicado- 
res inicial (unidades contextuais por palavras) constitui a primeira 
classe. O objetivo do próximo passo é conseguir uma divisão dessa 
classe em duas, que separem, da maneira mais nítida possível, as 
classes resultantes, de tal modo que as duas classes contenham dife- 
rentes vocabulários e, no caso ideal, não contenham nenhuma pala- 
vra sobreposta. Tecnicamente, isso consiste na decomposição da ma- 
triz em duas classes através de um escalonamento otimizado e inter- 
rompendo o conjunto ordenado de palavras quando um critério, ba- 
seado em determinado valor do x quadrado, alcançar um ponto má- 
ximo. ATabela 17.1 mostra um exemplo idealizado de tal decompo- 



— 429 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



sição. Os dois subconjuntos resultantes, ou classes 2 e 3, são separa- 
dos de maneira otimizada no sentido de terem o mínimo de sobre- 
posição possível, em termos de palavras. Os números na Tabela (k2j, 
k3j) indicam a freqüência das unidades contextuais para cada classe 
contendo uma palavra específica/. No nosso exemplo, a classe 2 
consiste de afirmações contendo palavras como “alimento” e “fru- 
ta”, enquanto que palavras como “câncer” e “cura” são tipicamente 
da classe 3. É claro que raramente será possível separar afirmações 
de tal modo que palavras que ocorram em uma classe não ocorram 
em outra. Haverá sempre algum vocabulário sobreposto, çpmo a pa- 
lavra “digamos” no exemplo. 



Tabela 17.1 - Decomposição da matriz original em duas classes 



Vocabulório específico Vocabulário Vocabulário específico da 
da classe 2 sobreposto classe 3 





alimento 


fruta 


Digamos palavra j 


cura 


câncer 




Classe 2 


45 


12 


20 


fcj/ 


0 


0 


k 2 


Classe 3 


0 


0 


21 


y 


33 


20 


^3 




45 


12 


41 




33 


20 


k 



Como se sabe, o procedimento com X quadrado consiste na com- 
paração de uma distribuição observada, com uma distribuição espe- 
rada. Em termos mais técnicos, o procedimento identifica, a partir 
de todas as separações possíveis, as duas classes que maximizam o 
seguinte critério de X quadrado: 



X 2 =k 2 k 3 £ 

JeJ 



yk 2 



k ^ 

K 3j 



"3 J 



/ k - 



onde 

k 2j =ZV’ k 2 =Z k 2 j’ k J = k 2; +k 3; 

ie / 2 iel j 



No presente caso, a distribuição de palavras em cada uma das 
duas classes é comparada com a distribuição média das palavras. Se 
existirem ali diferentes formas de discurso empregando vocabulário 
diferente, então a distribuição observada irá se desviar sistematica- 
mente de uma distribuição onde as palavras são independentes uma 
da outra. Neste contesto, o critério de X quadrado é empregado não 



— 430 — 





1 7. Palavras-chave em contexto... 



como um teste, mas como uma medida da relação existente entre 
palavras; esse procedimento procura separar da maneira mais níti- 
da possível padrões de co-ocorrência entre as classes. Para determi- 
nar quando esse X quadrado máximo é alcançado, ALCESTE em- 
prega outros procedimentos estatísticos. 

O método de classificação hierárquica descendente é um proce- 
dimento iterativo. Nos passos seguintes, a maior das classes 2 e 3 é 
decomposta a seguir, e assim por diante. O procedimento se inter- 
rompe se um predeterminado número de repetições não resulta em 
divisões posteriores. O resultado final é uma hierarquia de classes 
(Figura 17.1). 



Classe 1 

Primeira análise 




Classe 2 
Segunda análise 



Classe 3 
Terceira análise 



Classe 4 Classe 5 



Classe 6 Classe 7 



Figura 17. 1 - Representação esquemática de classificação hierárquica 
descendente do ALCESTE . 



Descrevendo e interpretando as classes: o ALCESTE produz um arqui- 
vo volumoso de resultados, oferecendo várias fontes para interpreta- 
ção. Descreveremos aqui as seções mais importantes dos resultados. 
Como ilustração, tomamos um estudo comparando diferentes textos 
e respostas de entrevistas sobre biotecnologia (Allum, 1998). O autor 
analisou, entre outras, a resposta de uma amostra inglesa a uma per- 
gunta aberta do levantamento Eurobarometer de 1996 (46. 1): 

“Agora, gostaria de lhe perguntar o que vem a sua mente quan- 
do você pensa sobre a moderna biotecnologia em um sentido amplo, 
isto é, incluindo engenharia genética.” 

As 973 respostas foram transcritas literalmente e submetidas à 
análise de ALCESTE. 



— 431 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



ALCESTE computa, para cada classe, uma lista de palavras que 
são características dessa classe. A força da associação entre cada pa- 
lavra e sua classe é expressa por um valor do X quadrado, e todas as 
palavras que excedem determinado valor do X quadrado, são lista- 
das. Quanto maior o valor, mais importante é a palavra para a cons- 
trução estatística da classe. Essas listas de palavras são a fonte básica 
para interpretar as classes. 

Os dados do arquivo ALCESTE contêm não apenas palavras 
com conteúdo, mas também palavras com função e — se for solicitado 
- também atributos dos respondentes. Note-se que as palavras com 
função e as variáveis de atributo não entram na análise de classifica- 
ção, mas servem como variáveis ilustrativas para descrição da classe. 
Elas são variáveis “passivas”. 

A análise ALCESTE das respostas à pergunta aberta sobre bio- 
tecnologia dá lugar uma resolução com seis classes. A Tabela 17.2 
lista as palavras mais típicas para as classes ordenadas com base na 
força de associação. Um olhar mais cuidadoso para a lista de pala- 
vras nos permite nomear cada classe. Classe D, por exemplo, com- 
preende um discurso que relaciona a biotecnologia à reprodução e à 
embriologia. Para cada classe, o arquivo resultante contém também 
um número de combinações características de palavras: 

*** classe n. 4 (máximo de 20 X quadrados) *** 

3 4 15 experimento + proveta+ crianças 
2 4 6 experimento + proveta + 

2 3 6 inseminação artificial 
2 4 2 eu suponho + 

2 4 2 eu penso. 

2 4 2 ou não 
2 4 2 sobre isso 
2 4 2 com animal + 

2 4 2 uma criança + 

2 4 2 tratamento de fertilidade + 
etc. 



432 — 




1 7. Palavras-chave em contexto... 



Esta lista mostra que as afirmações na classe D contêm muitas ve- 
zes as palavras “experimento”, “proveta” e “crianças” combinadas. 

Tabela 1 7.2 - Exemplo de classes semânticas provenientes de uma amostra de 
pergunta aberta (Allum, 1998: 35). As palavras estão ordenadas com base na força 
da associação. Um + no fim de uma palavra Índica sua radicai 



A 


B 


C 


D 


E 


F 


interferin- 
do com a 
natureza 


não sei 


preocupação 

não 

especificada 


reprodução 


que cura 
doença 


alimento 


interfer+ 


escutar 


criar 


artificial 


câncer 


cultivar 


confusão 


conhecer 


genético 


crianças 


curar 


animal 


natureza 


compreender colocar 


insemina + 


doença 


alimento 


ao redor 


outra coisa 


abuso 


experimento 


melhorar 


fruto 


deixar 


nada 


cuidadoso 


proveta 


novo 


ouvido 


tomar 


real 


preocupação 


gravidez 


descobrir 


fazenda 


jogar 


não pode 


dizer 


esperma 


ajudar 


para baixo 


tentando 


idéia 


aprovar 


criança + 


desenvolver 


bactéria 


sentir 


seguro 


feijão 


morto 


droga 


plantação 


curso 


significar 


criar 


especi + 


tratamento 


melhora 


bom 


dizer 


fim 


mulher 


energia 


planta 


ir 


mente 


soja 


preocupação 


médic+ 


tomates 


deixar 


opinião 


eles fizeram 


clonagem 


medicina 


usar 


alterar 


risco 


uso 


órgão 


prevenir 


guardar 


mau 


isto é 


em - para 


porco 


pesquisa 


livrar 


acontecer 


comentário 


para 


seleção 


tecnolog + 


químic+ 


olhar 


palavra 


conseguir 


human + 


ajuda 


detectar 


natural 


resposta 


dar 


manipul-l- 


melhor 


fácil + 


Pergunta 


duro 


fazer 


material 


sem filhos 


ambient+ 


raça 


vir 


pensar 


pista 


comunic+ 


erradicar 


etc. 


etc. 


etc. 


etc. 


etc. 


etc. 



Outra, e importante, chave para nomear e interpretar o discurso 
em cada classe, é o conjunto de afirmações originais e prototípicas as- 
sociado a ela. Essa lista é proporcionada por ALCESTE e nos permite 
determinar o contexto dentro do qual cada palavra é usada no texto 
original. O que segue são as afirmações mais exemplificadoras das 



— 433 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



quais a classe D foi originada (note-se que o símbolo # assinala as pa- 
lavras relevantes para a classe, e $ indica o fim de uma resposta,): 

6 35 Clé sélectionnée : D (chave selecionada: D) 

224 105 0293 #experimento #proveta #crianças #artifici- 
al #inseminação #clonagem #transplantando #porcos 
#órgãos em #humanos$ 

157 47 0400 vai de #clonando DNAe #experimento #pro- 
veta #humanos$ 

659 47 2028 #experimento #proveta #crianças #trans- 
plantes$ 

80 42 0489 faz com que uma #mulher tenha uma criança 
ou uma #menina se ela quiser então poderá haver produ- 
ção de #crianças através de #experimentos de #proveta 
#criação é uma bela porcaria ter belos pepinos que têm 
#perdido seu gosto$ 

679 39 2068 #experimento #proveta #crianças problemas 
de mulheres na TV e #esperma e o pai da #criança$ 

750 36 2103 #experimento #proveta #crianças confusão 
sobre isso #materiais não se deveria$ 

0449 eles podem #manipular a química da #espécie #hu- 
mana$ 

146 35 0407 #experimento #proveta #crianças$ 

211 35 0347 #experimento #proveta #crianças$ 

31935 0213a mulher tendo uma #criança do #esperma de 
seu marido #morto$ 

769 35 2142 #experimento #proveta #crianças$ 

592 29 2397 interromper uma #gravidez se o feto tem #do- 
ença #seleção #inseminação #artificial$ 



Os resultados podem ser representados graficamente em um es- 
paço de correspondência. Para esse fim, uma matriz empregando ta- 
belas cruzadas de classes e palavras em sua forma reduzida (radicais) é 
submetida a uma análise de correspondência. Ela apresenta uma re- 
presentação espacial das relações entre as classes, onde suas posições 



— 434 




1 7. Palavras-chave em contexto... 



refletem sua relação em termos de proximidade. Três gráficos são 
construídos: o primeiro representa as relações entre as palavras com 
conteúdo, o segundo representa as palavras com função, e o terceiro 
projeta as variáveis passivas, isto é, os atributos dos respondentes, no 
espaço das palavras com conteúdo e das classes de discurso. Os três 
gráficos podem ser sobrepostos e lidos em conjunto. 

Finalmente, os resultados devem ser interpretados. É aqui que 
entram em jogo o pesquisador e seu conhecimento do campo, para 
dar uma interpretação teórica empiricamente justificada. No caso 
ideal, a interpretação deveria fornecer o conteúdo semântico à in- 
formação puramente estrutural do espaço discursivo produzido por 
ALCESTE, apoiando-se em outros métodos de análise de texto e 
análise de discurso. 

Do mesmo modo que na análise de ALCESTE, os dados de res- 
posta apresentados aqui foram analisados de acordo com seu con- 
teúdo e categorizados manualmente na maneira tradicional. Na Fi- 
gura 17.2, as classes de ALCESTE e as categorias avaliativas conse- 
guidas através da análise de conteúdo manual são projetadas em um 
espaço de correspondência. Como se pode perceber, as afirmações 
que pertencem às classes “interferindo na natureza” e “preocupação 
não especificada”, são claramente categorizadas como negativas, e a 
classe “curando doenças”, no pólo oposto, é categorizada como po- 
sitiva. As categorias restantes de avaliação “neutra”, e “ambivalen- 
te”, ficam no meio, e aparecem próximas àquelas classes de AL- 
CESTE que não puderam ser classificadas ou que contêm respostas 
“não sei”. A alta correspondência entre a análise de conteúdo auto- 
mática e a tradicional, representa uma validação mútua dos diferen- 
tes métodos. 

Problemas e exemplos 

Apesar de sua grande versatilidade, ALCESTE possui algumas 
limitações. A principal é que só existem dicionários para um peque- 
no número de línguas: atualmente as línguas contempladas são o in- 
glês, francês, italiano, português e espanhol. Infelizmente, nem to- 
dos os dicionários são completos e algumas vezes eles não conse- 
guem identificar os plurais e outras formas. Línguas não-romanas 
não são absolutamente contempladas. Porém, não é tão difícil cons- 
truir um dicionário de palavras com função para qualquer língua 
(como fazer isso é explicado no manual). A exclusão de artigos, con- 
junções e palavras semelhantes da análise, melhora substancialmen- 



435 — 





Fator 1 



Valor próprio (Eigenvalue) 


% Inércia 


% Cumulativo 


Fator 1 .34 


72.70 


72.70 


Fator 2 .10 


20.80 


93.10 



Figura 1 7 .2 -As classes ALCESTE e as categorias avaliativas derivadas através da análise de conteúdo manual projetadas em 
um espaço de correspondência. 




1 7. Palavras-chave em contexto... 



te o resultado de ALCESTE. Outra possibilidade para lidar com o 
problema da falta de dicionários é fazer manualmente alguma pre- 
paração do conteúdo específico do texto. Análises preliminares nos 
permitem identificar palavras relevantes que podem ser reduzidas a 
sua forma radical com a ajuda das funções procurar-e-substituir, 
como descritas acima. 

ALCESTE é muito complexo, mas apesar disso é relativamente 
transparente, uma vez que o usuário tenha identificado os locais 
para os parâmetros mais importantes. Em geral, a forma-padrão de 
análise produz resultados palpáveis, em aproximadamente 80 por 
cento dos casos. 

Há uma quantidade de estudos que nos dá uma idéia de como 
usar ALCESTE. Reinert ( 1 993) analisou 212 pesadelos contados por 
adolescentes franceses. Comparando e contrastando o vocabulário 
distribuído por três classes, Reinert identificou três tópicos princi- 
pais nos pesadelos: separação, que se refere ao mundo social do so- 
nhador; ser preso e ameaçado por um agressor, que se refere ao 
mundo perceptível do sujeito; e cair e submergir, que se refere ao mun- 
do arcaico, proprioceptivo, do indivíduo. 

Noel-Jorand et al. (1995) aplicaram o método a narrações orais 
de 10 médicos que tinham realizado uma expedição científica ao 
Monte Sajama (6542mts de altitude). A análise de discurso foi reali- 
zada para auxiliar a compreensão da adaptação psicológica a ambi- 
entes em situação-limite. Os autores diferenciaram diversas formas 
de enfrentar o medo e a ansiedade. 

Lahlou (1996; 1998) aplicou ALCESTE separadamente, em en- 
trevistas, e em verbetes de uma enciclopédia referentes a comer e a 
atividades ligadas a comer. Ele foi capaz de mostrar que as classes que 
apareciam na análise das entrevistas - com exceção de uma - eram 
virtualmente idênticas às classes derivadas da enciclopédia. Do mes- 
mo modo, Beaudouin et al. (1993) analisaram respostas a uma per- 
gunta aberta: “Qual é um café da manhã ideal?” A análise forneceu 
seis classes, que podem ser sintetizadas em um nível mais abstrato 
como duas categorias: o nome dos produtos associados com café da 
manhã, e o contexto espacial, temporal e social do café da manhã. 

Visão geral 

Foi visto que respostas verbais abertas de questionários podem 
ser analisadas “manualmente” usando procedimentos estatísticos 



— 437 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



padronizados, bem como através de procedimentos totalmente au- 
tomatizados, que foram planejados especificamente para trabalhar 
com dados textuais. Além de ALCESTE, há um antigo programa, 
SPAD.t (Sistème Portable pour 1’Analyse des Données Textuelles: 
Lebart et ai, 1989; Lebart 8c Salem, 1988), que se coloca em algum 
lugar entre a análise manual e ALCESTE. Ele é também planejado 
especificamente para dados textuais, e nos permite aplicar uma am- 
pla variedade de procedimentos estatísticos, tais como diferentes 
versões da análise de correspondência, ou análise de agrupamento. 
Ele não emprega dicionários e pode, por isso, ser usado em pratica- 
mente todas as línguas que empregam caracteres romanos. O pro- 
grama PROSPERO, que está sendo desenvolvido na Universidade 
de Paris, vai até mesmo um passo além das capacidades de 
ALCESTE: ele é planejado para dar conta das relações semânticas e 
gramaticais na língua francesa. 

Análise automática de texto é uma ferramenta poderosa que nos 
permite manejar corpora de textos cujo enorme tamanho está além 
do alcance de até mesmo o mais corajoso analista qualitativo. Anali- 
sar questões abertas em questionários é apenas um pequeno exem- 
plo de tais tarefas, a maioria das quais irá implicar muitos dados da 
mídia e de entrevistas. 



Passos práticos para fazer uma análise ALCESTE 

1. Dados adequados: textos que são produzidos com (ou sem) peque- 
na estruturação pelo pesquisador serão os mais apropriados para 
uma análise ALCESTE (por exemplo, respostas a uma questão 
aberta, entrevistas de narrativa, artigos de mídia, etc.). 

2. O corpus de dados deve ser coerente e homogêneo, isto é, os tex- 
tos devem ser produzidos sob condições similares e enfocarem o 
mesmo tópico. Um mínimo de 10.000 palavras deve ser organi- 
zado como um arquivo ASCII com quebras de linha. 

3. Preparação dos dados: símbolos como o asterisco (*), ou o símbolo 
do dólar ($) possuem um sentido especial em ALCESTE; por 
isso, devem ser substituídos por outros caracteres. Apóstrofes e 
caracteres específicos não-universais, devem ser substituídos por 
transliterações (por exemplo, a letra alemã “ã”, deve ser substi- 
tuída por “ae”. 



— 438 — 



1 7. Palavras-chave em contexto... 



4. Rotular unidades de texto com “variáveis passivas”, os atributos 
do locutor ou as características do texto. 

5. Se ALCESTE não possui dicionários, um dicionário deve ser cons- 
truído para excluir as palavras com função (artigos, preposições). 
O manual explica como fazer isso. Alguma preparação dos dados 
pode ser feita manualmente (usando os recursos localizar-e-subs- 
tituir, já acessíveis em programas de processamento de texto). 

6. Execução do programa: uma primeira análise ALCESTE pode ser 
feita usando parâmetros default provisórios. Usuários mais expe- 
rientes podem mudar os parâmetros de acordo com as necessida- 
des da pesquisa. 

7. Para garantir resultados estáveis, ALCESTE computa duas classi- 
ficações, empregando diferentes extensões de unidades de texto. 
Uma solução aceitável classifica ao menos 70% das unidades de 
texto. Classes estáveis podem ser aumentadas através da mani- 
pulação dos parâmetros ALCESTE. 

8. Exame dos resultados: 

a) As classes de palavras resultantes devem ser interpretadas. O 
arquivo produzido por ALCESTE oferece auxílio para interpre- 
tação: listas de palavras com vocabulário característico de uma 
classe, combinações freqüentes de palavras, texto completo das 
afirmações originais em uma classe. 

b) “Variáveis passivas” e palavras com função associadas a uma 
classe fornecem informação adicional no contexto e na dinâmica 
dos discursos. 

9. Integrar os diferentes resultados em uma interpretação compre- 
ensiva. 



Nota 

Os autores se mostram reconhecidos e gratos pela permissão 
dada por Nicholas C. Allum de usar dados e resultados de Allum 
(1998) como um exemplo ilustrativo do procedimento de ALCESTE. 



— 439 — 





Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Referências bibliográficas 

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— 441 — 





Parte IV 

Questões de boa 
prática 



18 

Falácias na interpretação de dados 

HISTÓRICOS E SOCIAIS 

Robert W.D. Boyce 



Palavras-chave: falácia das posições adversárias; falácia de evi- 
dência relativizada; falácia da narrativa anacrônica; falácia da au- 
tovalidação; falácia da evidência desproporcional; falácia do fato 
oculto; falácia das causas necessárias e suficientes; falácia da causa 
mecanicista; falácia do reducionismo; falácia da falsa dicotomia; 
falácia da causa supérflua. 



A história, como uma disciplina acadêmica, sente-se desconfor- 
tável ao sentar com as ciências sociais. Tal realidade é claramente 
ilustrada pelo fato de que na Inglaterra a história econômica e social 
recebe verbas do Conselho de Pesquisa Econômica e Social, enquan- 
to que a história política, intelectual e internacional ou diplomática 
- que, por falta de um termo melhor, podería ser chamada de histó- 
ria tradicional - recebe verbas do Comitê de Pesquisa em Artes e 
Humanidades. Divisões funcionais desse tipo ocultam o fato de que 
a maioria do trabalho histórico transita por tais fronteiras até certo 
ponto artificiais. Como, por exemplo, se poderiam categorizar ou- 
tras como Religion and the Decline of Magic: Studies in Popular Beliefs in 
Sixteenth- and Seventeenth-Century England, de Keith Thomas, ou The 
Making of the English Working Class, de E.P. Thompson, ou Death in 
Hamburg: Society and Politics in the Cholera Years 1830-1910, de Ri- 
chard Evans, três excelentes trabalhos que contribuem para nossa 
compreensão da história intelectual e política, bem como da história 
social? Em lugar de duas ou três categorias, nos últimos 50 anos a 
disciplina acadêmica da história foi sendo continuamente dividida e 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



subdividida, e compreende atualmente ao menos doze subdivisões. 
Mas, correndo-se o risco de uma grosseira simplificação, pode-se di- 
zer que a divisão imposta pelos organismos de financiamento públi- 
co reflete uma diferença básica com respeito à metodologia que divi- 
de a profissão. Os que se dedicam à história econômica e social, ou o 
que foi chamado, de maneiras diversas, de história científica, quanti- 
tativa, cliométrica, ou simplesmente nova história, com raras exce- 
ções associam-se deliberadamente com as ciências sociais. Historia- 
dores do tipo tradicional, por outro lado, não se sentem bem, quan- 
do não se mostram hostis à idéia de que suas atividades sejam uma 
forma de ciência e, de modo geral, preferem se ligar, por sua vez, às 
humanidades. Apesar disso, eles iriam negar peremptoriamente 
que tal prática implique menor rigor no uso de provas, ou de testes 
de validade. Iriam dizer também que seu espectro de temas compre- 
ende a maioria das áreas discutidas pelos seus colegas “científicos” e 
ainda muito mais. Conforme Robert Fogel, vencedor do prêmio No- 
bel por seu trabalho pioneiro em cliométrica: 

Os historiadores científicos procuram se concentrar nas coletividades 
de pessoas e de acontecimentos recorrentes, enquanto que os historia- 
dores tradicionais tendem a se concentrar em indivíduos particula- 
res e em acontecimentos específicos (Fogel 8c Elton, 1983: 42). 

Mas o historiador científico, ao menos o da linha de Fogel, que 
constrói ou testa modelos empregando ferramentas matemáticas e 
estatísticas, raramente se aventurou para além da história econômi- 
ca, social ou demográfica, enquanto que os acontecimentos do histo- 
riador tradicional, incluem desenvolvimentos políticos, intelectuais 
e sociais, revoluções, guerras, migrações, partidos políticos, gover- 
nos, estados, costumes, crenças e invenções, nascimentos de crian- 
ças, amor, casamento e morte, e seus indivíduos incluem os podero- 
sos e os pobres, os famosos e os infames, os criadores e os destruido- 
res e, no mais das vezes, grupos, em vez de indivíduos singulares. O 
campo de trabalho do historiador tradicional é, por conseqüente, 
excepcionalmente amplo. Na verdade, a única restrição que seria 
aceita, é que esse campo deveria possuir alguma significância social. 
Sendo assim, poderíamos ser tentados a concluir que a história (da- 
qui em diante significando a história tradicional, a não ser que se 
diga expressamente que não) é, na verdade, uma ciência social ou 
até mesmo, devido ao fato de percorrer todas as ciências sociais, a 
disciplina qualitativa par excellence. 



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18. Falácias na interpretação de dados... 



Fazendo história 

Antes de decidir onde se coloca a história em relação às ciências 
sociais e o que ela tem a oferecer a estudantes engajados em pesqui- 
sa qualitativa, será útil descrever brevemente o que os historiadores 
fazem quando fazem história. 

O registro da história é tão velho quanto os próprios registros es- 
critos. Como uma disciplina acadêmica, contudo, ela apareceu ape- 
nas no final do século dezoito, ou começo do século dezenove, junto 
com a secularização do pensamento e o surgimento das ciências so- 
ciais modernas. Talvez se deveria dizer, em vez disso, das outras ciên- 
cias sociais, pois poucos estudiosos, naquele tempo, pensaram em 
distinguir a história das outras disciplinas. O século dezenove foi a 
grande era da história, quando os historiadores se engajaram na 
promoção do liberalismo ou, em alguns casos, do antiliberalismo, na 
construção de nações autoconscientes e em fornecer um racional 
para novos empreendimentos na construção de impérios transoceâ- 
nicos, e foram recompensados com o estabelecimento de cadeiras de 
história dentro do sistema universitário. Os grandes historiadores 
nacionalistas - Treitschke na Alemanha, Michelet na França, Macau- 
lay na Ingalterra, Koskinen, autor da primeira história importante 
da Finlândia, Palacky, o historiador da Boêmia - decidiram de- 
monstrar implicitamente, e em alguns casos explicitamente, que a 
história tinha fixado um lugar especial para suas próprias nações, 
cuja experiência específica, ou caráter, fundamentou as reivindica- 
ções de autogoverno, independência ou status destacado no mundo. 
Com respeito a isso, o projeto desses historiadores trouxe uma fei- 
ção distinta ao de Saint-Simon, Comte, Hegel, Marx, Engels e Spen- 
cer, todos eles, fossem idealistas ou materialistas, se engajaram em 
formas de historicismo, que pressupunha que o conjunto da existên- 
cia humana, passado, presente e futuro, era modelado por grandes 
forças impessoais que operavam com fundamento em leis que pode- 
riam ser identificadas. Cada vez mais, a história científica também 
propiciou trabalhos que, devido a seu comprometimento com fontes 
manuscritas, tornou-os massivos, pedantes e praticamente impene- 
tráveis ao leitor comum. 

Pelo fim do século dezenove, houve uma forte reação contra essa 
forma de positivismo e contra o pressuposto de que o curso da histó- 
ria é determinado por leis identificáveis. Influenciados pelo traba- 
lho de filósofos como Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, Benedet- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



to Croce e depois R.G. Collingwood, os historiadores passaram a in- 
sistir, sempre mais, na especificidade de sua atividade. O passado 
poderia ser compreendido não por dedução ou indução lógica, mas 
através de um processo de empatia com respeito ao assunto. Sendo 
que os historiadores lidam com processos dinâmicos, e não com si- 
tuações estáticas, eles têm de fazer algo mais além de observar acon- 
tecimentos pelo lado de fora. Eles têm de penetrar no espírito que 
informou ou guiou esses processos, “entrar para dentro” deles, um 
processo comumente identificado pelo termo alemão Verstehen, para 
distingui-lo de Wissen, que significa, nesse caso, (mera) descrição fac- 
tual das aparências externas. Mas os historiadores não chegaram a 
um consenso com respeito a algum desses enfoques nem no início 
do século vinte, nem nos dias de hoje. Embora seja provavelmente 
certo dizer que os historiadores, como grupo, se distinguem por sua 
relativa indiferença a questões metodológicas, uma intensa disputa 
continua entre epistemólogos e estudiosos do método histórico so- 
bre se a natureza de toda explicação histórica é essencialmente se- 
melhante à empregada nas ciências sociais (ou naturais). 

O coração da disputa tem a ver com o que passou a ser chamado 
de explicações, no campo da história, de leis gerais explanatórias. 1 
Cari Hempel, Sir Karl Popper, Ernest Nagel, Maurice Mandelbaum 
e outros, argumentaram que o historiador, consciente ou inconsci- 
entemente, se compromete com o uso de leis, ou princípios, ou re- 
gularidades estabelecidas, formuladas nas ciências naturais e sociais 
(Gardiner, 1974). Embora ele possa querer explicar um aconteci- 
mento específico ou o comportamento de um indivíduo singular, ou 
de um grupo de indivíduos, o acontecimento ou comportamento 
terá de ser um exemplo de um fenômeno reconhecível, ou de um 
conjunto de fenômenos, governados por princípios sociais e leis, se 
ele estiver engajado em uma pesquisa que tenha algum mérito, so- 
cialmente falando. Nas palavras de Fogel: 

Os historiadores na verdade não têm escolha em empregar, ou não 
empregar, modelos compor lamentais, pois todas as tentativas de 
explicar o comportamento histórico ... seja chamado de Ideen- 
geschichte, imaginação histórica, ou modelagem comportamen- 
tal, implica determinado tipo de modelo. A escolha concreta é se 
esses modelos são implícitos, vagos e internamente inconsistentes, 
como os seguidores da cliométrica afirmam ser frequentemente o 



1. Leis gerais explanatórias” foi a tradução preferida para o conceito de “Covering Laws” de 
Hempel. 



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1 8. Falácias na interpretação de dados... 



caso na pesquisa histórica tradicional, ou se os modelos são explíci- 
tos, com todos os pressupostos relevantes claramente colocados (Fo- 
gel & Elton, 1983: 25-6). 

Proponentes desse ponto de vista não minimizaram a dificulda- 
de de especificar as leis gerais explanatórias implícitas na explicação 
histórica. Popper, em The Open Society and ils Enemies, admite a difi- 
culdade: 



Se nós explicamos... a primeira divisão da Polônia em 1772 mos- 
trando que ela não poderia possivelmente resistir ao poder somado 
da Rússia, Prússia e Áustria, então nós estamos tacitamente empre- 
gando alguma lei universal trivial, como: “Se dentre dois exércitos 
que estão igualmente bem armados e comandados, um possui uma 
tremenda superioridade em homens, então o outro nunca vencerá." 
...Tal lei pode ser descrita como uma lei da sociologia do poder mili- 
tar; mas é sempre muito comum levantar um problema sério para os 
estudantes de sociologia, ou despertar sua atenção (1945: 264). 

Popper, contudo, não pôde ver outro fundamento para aceitar 
uma explicação histórica, que não fosse um exercício informal de 
dedução. Hempel, do mesmo modo, aceita que o historiador, ao 
procurar explicar acontecimentos complexos, raramente pode for- 
mular as leis em questão “com suficiente precisão e ao mesmo tempo 
de tal modo que elas estejam de acordo com toda a relevante evidên- 
cia empírica acessível”. Do mesmo modo que o cientista natural en- 
gajado no trabalho de campo, o historiador apenas aponta em dire- 
ção às leis relevantes ou, como Hempel diria, traça um “esboço de 
explicação”, que compreende uma indicação das leis e as condições 
iniciais exigidas, depois se dedica à elaboração das circunstâncias es- 
pecíficas do acontecimento particular. Mas, desde que conceitos tais 
como sistemas de crenças, ideologias políticas, revolução, genocídio, 
educação, emprego, especulação, prosperidade e outros semelhan- 
tes sejam empregados, o historiador se torna dependente de abstra- 
ções de regularidade potencialmente definível. De qualquer modo, 
nem o historiador, nem seu assunto, seja ele um indivíduo, uma co- 
munidade, ou toda uma classe de pessoas podem existir, ou pensar, 
ou agir fora da sociedade e, conseqüentemente, fora das regularida- 
des ou leis identificadas pelos cientistas sociais. O historiador que 
imagina que ele pode compreender seu comportamento simples- 
mente pela aplicação do senso comum está, para emprestar uma fra- 
se do economista J.M. Keynes, quase certo de ser o escravo involun- 
tário de alguma teoria social ultrapassada. 



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PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 



Poucos historiadores que trabalham com temas tradicionais, dis- 
cordariam totalmente da última afirmação, pois muitos deles iriam, 
de imediato, reconhecer sua dívida para com as ciências sociais. A 
maioria, contudo, se não todos, iria quase que com certeza rejeitar a 
premissa principal do argumento de que sua tarefa é essencialmente 
a de identificar leis gerais explanatórias - ou a de aplicá-las, através 
de qualificações adequadas, a acontecimentos específicos. Esse dis- 
tanciamento da teoria das leis gerais explanatórias é devido, em par- 
te, mas apenas em parte, a uma relutância dos historiadores a serem 
considerados como os soldados de infantaria, ou como os trabalha- 
dores do campo, coletando dados e compilando exemplos para que 
outros possam construir sobre eles suas generalizações. Tal relutân- 
cia é, em parte, devida, como colocam William Dray & Sir Isaiah 
Berlin (Gardiner, 1974: 87-8, 161-86), à convicção do historiador de 
que o conceito de ator histórico como agente, e por isso da incom- 
pletude da própria história, é incompatível com os pressupostos de- 
terministas das ciências sociais. Mas ela também provém da convic- 
ção do historiador de que sua explicação dos acontecimentos em- 
prega, de maneira específica, uma metodologia diferente. Como co- 
loca Dray, a referência à teoria das leis gerais explanatórias, como 
uma descrição de sua atividade profissional, é estranha a seu “uni- 
verso de discurso” (Gardiner, 1974: 87). Mesmo quando seu assunto 
é, primariamente, algo físico, como uma casa rural, um esporte, um 
exército ou uma epidemia; uma coisa abstrata, como um sistema de 
crenças, uma ideologia, um ritual de casamento ou a representação 
simbólica da guerra; ou um acontecimento específico como uma 
guerra, uma conferência de paz ou uma eleição; a questão que re- 
quer explicação é a lógica de um empreendimento humano específi- 
co, levado a cabo por um indivíduo ou um grupo de indivíduos. As 
descobertas das ciências sociais podem ser úteis para apontar linhas 
de investigação potencialmente fecundas, mas elas não podem ser 
um substituto da prova, que deriva apenas do registro histórico. O 
desafio do historiador não é aplicar, ou testar teorias sociais, mas de- 
terminar “que séries de intenções interligadas, decisões, e ações... 
em conexão com que séries de situações e acidentes” podem expli- 
car o comportamento de seu sujeito, ou o fenômeno em questão 
(Hexter, 1971 : 33). Ele faz isso descrevendo o mundo de seu sujeito, 
retratando-o por todos os lados e, por assim dizer, a partir de den- 
tro. Herbert Butterfleld, por muitos anos professor de História Mo- 
derna em Cambridge, coloca assim essa questão: 



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18. Falácias na interpretação de dados... 



Nossa maneira tradicional de fazer história. . . recusou satisfazer-se 
com qualquer atitude meramente causal, ou reservada, com respei- 
to a personalidades do passado. Ela não os tratou como meras coi- 
sas, ou apenas avaliou traços delas como os trataria um cientista; 
e ela não se contentou com meramente falar delas como um obser- 
vador externo faria. Ela insiste que a história não pode ser conta- 
da corretamente a não ser que nós vejamos as personalidades a 
partir de dentro, que sintamos com elas como um ator pode sentir 
o papel que ele desempenha - pensando novamente seus pensa- 
mentos e colocando-nos na posição não do observador, mas do 
agente da ação. Se alguém disser que isso é impossível - como de 
fato o é - isso não apenas permanece ainda como algo a que se 
deve aspirar, mas de qualquer modo o historiador deve colocar-se 
no lugar do personagem histórico, deve sentir suas dificuldades, 
deve pensar como se fosse essa pessoa. Sem essa arte, não é apenas 
impossível contar a histórica corretamente, mas é impossível inter- 
pretar os próprios documentos dos quais a reconstrução depende... 
Nós podemos até dizer que isso é parte da ciência da história, pois 
isso produz resultados comunicáveis - a percepção de um historia- 
dor pode ser ratificada por estudiosos em geral, que colocam em cir- 
culação, desse modo, a interpretação que é produzida (citado de 
Dray, 1957: 119-20). 

O último ponto é um ponto importante. Alguns epistemólogos 
desenvolveram uma teoria sobre o historiador, que se baseia apenas 
em uma teoria de verdade de “correspondência” ou de “coerência”, 
pela qual o historiador nada mais faz do que perguntar se o compor- 
tamento de seu sujeito, ou do acontecimento em questão, “tem sen- 
tido” para ele, ou se é consistente com sua própria experiência (Gar- 
diner, 1974: 155). Na verdade, a questão que o historiador coloca 
não é se isso faz sentido a ele, mas se isso faz sentido dentro da expe- 
riência de seu sujeito, ou dentro das outras circunstâncias do tempo, 
desde que elas possam ser conhecidas. Para responder a isso, re- 
quer-se que o historiador explique o sistema de idéias que governa o 
comportamento de seu sujeito, que pode ser - e quase certamente é 
- substancialmente diferente do seu próprio. Como o historiador 
vai, precisamente, lidar com isso, pode ser ilustrado com um exem- 
plo: as relações Oriente-Ocidente, imediatamente após a morte de 
Stalin, em março de 1953, quando os sucessores de Stalin mostra- 
ram seu desejo de abertura política e do fim da Guerra Fria. 

Nesse caso, o historiador que está interessado em conhecer por- 
que o Ocidente não aproveitou as iniciativas soviéticas, ou porque 
não sinalizou para o fim da Guerra Fria, dirigiria, sem dúvida, sua 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



atenção para os líderes dos principais poderes ocidentais que tive- 
ram a oportunidade de responder às indicações soviéticas. O historia- 
dor iria perceber que os líderes, mesmo os dos países mais podero- 
sos, não são totalmente livres. Suas ações são condicionadas tanto 
por fatores externos, tais como compromissos de alianças, leis cons- 
titucionais e estruturas políticas, como por fatores internos, tais 
como crenças involuntárias, convicções ou medos. Que liberdade de 
ação eles possuem, é uma questão de verificação empírica através do 
recurso a evidências orais ou escritas. O historiador faz isso através 
do exercício de “colocar-se dentro” do mundo de seus sujeitos, nesse 
caso o Presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, seu Se- 
cretário de Estado, John Foster Dulles, e outros chefes de estado oci- 
dentais. Direta ou indiretamente, ele estabelece, então, as avaliações 
mentais que eles poderiam ter ao responder às sinalizações soviéti- 
cas. O historiador emprega comumente empatia, projeção, percep- 
ção, intuição e assim por diante, no exercício da explicação de suas 
ações. Mas ele combina isso com um processo indutivo, empírico, de 
construção e modificação de sua explicação à luz da evidência acessí- 
vel. Para colocar-se dentro da mente de Foster Dulles, ele não deve 
simplesmente perguntar “Que teria feito eu, se fosse chamado a jul- 
gar as intenções da União Soviética nos meados da década de 1950?” 
Ele se dedicaria a uma leitura cuidadosa dos relatórios confidenciais 
das missões diplomáticas e das fontes de inteligência dos Estados 
Unidos que teriam passado pela mesa de Dulles por esse tempo, e 
tentaria saber se Dulles realmente os leu, e tenha ficado impressio- 
nado por eles. Ele lerá os telegramas de Dulles aos enviados estran- 
geiros, suas falas públicas, seus memorandos ao Presidente Eisenho- 
wer e, se possível, seus diários particulares, a fim de avaliar como ele 
imaginava suas ações. Sendo que essa é uma história contemporâ- 
nea, ele poderia examinar os registros da mídia; e mesmo hoje ele 
poderia fazer entrevistas com testemunhas. Iria considerar a possí- 
vel influência, sobre as avaliações de Dulles, que representou o am- 
biente intensamente religioso em que ele cresceu, sua educação, sua 
formação em direito, sua idade, sua saúde. Consideraria como Dul- 
les reagiu em situações anteriores, que tivessem alguma semelhança 
com a situação em questão. Jogaria sua rede mais longe, para exami- 
nar as narrativas de observadores estrangeiros da cena Oriente-Oci- 
dente. E colocaria isso ao lado de estudos semelhantes do comporta- 
mento de outros chefes de estado implicados. O historiador não dei- 
xará simplesmente sua imaginação correr solta mas, como Colling- 
wood e Butterfield sugerem, tentará limpar sua mente de seus pre- 



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1 8. Falácias na interpretação de dados... 



conceitos pessoais, a fim de captar o ponto de vista e os sentimentos 
de seu sujeito. Desse modo, ele constrói um quadro das influências 
sobre as estimativas de seu sujeito: o pessoal e o privado, o emocio- 
nal e o religioso, o político, o oficial, o internacional. Quanto mais 
ele souber sobre seu sujeito e sobre seu mundo pessoal, tanto mais con- 
sistente se tomará a evidência de sua descrição sobre as avaliações 
de seu sujeito. E embora isso não possajamais ser mais que uma ex- 
plicação tentativa, provisória, pois novos fatos podem sempre vir à 
luz, e até mesmo fatores totalmente novos que terão influência sobre 
as estimativas possam ser identificados, o historiador pode ter a es- 
perança de produzir uma narrativa que seja plausível e aberta ao 
exame e à refutação. 

O trabalho do historiador, pois, tem uma estreita semelhança 
com as atividades de um magistrado que investiga, ou de um deteti- 
ve legal, cuja tarefa é também explicar motivos, razões ou causas de 
uma ação humana específica, e que é, igualmente, levada a efeito 
através da construção de um quadro detalhado das circunstâncias 
que envolvem o indivíduo, ou o grupo, implicados no acontecimen- 
to. Embora esse método não se fundamente em leis, nem procure 
construir novas leis, ele depende de critérios rigorosos de evidência 
e métodos lógicos de interpretação. Ele é pragmático e indutivo; ele 
implica o teste de hipóteses e o registro explícito e cuidadoso das 
fontes. De tempos em tempos, ele é até mesmo muito bem escrito. E 
sendo que possui todas essas características, ele merece um lugar ao 
lado, se não dentro, das ciências sociais. 

Falácias do historiador 

Se o que foi dito acima apresenta um quadro identificável de 
como o historiador normalmente trabalha, ele também aponta para 
problemas peculiares que confrontam os historiadores. Pois embora 
eles comumente lidem com acontecimentos específicos, o exercício 
de explicar motivos humanos ou comportamento, provavelmente vai 
abarcar um espectro extremamente amplo de evidência e possíveis 
interpretações. Por conseguinte, mesmo quando seus tópicos de pes- 
quisa criam a impressão de um detalhismo estreito, os historiadores 
são, normalmente, generalistas. Esse fato os confronta com proble- 
mas no delineamento das perguntas, na construção lógica de argu- 
mentos e no tratamento de uma ampla gama de evidência qualitativa. 
Sendo que todos os cientistas sociais estão propensos aos mesmos er- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



ros, a continuidade deste capítulo será dedicada à discussão de alguns 
dos mais notórios. Vários foram tirados do livro Historiam 9 Fallacies: 
Towards a Logic ofHistorical Thought (1971), de David Hackett Fischer, 
que eu recomendo a todos que buscam uma discussão mais longa dos 
problemas metodológicos que confrontam os historiadores. Outros, 
juntamente com as várias ilustrações, se baseiam principalmente em 
minha experiência de historiador internacional. 

A falácia da falsa dicotomia 

Na primeira seção de seu livro sobre falácias no delineamento da 
pergunta, Fischer identifica 1 1 erros de procedimento sendo, talvez, 
o mais comum o que ele chama de falácia das falsas questões dicotô- 
micas, ou o que se poderia chamar mais diretamente de falácia da 
supressão da dimensão central de um fato. Exemplos aparecem fre- 
qüentemente na imprensa diária, em termos mais ou menos assim: 
“Swampy, herói ou bandido?”, ou “O Relatório Scott: acusação con- 
denatória ou apologia?” Os historiadores parecem propensos, tam- 
bém, a essa falácia, e nos Estados Unidos, dúzias de historiadores al- 
tamente respeitados suplementaram sua renda editando textos para 
alunos com títulos como: A Mente Medieval - Fé ou Razão? ; ou: Jean 
Monnet - Gênio ou Manipulador? 

O problema com todas esses proposições é, certamente, que elas 
sugerem uma dicotomia entre dois termos que não são, na verdade, 
nem mutuamente exclusivos, nem coletivamente exaustivos. O Re- 
latório Scott da Casa dos Comuns da Inglaterra, sobre a exportação 
de equipamento de defesa, foi provavelmente tanto uma acusação, 
como uma apologia, ambos... e... e mais. Do mesmo modo Jean 
Monnet, um gênio e sintetizador, manipulador e idealista, técnico e 
político, é muito interessante ser reduzido a um ou dois rótulos de 
qualquer tipo. Por conseguinte, a própria pergunta inevitavelmente 
distorce a resposta dada. Isto é provavelmente bastante óbvio, mas é 
surpreendente constatar quantas vezes estudiosos profissionais 
caem nesse erro. 

A falácia das posições adversárias 

A falácia das posições adversárias traz alguma semelhança com a 
falácia da falsa dicotomia, mas reflete uma decisão consciente no 
procedimento: o pressuposto de que se chegará mais rapidamente à 



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1 8. Falácias na interpretação de dados... 



verdade se cada historiador adotar uma posição oposta. Essa estraté- 
gia comum pode ser vista de modo particularmente claro na história 
da Guerra Fria. A maioria dos livros dos historiadores acadêmicos 
ocidentais, do final da década de 1940 e da década de 1950, traba- 
lhava com o pressuposto de que os poderes ocidentais eram inocen- 
tes com respeito a todas as intenções agressivas e culpados, no máxi- 
mo, por se equivocarem, enquanto que a União Soviética procurava 
constante e agressivamente estender sua dominação territorial. Eles 
foram sucedidos pelos assim chamados historiadores revisionistas, 
na sua maioria estudiosos dos EUA que, influenciados pela Guerra 
do Vietnã e pelos conflitos no hemisfério ocidental, afirmaram o 
ponto de vista oposto, de que os Estados Unidos eram um poder im- 
perialista e que a Guerra Fria deveria ser explicada quase que exclu- 
sivamente pelos esforços dos EUA em conseguir uma hegemonia 
global. Deve-se dizer, contudo, que é muito provável que nenhuma 
das posições possa ser correta. A falácia dos historiadores é pressupor 
que uma ou outra das posições é verdadeira, sem se deter e exami- 
nar se de fato é ou não. 

A falácia da causa supérflua 

Fischer discute uma porção de falácias de causalidade, mas a 
mais comum discutida por ele pode ser chamada de falácia da causa 
supérflua. Aqui o erro está em explicar um acontecimento referin- 
do-se ao motivo de um ou outro agente que se pode demonstrar ter 
existido, mas que tem pouca ou nenhuma influência concreta sobre 
o resultado. Um exemplo particularmente útil é a explicação ofere- 
cida por diversos historiadores dos Estados Unidos sobre a decisão 
do governo britânico de retornar ao padrão ouro em 1925. Estes his- 
toriadores foram capazes de demonstrar que os banqueiros centrais 
americanos queriam decididamente que a Inglaterra retornasse ao 
padrão ouro e encorajaram as autoridades britânicas a assim proce- 
der. Foram também capazes de demonstrar que o retorno inglês pro- 
vavelmente beneficiou os Estados Unidos e prejudicou concreta- 
mente a economia inglesa. Concluíram, por isso, que a Inglaterra 
retornou ao padrão ouro porque foi pressionada ou induzida a pro- 
ceder assim pelos EUA. O que eles não conseguiram fazer, contudo, 
foi examinar detalhadamente as estimativas das autoridades britâni- 
cas. Se eles tivessem feito isso, teriam descoberto que as autoridades 
britânicas tinham suas próprias razões para querer retornar ao pa- 
drão ouro, e que a pressão americana não estava absolutamente pre- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



sente em seus planos (ver, por exemplo, Costigliola, 1977). Por con- 
seguinte, ela foi uma causa totalmente supérflua. 

A falácia das causas necessárias e suficientes 

Os historiadores que se sentem mal com a idéia de serem meros 
contadores de histórias e estão ansiosos em instilar rigor em seu tra- 
balho, ffeqüentemente segmentam suas explicações dos aconteci- 
mentos em fatores discretos, ou as rotulam como causas necessárias 
e suficientes, ou algumas vezes como causas subjacentes e imediatas; 
e eles normalmente descrevem seu trabalho como analítico e não co- 
mo (meramente) narrativo (ver Hexter, 1971: 110-18; Elton, 1970: 
121-24). A prática é particularmente comum em textos escolares, 
onde o objetivo é parcialmente mostrar que grandes acontecimen- 
tos, tais como a Revolução Francesa, ou a I e a II Guerras Mundiais, 
tinham origens complexas, envolvendo a economia, cultura, tecno- 
logia, democracia, clima e assim por diante. O fim é louvável, mas os 
resultados nunca são convincentes, porque o enfoque é inerente- 
mente falho. Em primeiro lugar, iremos descobrir que muitos dos 
fatores estavam presentes antes que o acontecimento ocorresse e por 
isso em nada influíram para explicar por que o evento específico se 
deu naquela ocasião. Em segundo lugar, o pressuposto, implícito ou 
explícito, é que os fatores podem ser quantificados, de tal modo que 
expliquem o acontecimento. Mas o resultado é inevitavelmente um 
argumento circular: que o acontecimento A sucedeu porque os fato- 
res X, Y e Z cresceram em tamanho ou intensidade, até o ponto que 
A acontecesse. O acréscimo de um refinamento como, por exemplo, 
a introdução de causas subjacentes e imediatas, não resolve o pro- 
blema. Pois ele omite aquela coisa necessária para a explicação his- 
tórica, isto é, a descrição de como essas causas, ou fatores, afetaram o 
comportamento dos sujeitos, seus padrões de pensamento ou cren- 
ças, suas avaliações e suas ações durante o período do acontecimento 
em questão. Conseqüentemente, de um modo ou outro, o historia- 
dor deve contar a história (engajar-se na narrativa) a fim de demons- 
trar a coerência de sua análise. Querer fazer diferente, é cometer a 
falácia das causas necessárias e suficientes. 

A falácia da narrativa anacrônica 

O que Fischer chama de falácia do presentismo, é uma falácia ao 
menos tão comum como a anterior, porém mais conhecida. Podería- 



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18. Falácias na interpretação de dados... 



mos chamá-la também de falácia da narrativa anacrônica, pois o 
erro é ler o passado como se ele não fosse mais do que um palco para 
o presente. No contexto britânico, o exemplo mais notório é a inter- 
pretação Whig da história, que seria como se toda a história política 
da Inglaterra fosse pouco mais que a história dos Whigs, ou liberais, 
lutando para erradicar a tirania da autoridade arbitrária e da tradi- 
ção. A inferência - uma inferência falsa - é a de que todos os agentes 
partilham dos mesmos motivos e trabalham para os mesmos fins; e 
que todos os acontecimentos devem ser examinados apenas enquan- 
to contribuem para a construção dessa história. Nos últimos anos 
podemos discernir semelhante tendência entre os historiadores 
britânicos internacionais em suas explicações do período de entre 
guerras. Esse é um período extraordinariamente importante na 
história inglesa, que termina com o fracasso da conciliação, a irrup- 
ção da II Guerra Mundial, a quase extinção da democracia e da li- 
berdade na Europa, o Holocausto, o deslocamento ou o desmante- 
lamento dos grandes impérios coloniais e com o começo nos 50 
anos da Guerra Fria. Por essa razão, os historiadores em geral exa- 
minam o período de entre guerras em busca das origens desses 
acontecimentos calamitosos. Não há nada de errado nisso, mas o 
quadro então criado é um quadro em que os líderes políticos da In- 
glaterra, França e outros países estavam quase que completamente 
preocupados com a aproximação da guerra. Isso pode muito bem 
ter sido verdade para Hitler, mas não era provavelmente o caso da 
maioria dos líderes dos poderes democráticos. Uma vez começada 
a crise econômica mundial em 1929, e tendo a produção caído 
bruscamente, o desemprego subido e o próprio sistema capitalista 
parecendo estar à beira do colapso, sua principal preocupação era 
quase que certamente a economia doméstica e os ataques dos opo- 
sitores políticos domésticos; e isso provavelmente continuou assim 
até pelo menos 1938. Somente então a ameaça da guerra ocupou o 
centro de suas agendas, e mesmo então não durante todo o tempo. 
Por conseguinte, como nesse caso, os historiadores podem distor- 
cer o passado ao tomar um resultado específico na história e desves- 
ti-lo de tudo o que aconteceu, com exceção dos antecedentes diretos 
do evento em questão. A menos que se apresente uma explicação 
adequada para tal seletividade, ela distorce tanto o contexto como 
os motivos e o historiador é, então, culpado daquilo que nós pode- 
mos chamar de falácia da narrativa anacrônica. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A falácia reducionista 

Ainda dentro das falácias de causalidade, chegamos à falácia re- 
ducionista. Como observa Fischer, os historiadores são obrigados a 
dizer verdades seletivas e com isso seus modelos causais podem ser 
reducionistas em determinado sentido, mas alguns modelos causais 
são mais reducionistas que outros. Quando um modelo causal é re- 
ducionista a tal grau, ou de tal modo, que a distorção resultante é 
disfuncional para a resolução do problema causal em questão, pode- 
mos então dizer que o historiador é culpado da falácia reducionista. 
Uma forma comum dessa falácia é identificar um único elemento na 
explicação apresentada e reivindicar, sem nenhuma razão necessá- 
ria, que ele é a chave de toda a “história”. A.J.P. Taylor foi um mes- 
tre nessa forma de falácia reducionista: ele gostava de identificar o 
fato mais trivial, ou qualquer outro fator, como merecedor de espe- 
cial menção, provavelmente apenas para provocar seus leitores ou 
ouvintes. Um dos exemplos mais marcantes, nos anos recentes, foi 
fornecido por Jacques Parizeau, líder do partido separatista de Qué- 
bec, Primeiro-Ministro de Québec e, merece ser acrescentado, anti- 
go professor de economia da Universidade de Montreal. Depois de 
saber que o segundo referendum para a soberania para Québec tinha 
sido derrotado por apenas um ponto percentual, em outubro de 
1995, Parizeau responsabilizou publicamente pelo resultado as mi- 
norias étnicas de Québec e as grandes firmas. Em certo sentido ele 
estava certo: os grupos minoritários e os diretores de algumas gran- 
des firmas de Québec (tanto de fala inglesa, como de fala francesa) 
quase que com certeza votaram decididamente contra a soberania 
ou independência. Mas juntos eles chegavam apenas a escassos 10 
por cento da população da província. De igual importância, em ter- 
mos eleitorais, foi a rejeição da opção pela soberania feita pela re- 
gião de fala francesa Outouais, onde muitas pessoas dependiam, para 
seu trabalho, da capital federal do Canadá, Otawa- Hull. De manei- 
ra não menos importante, quase 100 por cento dos moradores de 
fala francesa dos arredores de Québec se dividiram quase que de 
maneira igual a favor e contra a soberania. Diferentemente das mi- 
norias étnicas e das grandes firmas, ter-se-ia esperado que os votan- 
tes da cidade de Québec iriam apoiar fortemente a soberania, pois 
sua cidade provavelmente se tornaria a futura capital de uma Qué- 
bec independente e conquistaria a maior porção do aumento dos 
empregos e do prestígio resultantes. O fato de Parizeau culpabilizar 



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18. Falácias na interpretação de dados... 



apenas um ou dois pequenos grupos de votantes, cujo comporta- 
mento era totalmente previsível, e ignorar outros grupos de ao me- 
nos igual importância e de maior valor para a compreensão do pon- 
to de vista da maioria foi, por conseguinte, uma interpretação gro- 
tesca, bem como detestável, da evidência. Ao proceder assim, pode- 
mos dizer que ele cometeu uma falácia reducionista. 

A falácia da causa mecanicista 

Outro erro comum de análise provém daquilo que Fischer cha- 
ma de falácia da causa mecanicista. Esta é uma prática errônea, que 
implica em separar os componentes de um complexo causal e anali- 
sá-los separadamente, e até mesmo avaliar separadamente sua in- 
fluência causal, como se eles fossem elementos discretos, determina- 
dos por forças discretas, e não como sendo dinamicamente relacio- 
nados entre si. Um exemplo notável é o que se constitui como o ar- 
gumento central de um livro, muito bem aceito, de Geoffrey Lueb- 
bert, Liberalism , Fascism or Social Democracy: Social Classes and the Poli - 
tical Origins of Regimes in Interwar Europe (1991). O estudo de Lueb- 
bert pretende explicar por que alguns países europeus, entre as 
duas grandes guerras, apoiaram formas democráticas de governo, 
enquanto que outros abandonaram a democracia em favor de regi- 
mes fascistas. Ele desmonta os componentes da sociedade em clas- 
ses, trata-as como elementos discretos e conclui, então, que os dife- 
rentes resultados devem ser explicados pelo fato de que, nos países 
que adotaram o fascismo, as classes dos trabalhadores rurais se alia- 
ram com a classe média urbana, enquanto que nos países que per- 
maneceram democracias, as classes dos trabalhadores rurais reparti- 
ram seu apoio entre diversos outros grupos e partidos políticos. 
Além de ser extremamente reducionista - o que é, afinal, uma classe 
média urbana? e que partidos políticos na Alemanha, Itália, França, 
etc. eram constituídos unicamente por uma classe ou por outra? - o 
problema com esse enfoque é que, em diferentes países, os vários 
elementos causais se comportaram de forma diversa com respeito a 
diferentes tradições políticas, diferentes líderes e diferentes circuns- 
tâncias contemporâneas. Identificar apenas uma diferença, como se 
essa fosse a causa, é pressupor uma identidade não apenas para as 
classes, partidos e agentes individuais, mas também de igual modo 
para as relações causais entre eles. Este é um exemplo da última falá- 
cia de causalidade, a falácia da causa mecanicista. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



A falácia do fato oculto 

Em sua seção sobre falácias de significância factual, Fischer lista 
de novo aproximadamente uma dúzia de erros comuns, um dos quais 
ele chama de falácia do fato oculto. Tal prática parece ser particular- 
mente comum entre historiadores internacionais. O erro consiste em 
acreditar que fatos de significância especial são aqueles que são parti- 
cularmente obscuros e que, se descobertos, deverão merecer um lu- 
gar especial na explicação dos acontecimentos em foco. Tal notorie- 
dade, na história internacional, é, em grande parte, o resultado do re- 
cente interesse na espionagem e na subversão, como fatores que ex- 
pliquem assuntos internacionais. A história dos serviços secretos é in- 
tensamente interessante, é claro, e em algumas instâncias se mostrou 
de crucial importância na explicação de grandes acontecimentos in- 
ternacionais. Alguns exemplos chocantes provêm da II Guerra Mun- 
dial. Um deles é o uso que os aliados fizeram da máquina ENIGMA 
para decifrar sinais alemães, o que contribuiu, sem dúvida, para se 
vencer a campanha no deserto da África do Norte e na Batalha do 
Atlântico. Outro é a aplicação de contra-inteligência, para enganar os 
alemães, sobre a importância do desembarque do Dia D em 1944 
para adiar, dessa forma, um contra-ataque das forças em prontidão 
na França. Mas há muitos outros casos, onde o fato de determinada 
evidência estar profundamente ocultada e difícil de ser trazida à luz 
do dia resultou em que se lhe atribuísse importância indevida. Uma 
coisa é mostrar que chefes de estado recebiam informação reveladora 
das fontes de serviço secreto. Outra é mostrar que tal informação afe- 
tou decisivamente suas ações. Muitas vezes, na verdade, a própria 
qualidade reveladora da informação tornou difícil aos chefes de esta- 
do colocá-la em suas previsões. Esse foi evidentemente o caso, em 
maio e junho de 1941, quando Stalin recebeu informações secretas de 
uma iminente invasão alemã, e em 1944 e inícios de 1945, quando os 
espiões soviéticos noticiaram o desenvolvimento de uma bomba atô- 
mica nos Estados Unidos. Embora essa fosse uma informação enorme- 
mente importante, parece que Stalin foi incapaz de entender sua im- 
portância, pois tal fato não se adequava a sua visão do quadro mundial. 
Mas a descoberta desses fatos levou alguns historiadores a dar-lhes 
grande proeminência em suas narrativas. 

A falácia da evidência relativizada 

Do mesmo modo que na antropologia, sociologia, relações inter- 
nacionais e algumas outras ciências sociais, a história também tem 



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1 8 . Falácias na interpretação de dados... 



seus partidários do pós-modernismo. Embora não se constituam em 
uma escola, ou em um movimento único, os pós-modernistas estão 
unidos na questão de ver os textos, tanto como a base de nosso en- 
tendimento do passado, como também como construções mais ou 
menos opacas, através das quais nenhum passado “real” pode ser 
trazido à luz e cujo sentido, por isso, depende essencialmente dos 
preconceitos do leitor individual. Esse fato levou alguns historiado- 
res a se devotarem ao estudo dos historiadores, os criadores reais da 
história, e outros, a colocar de lado importantes temas, em favor de 
incidentes, ou indivíduos, às margens dos grandes acontecimentos, 
e ainda outros a ler a evidência documentária “imaginativamente”, 
indo muito além do que historiadores convencionais provavelmente 
considerariam como inferência legítima. Apesar da extrema fragili- 
dade dos fundamentos teóricos, alguns dos resultados publicados 
são bons, e alguns são excelentes, embora deva ser dito que seus mé- 
ritos pouco têm a ver com o pós-modernismo (ver Evans, 1997: 
244-9). Mas há uma forma de relativismo muito comum nos traba- 
lhos tradicionais de história que merece nossa atenção, onde dife- 
rentes temas, conceitos ou instituições são fundidos, sem a devida 
consideração a seu caráter distintivo. Alguns exemplos podem ser 
encontrados no livro Britain, France and the Unity of Europe, 1945- 
1951, de J.W. Young (1984), um dentre vários trabalhos feitos por 
historiadores britânicos contemporâneos, que procuram reabilitar a 
história convencional das relações externas britânicas do pós-guer- 
ra, rejeitando a explicação de que a relação especial anglo-america- 
na foi a peça central da política britânica. Em lugar disso, eles afir- 
mam que, ao contrário, a política britânica foi moldada pela idéia de 
uma “terceira força” e orientada em direção à formação de um bloco 
liderado pela Inglaterra, que incluía a Europa continental e a África 
Colonial. Tentativas de revisionismo dessa sorte são muito comuns 
na historiografia moderna, e algumas se mostraram bem sucedidas, 
mas seu sucesso depende da qualidade da evidência que lhes dá sus- 
tentação. Infelizmente, no caso de Young a evidência é muito tênue. 
Tenta parecer mais forte, contudo, através da relativização de coisas 
bastante diferentes. Desse modo, a Inglaterra e a política externa in- 
glesa, em um exame mais detalhado, acabam sendo a política, e às 
vezes meramente as reflexões de Ernest Bevin, o Secretário de Polí- 
tica Externa. A objeção contra essa fusão é que, embora Bevin pu- 
desse - ou não pudesse - estar preparado para pensar uma “união”, 
ou “bloco”, ou uma união nos direitos alfandegários, com partes do 
Continente, ele nunca mencionou tais ambições, nunca se compro- 



461 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



meteu formalmente com elas, e nunca procurou a aprovação do 
Conselho de Ministros; e, como o próprio Young reconhece, tal 
aprovação estava virtualmente fora de questão, devido à firme opo- 
sição de outros ministros seniores. Do mesmo modo, o argumento 
que a Inglaterra, em vez da França, merecia o selo de “bom euro- 
peu” no período de pós-guerra, se fundamenta na junção de “co- 
operação” com “integração”, e em iniciativas limitadas com esque- 
mas abrangentes. A Inglaterra procurou cooperação com a França e 
outros países continentais e até mesmo, em um sentido vago, a uni- 
dade européia, mas era uma cooperação do tipo tradicional, envol- 
vendo tratados de amizade e defesa mútua, e a unidade baseada em 
pouco mais que uma boa vontade entre os estados soberanos. Ela 
claramente não era dirigida aos receios da França sobre o recrudes- 
cimento do poder alemão, que parecia inevitável, caso se permitisse 
a reabilitação da força industrial alemã, como a Inglaterra e os Esta- 
dos Unidos - os poderes “anglo-saxões” - claramente desejavam. 
Sucessivos governos franceses procuraram políticas que se dirigiam 
às bases do poder, tanto dividindo a Alemanha, como integran- 
do-a nas novas estruturas européias, com o fim de limitar sua so- 
berania nacional. Sugerir, como o faz Young, que a concessão re- 
lutante da Inglaterra de uma garantia militar formal à França, é 
evidência de um compromisso em favor de uma unidade européia 
e, em certo sentido, comparável aos objetivos do movimento euro- 
peu expresso no Congresso de Hague, em 1948, é cometer a falácia 
da evidência relativizada. 

A falácia da evidência desproporcional 

Possivelmente, o problema mais comum que confronta o historia- 
dor provém da natureza desigual da evidência acessível. Historiado- 
res políticos se defrontam, freqüentemente, com o problema, devi- 
do ao fato de que as instituições do estado quase que invariavelmen- 
te geram e preservam muito mais evidência que os indivíduos singu- 
lares, grupos ou organizações que entram em contato com elas. Sir 
Geoffrey Elton, o antigo Regius Professor de História Moderna em 
Cambridge, descreveu como esse problema surgiu, ao estudar os es- 
forços do governo de Henrique VIII para fazer cumprir a nova or- 
dem política e eclesiástica, produzida pela recente Reforma, na In- 
glaterra. Ele teve acesso a uma abundância de fontes - estatutos, 
proclamações, relatórios da corte e assim por diante. Tudo isso era 
contemporâneo aos acontecimentos em questão e era, em geral, de 



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1 8. Falácias na interpretação de dados... 



muito boa qualidade. Mas praticamente tudo fora produzido pelo 
estado e pelos seus oficiais, e não pelas vítimas das sanções. Ciente 
desse problema, procurou compensar a omissão da melhor maneira 
que pôde (Fogel & Elton, 1983: 86-7). 

Historiadores contemporâneos enfrentam o mesmo problema, e 
por razões praticamente idênticas. O livro Politicians and the Slump: 
The Labour Government of 1929-1931 (1970), de Robert Skidelsky, 
ilustra as distorções que podem ocorrer. Um dos primeiros historia- 
dores a ter acesso aos documentos oficiais, quando foram colocados 
à disposição, em 1968, Skidelsky, em seu trabalho muito bem escrito 
e amplamente lido, foi capaz de confirmar que o segundo governo 
trabalhador se preocupou com os gastos públicos crescentes e com o 
déficit orçamentário, mas ignorou as inovações fiscais radicais pro- 
postas por Sir Oswald Mosley (um ministro do governo) e certos eco- 
nomistas radicais, como J.M. Keynes. Isto é inteiramente documen- 
tado pelo relatório oficial, mas o quadro, assim apresentado, da po- 
lítica inglesa durante o colapso é, apesar disso, seriamente engana- 
dor. Na verdade, o problema fiscal era apenas uma questão secun- 
dária: a grande controvérsia, dentro dos partidos, entre partidos e 
nacionalmente, era se seria preciso substituir o livre mercado por al- 
guma forma de protecionismo imperial. Isso fica evidente através do 
exame da imprensa política e econômica, e outras fontes não oficiais, 
que confirmam a quase completa ignorância da potencial inovação 
fiscal keynesiana, e uma intensa preocupação com a retomada da 
questão tarifária. Mas como o governo se colocou firmemente contra 
qualquer abandono do livre mercado, recusando virtualmente até 
mesmo discuti-lo, apesar da pressão de todos os lados, os documen- 
tos oficiais dão a impressão enganadora de que foi o problema fiscal, 
e não a questão dos impostos, a grande questão do dia. Permitindo 
que seu trabalho fosse estruturado dessa maneira, Skidelsky sucum- 
biu à falácia da evidência desproporcional. 

A falácia da evidência seletiva 

A última falácia, que deveria ser de igual interesse por parte dos 
historiadores e dos cientistas sociais, pode ser chamada de falácia da 
evidência seletiva. Ela é capaz de produzir distorções semelhantes à 
falácia anterior, mas surge conscientemente da tentativa sincera do 
historiador de aplicar um modelo, ou provar uma teoria, que o leve 
a subverter a evidência de qualquer outro fato, ou dados, que pos- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



sam servir a seu propósito. Um exemplo de certa importância políti- 
ca é a crescente re-interpretação da política externa americana em 
1920. Até 1960, as versões históricas oficiais afirmavam que os Esta- 
dos Unidos foram, finalmente, forçados a sair de seu tradicional 
compromisso de isolamento, por causa da II Guerra Mundial; a 
Guerra Hispano-Americana de 1898 e a I Grande Guerra o força- 
ram a entrar, apenas temporariamente, na arena internacional. Em 
meio à crise provocada pela Guerra do Vietnã, a geração mais jovem 
de historiadores, inspirando-se no trabalho de Charles Beard, D.F. 
Fleming e outros, questionaram esse ponto de vista dominante com 
uma nova e ambiciosa interpretação da história dos Estados Unidos, 
de acordo com a qual o país foi impelido por sua dinâmica interna 
para uma expansão externa, desde os inícios das Treze Colônias. A 
década de 1920 apresentou, contudo, certo problema para essa nova 
interpretação, pois três administrações sucessivas pareciam ter lava- 
do as mãos diante dos problemas internacionais, recusando filiar-se 
à Liga das Nações e, como afirmava a geração mais antiga de historia- 
dores, retiraram-se ao isolacionismo. Determinados a mostrar que 
isso estava errado, os historiadores mais jovens procuraram nova 
evidência para o expansionismo, e a descobriram na expansão da 
atividade financeira e comercial dos Estados Unidos na América La- 
tina e na Europa. O estado estava presente, como que pairando na 
retaguarda, apoiando-se na influência dos negócios americanos 
para garantir seus objetivos no além-mar. As falhas desse argumento 
são, contudo, palpáveis. Em primeiro lugar, o conceito de isolacio- 
nismo, no contexto dos Estados Unidos, surgiu durante a Guerra da 
Independência e significou o distanciamento dos obstáculos diplo- 
máticos europeus, de tal modo que os Estados Unidos ficassem livres 
para seguir seu caminho, sem qualquer interferência do Velho Mun- 
do. Não significou isolar os Estados Unidos do comércio internacio- 
nal e, especialmente, de não comerciar com a América Latina, que o 
Presidente Monroe e outros procuraram isolar, de igual modo, da 
interferência (política) européia. Por conseguinte, a indicação de 
um crescimento no comércio com a Europa na década de 1920 não 
significa subverter o ponto de vista mais antigo, e não se constitui 
como evidência de um crescente envolvimento na América Latina, 
pelo contrário, a reforça. 

Alguns dos historiadores mais jovens, cientes desse problema, 
procuraram buscar mais provas a favor de seu argumento, demons- 
trando que o estado estava ativamente envolvido, por detrás dos bas- 



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1 8. Falácias na interpretação de dados... 



tidores, usando os negócios comercias e financeiros como um instru- 
mento, ou uma arma, a fim de influir nas questões internacionais. 
Sem deixar pedra sobre pedra, eles conseguiram descobrir numero- 
sas afirmações de líderes políticos dos Estados Unidos afirmando 
que o comércio e os intercâmbios eram vitais para eles. Consegui- 
ram também mostrar que, em diversas ocasiões, os diplomatas dos 
Estados Unidos foram preparados para prevenir os relutantes líde- 
res europeus que, se eles não resolvessem suas diferenças com res- 
peito a indenizações e defesa mútua e segurança, seria impossível fa- 
zer crescer o capital nos mercados dos Estados Unidos. Nenhuma 
dessas afirmações, contudo, é capaz de fundamentar o peso inter- 
pretativo que eles pretendem dar. Mostrar o Presidente Hoover fa- 
lando a uma associação de exportadores americanos, dizendo que 
ele considerava o comércio exterior como vital para os Estados Uni- 
dos, dificilmente prova alguma coisa - embora poderia provar, se 
ele lhes tivesse dito que o comércio exterior não era vital. Isso é ape- 
nas o que alguém iria esperar que ele, ou qualquer outro convidado 
político, iria dizer em uma ocasião assim. Se alguém olhar de manei- 
ra muito firme para a evidência, poderá associar os políticos a prati- 
camente qualquer posição. Alguns historiadores descrevem Hoover 
como um internacionalista independente (ver, por exemplo, Wil- 
son, 1975; e para outras histórias revisionistas, Leffler, 1979; Costi- 
gliola, 1984; Gardner, 1964); mas para sustentar esta afirmação, o 
historiador terá de examinar, entre outras coisas, as ações de Hoo- 
ver. Nesse caso, a decisão de Hoover de encorajar esperanças de 
maior proteção comercial, durante a eleição presidencial de 1929 e, 
posteriormente, de concordar com um aumento massivo na já pro- 
tecionista taxa tarifária dos Estados Unidos sugere, no final das con- 
tas, que suas afirmações de comprometimento com o comércio mun- 
dial não eram para ser levadas muito a sério. Quanto aos alertas dos 
diplomatas, eles eram suficientemente razoáveis, mas poderiam ter 
sido feitos por qualquer um, e chegavam apenas a uma colocação do 
óbvio, que os banqueiros dos Estados Unidos provavelmente não iri- 
am emprestar a países que não possuíam estabilidade financeira ou 
política, quando excelentes oportunidades de investimento existiam 
mais à mão, na própria casa. Essas dificilmente se constituíam em 
iniciativas inteligentes de uma administração internacionalista infle- 
xível, como afirmam os historiadores, pois existe abundante evidên- 
cia de que os diplomatas nada fazem para influenciar o fluxo dos in- 
vestimentos dos Estados Unidos, pois isso iria criar uma responsabi- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



lidade aos investidores que a administração estava decidida a evitar. 
Sugerir que as afirmações dos diplomatas chegassem a interferir, ou 
não, no cerne do capital americano, vai diretamente contra a políti- 
ca do Tesouro dos Estados Unidos, que estava protegido contra to- 
das as tentativas de mudança pelos supostos aliados do Tesouro, os 
banqueiros. Nenhuma dessas deficiências, contudo, sustou a inte- 
gração dessa nova visão nos livros-texto das escolas americanas, e 
presumivelmente tal visão se constitui hoje na versão geralmente 
aceita do passado da nação. 

Elton, em um debate com Fogel, defendeu que “modelos... di- 
tam os termos de referência, definem os parâmetros, dirigem a pes- 
quisa, e por isso se prestam muito a deturpar a pesquisa para evidên- 
cia empírica, tornando-a seletiva” (Fogel 8c Elton, 1983: 119). Ten- 
do em mente a própria visão política profundamente conservadora 
de Elton, e a maneira como isso parece ter afetado sua escolha do tó- 
pico de pesquisa e do resultado (Evans, 1977: 193-5), parece correto 
afirmar que grande parte do excelente trabalho histórico foi inspira- 
da por modelos, ao menos de tipo político ou ideológico. Mas nesses 
casos, os historiadores conservaram seu enfoque crítico, seu respeito 
pela evidência e sua disposição de adaptar suas teorias à luz dessa 
realidade. Como coloca Richard Evans, o julgamento histórico não 
necessita ser neutro (mesmo que isso fosse possível): 

Mas isso significa que o historiador tem de desenvolver um modo 
de conhecimento imparcial, uma capacidade de autocrítica e uma 
habilidade de compreender o ponto de vista de outra pessoa. Isso se 
aplica tanto à história politicamente comprometida, como à histó- 
ria que acredita ser, ela mesma, politicamente neutra. A história 
politicamente comprometida apenas se prejudica se distorce, mani- 
pula ou obscurece o fato histórico, em favor da causa que ela afir- 
ma representar (1997: 252). 



Conclusão 

Como esta breve discussão sugere, os historiadores tradicionais 
ficam satisfeitos por permanecer fora do campo da ciência social, e 
geralmente rejeitam a sugestão de que ao examinar o passado eles 
estejam empregando leis gerais explanatórias, ou testando leis so- 
ciais, ou princípios similares a leis. Contudo, seus temas, suas fontes 
e sua preocupação com uma análise rigorosa e aberta, coloca-nos 
próximos, se não concretamente dentro, das ciências sociais. Além 



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18. Falácias na interpretação de dados... 



disso, a metodologia do historiador enfrenta muitas armadilhas na 
colocação do problema e na solução do problema, que são muito co- 
nhecidas do cientista social. A questão de se determinado enfoque 
com respeito ao conhecimento socialmente útil é de mais valor que 
outro deve permanecer aberta, mas há muita evidência de que cada 
um desses enfoques tem algo a aprender um do outro. 



Passos na análise histórica 

1. Assegure-se que, no delineamento de suas questões, está dando 
espaço a todas as respostas possíveis. 

2. Avalie se a lógica de sua análise está aberta à acusação de arbitra- 
riedade ou circularidade e, se necessário, mude-a. 

3. Revise suas fontes e sua maneira de lidar com a evidência, tendo 
o cuidado de remover fontes de distorções; revise a possibilidade 
de ampliar o espectro e as fontes de evidência. 



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1921-32. Düsseldorf: Droste Verlag. 

LUEBBERT, G.M. (1991). Liberalism, Fascism, or Social Democracy: Social 
Classes and the Political Origins of Regimes in Interwar Europe. New York 
and Oxford: Oxford University Press. 

POPPER, C. (1945). The Open Society and its Enemies. Londres: Routled- 
ge and Kegan Paul. 

SKEDELSKY, R. (1970). Politicians and the Slump: The Labour Govern- 
ment of 1929-1931. Harmondsworth: Penguin Books. 

THOMAS, K. (1971). Religion and the Decline ofMagic: Studies in Popular 
Beliefs in Sixteenth and Seventeenth Century England. Londres: Weiden- 
feld and Nicholson. 

THOMPSON, E.P. (1963). The Making of the English Working Class. Lon- 
dres: V. Gollancz. 

WILSON, J.H. (1975). Herbert Hoover, Forgotten Progressive. Boston: Lit- 
tle Brown. 

YOUNG.J.W. (1984). Zíntom, Franceandthe Unity of Europe, 1945-1951. 
Leicester: Leicester University Press. 

Leituras adicionais 

APPLEBY, J., HUNT, L. & JACOB, M. (1994). Telling the Truth about 
History. New York: W.W. Norton 8c Co. 

DALZELL, C.F. (ed.) (1977). The Future of History. Essays inthe Vanderbilt 
University Centennial Symposium. Nashville, TN: Vanderbilt University 
Press. [See especially Lawrence Stone, History and the Social Sciences 
in the Twentieth Century]. 



— 468 — 




1 8. Falácias na interpretação de dados... 



MARWICK, A. (1989). The Nature of History (3 rd edn.). Basingstoke: 
Macmillan Education. 

STERN, F. (ed.) (1971). The Varieties of History: Voltaire to the Present (2 nd 
edn.). Cleveland, OH and New York, NY: World Publishing. [Conta- 
ins chapters by practitioners including Charles Beard, Thomas Coch- 
ran, Richard Hofstadter, Sir Lewis Namier and Jacques Barzin, as 
well as a usefiil introduction by Stern], 

THOMPSON, E.P. (1978). The Poverty ofTheoiy and other Essays. Lon- 
don: Merlin Press. 




19 

Para uma prestação de contas pública: além da 

AMOSTRA, DA FIDEDIGNIDADE E DA VALIDADE 

George Gaskell & Martin W. Bauer 



Palavras-chave: validação comunicativa; amostra representati- 
va; construção de confiabilidade; tamanho da amostra; construção 
do corpus ; surpresa; prestação de contas pública; descrição deta- 
lhada; indicação de qualidade; transparência; relevância; triangu- 
lação; fidedignidade; validade. 



Em um recente editorial de Discourse and Society, van Dijk (1997) 
faz a pergunta: será que vale tudo, não há critérios normativos co- 
muns de qualidade [para análise de discurso] como na maioria das 
outras disciplinas sérias das humanidades e das ciências sociais? É 
claro que há”. Ele continua dizendo que o que necessitamos são cri- 
térios de boa análise qualitativa. Foram preocupações como essas de 
van Dijk que, em parte, inspiraram este volume. 

Na discussão sobre pesquisa qualitativa, a questão da transpa- 
rência nos procedimentos e dos critérios de prática ficou em segun- 
do plano, prevalecendo uma interminável e polêmica luta para mos- 
trar diferenciações diante da metodologia “positivista”. Seja qual for 
o mérito dessa postura epistemológica, a retórica do “nós contra os 
outros leva à construção de um estranho espantalho. Ela uniformi- 
za grosseiramente a variedade de auto-entendimentos científicos no 
inimigo “positivismo”. Nós queremos evitar totalmente essa discus- 
são: ela simplesmente não contribui para fazer avançar os interesses 
da pesquisa qualitativa no atual estado de coisas. 

Na medida em que a pesquisa qualitativa chega a possuir uma 
massa crítica, ela também desenvolve um saber acumulado com res- 
peito a vários critérios implícitos em avaliar e guiar empreendimen- 

— 470 — 




1 9. Para uma prestação de contas pública... 



tos de pesquisa. O que necessitamos agora são critérios explícitos, 
afirmações públicas sobre o que constitui uma “boa prática”, e até 
mesmo idéias sobre administração de qualidade no processo de pes- 
quisa (cf. Altheide & Johnson, 1994; Flick, 1998; Seale, 1999). Tal 
prática trará benefícios tanto internos, como externos. Fundamen- 
talmente, isso introduz credibilidade externa pública para uma prá- 
tica que até o presente permaneceu um tanto obscura e esotérica. Na 
competição com outras formas mais estabelecidas de pesquisa social 
isso virá legitimar cada vez mais práticas de pesquisa qualitativa. 
Para o programa de pesquisa qualitativa há os benefícios internos de 
estabelecimento de um referencial para discussão construtiva e revi- 
são por pares. Há também os benefícios didáticos, presentes na pos- 
sibilidade de treinamento mais eficiente de novos pesquisadores. 
Muitos estudantes necessitam, obviamente, de um enfoque mais di- 
dático para treinamento em pesquisa. 

Distanciando-nos do “vale tudo”, por um lado, e da postura de 
revolta contra a “quantificação”, por outro, abre-se um caminho di- 
fícil entre duas igualmente indesejáveis posições. Por um lado esprei- 
ta o Scylla do elitismo dos peritos; do outro o Charybdis da burocra- 
tização. O perito conhece qualidade quando ele a vê, semelhante a 
uma avaliação estética. O problema aqui é que há mais exigência de 
boa pesquisa do que estetas disponíveis. Quando os estetas entram 
em desacordo, muitas vezes fica difícil saber sob que critérios eles fa- 
zem isso. O status do esteta está, entre outras coisas, baseado em um 
extenso aprendizado. Se a pesquisa qualitativa quiser ir além de um 
pequeno grupo de mestres, tal postura com relação a uma avaliação 
de qualidade não é viável. 

Para o burocrata, os critérios são objetificados e se tornam um 
fim em si mesmos. A pesquisa conseguiu seu tamanho de amostra 
planejado, a reflexividade foi documentada, ou a triangulação é cla- 
ra? A avaliação se baseia na correção dos procedimentos, sem ne- 
nhuma referência ao conteúdo e à relevância dos resultados. Para 
evitar esses extremos ao afastarmo-nos do “vale tudo”, gostaríamos 
de discutir duas idéias: a indicação dos métodos qualitativos e a qua- 
lidade de pesquisa para cada método. 

A indicação do método 

O primeiro problema que o pesquisador enfrenta é que método 
usar para estudar um problema particular, e como justificar o deli- 
neamento, a escolha dos dados e os procedimentos analíticos. Pode- 



— 471 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



mos pensar esse problema à semelhança da prática médica na “indi- 
cação de um tratamento. Um paracetamol é uma boa indicação 
para uma enxaqueca: ele geralmente cura a dor de cabeça. Paraceta- 
mol, contudo, não é indicado para uma infecção: para esse proble- 
ma, a melhor indicação é um antibiótico. É interessante notar que 
ambos os tratamentos possuem certas contra-indicações: na medici- 
na, como na pesquisa social, toda intervenção possui tanto vanta- 
gens como desvantagens. 

Uma lógica semelhante de indicação pode ser aplicada às esco- 
lhas entre procedimentos de pesquisa qualitativa. Até certo ponto, a 
escolha do método é uma função da orientação teórica do pesquisa- 
dor. Mas além disso, podemos supor que alguns métodos se adap- 
tam melhor ao lidar com um problema específico que outros. Por 
exemplo, se quisermos conhecer o conteúdo da produção midiática, 
uma análise de conteúdo será uma indicação melhor que um con- 
junto de entrevistas ou uma análise de conversação. Uma escolha 
mais difícil seria, uma vez tendo optado pela análise de conteúdo, 
qual dos métodos acessíveis seria o melhor indicado para o proble- 
ma em questão: análise retórica, análise de discurso ou análise clássi- 
ca de conteúdo? O de que se necessita é algo semelhante a um dia- 
grama de decisão diagnóstica para a escolha da maneira como con- 
seguir os diferentes dados e como escolher os enfoques de análise se- 
melhantes aos que estão disponíveis para a indicação de procedi- 
mentos estatísticos. 

Na pesquisa quantitativa, o nível de mensuração, por exemplo, o 
ordinal ou o de intervalo, juntamente com as características do deli- 
neamento, tais como dois ou mais grupos para comparação, forne- 
cem um diagnóstico seguro para a escolha dos procedimentos esta- 
tísticos apiopiiados. Isso nos traz eficientes critérios didáticos para 
uma decisão sobre se vamos usar o X quadrado, ou o tau de Kendall, 
ou a correlação de Pearson a fim de estudar a relação entre duas va- 
riáveis. Procedimentos similares de diagnóstico estão ausentes nos 
textos de pesquisa qualitativa. 

Neste contexto, um primeiro ponto de partida é considerar dois 
problemas de delineamento, comuns a toda pesquisa. Em primeiro 
lugar, o projeto de pesquisa se refere a um único ponto no tempo, é 
um estudo trans-secional? Ou o projeto se refere a diversos pontos 
no tempo, é um estudo longitudinal? Em segundo lugar, o projeto se 
concentra na experiência e ações do indivíduo ou em experiências e 
ações coletivas? Essa pode ser uma distinção fundamental com res- 
peito à indicação de diferentes métodos qualitativos para diferentes 



— 4 72 — 




1 9. Para uma prestação de contas pública... 



objetivos. Note-se aqui que a distinção entre trans-secional e longi- 
tudinal se refere ao delineamento da pesquisa e não necessariamen- 
te ao conteúdo da investigação. Muitos delineamentos trans-secio- 
nais - tomemos, por exemplo, as entrevistas - não se restringem ao 
presente, mas incluem reconstruções do passado. As técnicas de en- 
trevista narrativa e episódica têm como objetivo específico trazer o 
passado para o presente. A Tabela 19.1 categoriza diferentes méto- 
dos qualitativos com respeito a sua indicação dentro de duas dimen- 
sões de delineamento e fornece uma base para fazer escolhas preli- 
minares entre métodos com base em informações seguras. 

Tabela 1 9.1 - A indicação de métodos conforme delineamentos de pesquisa e focos 
de atividade 


Trans-secional 


Longitudinal 


Uma só vez 


Vários pontos no tempo 


Ação individual 




Texto 


Texto 


Entrevistas individuais em profundidade 


Análise de conteúdo de materiais 




bibliográficos, por exemplo, diários 


Entrevistas narrativas 


Entrevistas repetidas para um estudo de 




caso de um indivíduo 


Entrevistas episódicas 


/magem v/sua/ 


/magem v/sua/ 




Observações estruturais 


Bemetologia 


Ação coletiva 




Texto 


Texto 


Entrevistas narrativas 


Análise de conteúdo de materiais 




públicos, por exemplo, jornais 


Análise de conversação 


Anotações de campo na observação 




participante 


Análise de discurso 




Analise retórica 




Análise de argumentação 




Entrevistas com grupos focais 




Imagem 


Imagem 


Análise de filmes e vídeos 


Fotografias de diferentes períodos 


Som 


Som 


Cenário sonoro 


Mudanças em cenários sonoros 


Análise multimídia 


Cantométrica 




Análise da complexidade melódica 




Mudança em gostos musicais 



— 473 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



O que deve ser evitado é uma mentalidade de “prego e martelo”. 
Um martelo e poucos pregos são extremamente úteis na melhoria e 
manutenção de uma casa. O martelo, contudo, não é o mais indica- 
do para certas tarefas — reparar um cano de água, por exemplo. A 
pessoa habilidosa irá selecionar a ferramenta apropriada para a ta- 
refa específica. Mas se a pessoa apenas sabe trabalhar com martelo, 
então todos o problemas de arrumação de uma casa se tornam uma 
questão de martelo e prego. Isso implica que a indicação apropriada 
necessita a consciência e a competência em empregar diferentes ins- 
trumentos metodológicos. Transformar cada peça de pesquisa so- 
cial em um conjunto de entrevistas, ou em uma análise de discurso 
ou, dependendo do caso, em um experimento, é cair na armadilha 
da monologia metodológica. 

Tendo selecionado um método específico, o pesquisador necessi- 
ta, então, de algumas orientações sobre como trabalhar com ele e 
como trabalhar bem. Do mesmo modo, outros irão querer ver se o 
método foi empregado adequadamente. Esta é para o pesquisador e 
para o grupo de pares a questão da propriedade de indicação. Isso 
significa que nós precisamos uma descrição explícita da “boa práti- 
ca , seja qual método empregarmos. Com algum distanciamento do 
problema deveríamos ser capazes de julgar se o pesquisador é um 
profissional competente, está posando de amador ou é um aprendiz 
bem-intencionado. Percebe-se claramente uma relação entre qualida- 
de de pesquisa e o método a ser indicado. Os pesquisadores podem 
chegar coletivamente a um discernimento sobre a indicação compa- 
rativa entre diferentes métodos somente se fizerem esforço para de- 
senvolver indicação de qualidade para os métodos específicos. 

Boa prática de pesquisa: a emergência de critérios de qualidade 

Sendo que a pesquisa quantitativa possui um discurso bem de- 
senvolvido e uma tradição com respeito à avaliação da qualidade da 
pesquisa, particularmente no que diz respeito aos critérios de fide- 
dignidade, validade e representatividade, é importante começar 
com uma discussão sobre eles, que pode servir como um pano de 
fundo para as questões de garantia de qualidade na pesquisa quali- 
tativa. Nessa introdução à tradição quantitativa, indicaremos tam- 
bém questões paralelas para a pesquisa qualitativa. 



— 474 — 




1 9. Para uma prestação de contas pública... 



Fidedignidade e validade 

Campbell & Stanley (1966) apresentam um tratamento cuidado- 
so das questões de qualidade na pesquisa quantitativa para o campo 
da educação. Seu primeiro critério de qualidade é a validade inter- 
na. Validade interna pergunta se o delineamento da pesquisa e as 
maneiras de coletar dados, a organização do experimento, são cons- 
truídos de tal modo que permitam sejam tiradas conclusões com 
confiança. Embora eles escrevam em um contexto de delineamentos 
experimentais e quase experimentais, as idéias que estão por detrás 
da validade interna possuem uma equivalência fúncional na investi- 
gação qualitativa. Se um relatório sobre análise de conteúdo não dis- 
ser nada sobre o referencial de codificação, ou se uma interpretação 
de algumas entrevistas omitir detalhes sobre o tópico-guia, um leitor 
poderá se perguntar se esses são os produtos de uma pesquisa cuida- 
dosa ou o produto da imaginação do pesquisador. 

Talvez o tratamento mais substancial de qualidade seja o exis- 
tente na teoria da mensuração e em psicometrias específicas para a 
mensuração de características pessoais tais como inteligência e per- 
sonalidade (Cronbach, 1951; Cortina, 1993). A mensuração é a atri- 
buição de números a objetos ou acontecimentos, de acordo com re- 
gras. Os números podem ser 1 e 0, para indicar a presença ou ausên- 
cia de determinada propriedade, a contagem das vezes, ou repre- 
sentações numéricas de diferentes quantias do indicador em ques- 
tão. Há diversos níveis de mensuração - nominal, ordinal, de inter- 
valo e de razão - que irão atribuir números a diferentes quantias de 
um indicador, com diferentes graus de precisão. Seja qual for o ní- 
vel, toda mensuração está sujeita a erro. Em geral; 

número observado = número verdadeiro + erro sistemáti- 
co + erro randômico 

Na conversação informal e, por exemplo, no contexto de teste 
de mensuração da inteligência, isto significa que o número da men- 
suração da inteligência é constituído pelo nível real de inteligência 
da pessoa, mais todo viés sistemático inerente ao próprio teste e os 
fatores do acaso. Krippendorff (1980; 1994) estende esses princípios 
à análise de materiais textuais e de filmes. 

A fidedignidade e a validade são os critérios empregados para 
avaliar até que ponto um indicador empírico específico representa 
um construto teórico ou hipotético especificado. A fidedignidade 



— 475 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



tem a ver com a consistência da mensuração — o quanto o teste é in- 
ternamente consistente e apresenta os mesmos resultados em tenta- 
tivas repetidas. Há duas técnicas principais para o estabelecimento 
de fidedignidade: medidas de consistência entre itens e procedi- 
mentos de teste-reteste. A validade é o quanto o instrumento capta o 
que ele deveria mensurar. A validade traz a idéia de propósito: não é 
um teste que é válido, mas a interpretação dos dados que surge de 
um procedimento especificado. Há várias formas de validade. Em 
primeiro lugar, a validade de conteúdo, que se refere à adequação 
da amostra ao campo em questão. Em segundo lugar, a validade de 
critério, que é o quanto o teste distingue acuradamente entre grupos 
que sabemos serem diferentes com respeito à característica que está 
sendo analisada, ou o quanto prediz corretamente como as pessoas, 
que sabemos diferirem nessa característica, irão se comportar no fu- 
turo. E fmalmente, a validade de construto que se refere às relações 
entre resultados do teste e o referencial teórico que cerca o conceito. 
Devido ao fato de a validade se fundamentar sempre em algum cri- 
tério externo, muitas vezes uma mensuração prévia do mesmo con- 
ceito, há sempre um elemento de tautologia na avaliação do argu- 
mento de validade (Bartholomew, 1996). 

O dilema fidedignidade-validade 

É um axioma aceito em psicometria que a fidedignidade de um 
instrumento coloca os limites superiores da validade. Com uma ré- 
gua não fidedigna, seria difícil fazer alguma contribuição útil (váli- 
da) à cartografia. Mas ao mesmo tempo, alta fidedignidade não con- 
fere automaticamente validade. A relação específica, contudo, entre 
fidedignidade e validade faz menos sentido na medida em que pas- 
sarmos à interpretação de material textual ou da evidência da entre- 
vista. Na interpretação, a validade pode estar associada à baixa fide- 
dignidade: isto é o que se chama de dilema fidedignidade-validade. 

Tomemos a análise de conteúdo clássica de um corpus de texto. 
Dois codificadores podem ter uma concordância 100 por cento so- 
bre a ocorrência de palavras específicas, mostrando assim fidedigni- 
dade no uso de um referencial de codificação. Isto não significa, 
contudo, que eles tenham uma interpretação válida do texto. A co- 
notação de uma palavra pode mudar devido ao contexto. Igualmen- 
te, a ausência de concordância entre codificadores pode ser diagnos- 
ticada de duas maneiras. Por um lado, ela pode, na verdade, de- 
monstrar um mau treinamento dos codificadores, ou uma codifica- 



— 476 




1 9. Para uma prestação de contas pública... 



ção randômica do material. Mas essa discordância pode também 
mostrar que o texto não se presta a uma interpretação consensual. 
Pode ser um texto aberto que convida a um número de compreen- 
sões diferentes e legítimas. Com referência a isso, baixa fidedignida- 
de não é um mero número, ela é uma parte esclarecedora do proces- 
so de investigação. Do mesmo modo, a interpretação não pode ser 
deixada ao arbítrio do consenso, pois a interpretação da minoria 
pode ser a correta e o tempo poderá provar que ela estava certa. Ao 
menos no que se refere às interpretações, devemos deixar esta possi- 
bilidade em aberto (Andren, 1981). 

A fidedignidade se aplica a alguma forma de referencial de codi- 
ficação e é aqui que o conceito de validade é relevante. Com algumas 
exceções, um referencial de codificação é normalmente baseado em 
alguns conceitos teóricos. As noções teóricas se tornam mais concre- 
tas através da especificação de um conjunto de categorias de conteú- 
do analítico. Associações presumidas entre as categorias e relações 
com outros indicadores formam uma parte da rede teórica. Pode-se 
dizer que o quanto as categorias captam, ou constroem uma amostra 
adequada dos dados a serem analisados, seja bastante semelhante à 
validade de conteúdo. Além do mais, as relações observadas entre as 
categorias e a teoria se aproximam da idéia de validade de constru- 
to. Juntando estas duas vertentes da fidedignidade e da validade, 
podemos falar de níveis de “objetividade”, no sentido de dizerem 
mais sobre o objeto do que sobre o observador. 

Representatividade 

A maior parte da pesquisa social procura fazer afirmações gerais 
que vão além do conjunto específico das observações empíricas. Isso 
traz à cena a questão da generalização, o que Campbell 8c Stanley 
(1966) chamam de validade externa. O problema que o pesquisador 
enfrenta é com que fundamento ele pode generalizar com confiança 
para um contexto mais amplo a partir de achados específicos da pes- 
quisa. Este contexto pode ser outros atores, situações ou registros. 
Confiança, ou a falta dela, se fundamenta no quanto a amostra estu- 
dada é representativa do contexto mais amplo: em outras palavras, o 
quanto a amostra reproduz as qualidades distributivas desse contex- 
to, sejam pessoas, situações ou registros. 

Como podem ser estabelecidas as reivindicações de representa- 
tividade? Seria fundamentalmente uma questão do tamanho da 



— 477 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



amostra? É certo que com apenas alguns poucos casos observados 
será difícil a alguém defender representatividade. Algumas afirma- 
ções gerais sobre adolescentes na Inglaterra dos dias de hoje, basea- 
das em um pequeno estudo de caso em Manchester, não seriam mui- 
to convincentes. Um leitor poderá questionar, com razão, se aqueles 
adolescentes, no estudo de caso, são típicos ou representativos da ju- 
ventude da Inglaterra. Mas, do mesmo modo, amostras grandes não 
garantem representatividade: tudo depende da lógica do procedi- 
mento para selecionar os respondentes. Se os respondentes são au- 
to-selecionados, como os que telefonam durante um programa de 
televisão, problemas com respeito a vieses na amostra, que a tornaria 
atípica da população, devem ser levadas a sério. 

Um dos poucos exemplos de uma forma sistemática de generali- 
zação provém do levantamento com amostra randômica. Com uma 
amostra probabilística de um tamanho especificado é possível gene- 
ralizar os resultados para a população de onde se extraiu a amostra 
dentro de limites de confiança especificados. Para uma amostra pro- 
babilística de 1.000, e para toda observação de 50 por cento, os limi- 
tes de confiança normalmente aceitos são mais ou menos 3.2 por 
cento. Isso vale para qualquer população, seja ela do tamanho de 
Londres, ou para toda a Inglaterra. 

Essencialmente, o que a teoria da amostra oferece é um conjunto 
de procedimentos técnicos elaborados para seleção da amostra e 
uma base para avaliar e quantificar as generalizações de confiança 
da amostra para uma população maior (Kish, 1965). Embora um 
método de amostra sistemático semelhante seja aplicável a algumas 
formas de materiais textuais, por exemplo cobertura da mídia, ou 
evidência documentária (Lacy & Riffe, 1996), ele não é uma opção 
para a maioria da pesquisa qualitativa (ver Bauer 8c Aarts, cap. 2, 
neste volume). Permanece, contudo, o problema de estabelecer evi- 
dência que dê sustento às exigências de especificidade dos resulta- 
dos da pesquisa qualitativa. 

Em busca de critérios alternativos funcionalmente equivalentes 

Como delineamos acima, no coração da tradição quantitativa 
está um conjunto de critérios para avaliar a qualidade da pesquisa. 
Os pesquisadores incorporam os problemas de fidedignidade, vali- 
dade e representatividade no delineamento, na análise e nos relató- 
rios de pesquisa, do mesmo modo que outros podem empregar esses 



— 478 



1 9. Para uma prestação de contas pública... 



critérios para julgar se eles podem confiar nas conclusões consegui- 
das por outro pesquisador. Contra este pano de fundo de um discur- 
so bem estabelecido sobre o que constitui uma pesquisa de boa quali- 
dade, nós identificamos várias posições com respeito a critérios para 
pesquisa qualitativa (ver Kirk 8c Miller, 1987; Flick, 1998: 257). 

Em primeiro lugar, existe a posição de projetar diretamente a 
representatividade, fidedignidade e validade da tradição quantitativa 
para a pesquisa qualitativa. Estes critérios, argumenta-se, são e devem 
ser aplicáveis a qualquer forma de dados sociais. Que conclusões po- 
dem ser tiradas de observações não fidedignas e sem validade que não 
estejam baseadas em um racional de amostra sistemático? A tarefa do 
pesquisador qualitativo é simplesmente explicar como sua amostra é 
representativa de uma população em estudo, e como os procedimen- 
tos de pesquisa podem ser vistos como fidedignos e válidos. Esta solu- 
ção é rejeitada por muitos pesquisadores qualitativos com base no ar- 
gumento de que ela não consegue reconhecer o caráter, as intenções e 
os objetivos específicos da investigação qualitativa. Além disso, há de- 
finições não-numéricas de fidedignidade, validade e representativi- 
dade. Medidas de correlação e variância são simplesmente irrele- 
vantes para a maioria da investigação qualitativa, que tem a ver com 
sentidos e interpretações e não com números. 

Uma segunda posição é de franca rejeição. Amostragem, fide- 
dignidade e validade, argumenta-se, são “positivistas”, e expressões 
do olhar masculino agindo com um interesse do conhecimento com 
base no controle. Os pesquisadores qualitativos rejeitam o positivis- 
mo e a ambição de controlar e, conseqüentemente, a fidedignidade 
e a validade devem ser rejeitadas. Todos os assim chamados critérios 
de qualidade são formas de controle social da comunidade científica 
sobre seus membros, que devem, em princípio, ser rejeitados. Para 
alguns a revolta contra critérios rígidos é a própria essência da pes- 
quisa qualitativa. Tal atitude de libertação que implique uma total 
rejeição pode estar entre as primeiras etapas de uma emergente tra- 
dição de pesquisa, mas certamente levará, a longo prazo, a uma au- 
toderrota. Os problemas vão se tornando evidentes à medida que os 
sinais de institucionalização começam a florescer. Todo editor de re- 
vista irá necessitar de critérios para selecionar os trabalhos, na medi- 
da em que o suprimento de material começar a exceder o espaço 
economicamente disponível. Isso nos faz retornar ao dilema editori- 
al de van Dijk, mencionado acima. Ele deplora o fato de que seu pe- 
dido de aperfeiçoar a descrição do procedimento analítico tenha 



— 479 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



sido rejeitado pelos autores, fundamentados no fato de que isso iria 
se constituir em uma imposição de um “discurso de poder”, cuja 
análise tinha sido um interesse central da própria revista. O editor, 
pareceu, sentia-se vencido por seu próprio intento (van Dijk, 1997). 

Uma terceira posição apóia a idéia de critérios de qualidade, 
mas defende o desenvolvimento de critérios relevantes especifica- 
mente à tradição qualitativa. Amostragem, fidedignidade e validade 
serviram bem à pesquisa quantitativa, mas não se prestam para a 
avaliação da investigação qualitativa. Diversos critérios sui generis 
desse tipo foram propostos para identificar aspectos de boa prática 
na pesquisa qualitativa, por exemplo, persuasividade, acessibilida- 
de, autenticidade, fidelidade, plausibilidade e probidade (Hatch & 
Wisniewski, 1995; Seale, 1999). Consideramos tal esforço como um 
caminho construtivo para se avançar, mas gostaríamos de oferecer 
um enfoque sistemático ao problema. 

Nossa postura, fundamentada na defesa do ethos científico na 
pesquisa social, é a procura de critérios com equivalência funcional à 
tradição quantitativa. A pesquisa qualitativa deve desenvolver seus 
próprios critérios e regras, se quiser demonstrar sua autonomia 
como uma tradição de pesquisa. Isto não implica nem uma rígida 
competição com os critérios existentes, nem a rejeição completa de 
qualquer critério, mas um “caminho intermediário”. Esse caminho 
intermediário deve ser descoberto perguntando quais são as funções 
dos critérios e regras tradicionais do método. A partir destas funções 
abstratas, será possível construir e re-especificar critérios que são di- 
ferentes, em essência, da pesquisa quantitativa mas que são equiva- 
lentes funcionais para os métodos qualitativos. 

Uma vez assumido o compromisso de estabelecer um conjunto 
de critérios específicos para a pesquisa qualitativa, abrem-se dois di- 
ferentes caminhos para avançar. Eles são uma reflexão filosófica, a 
partir de cima, na forma de dedução de princípios, ou uma observa- 
ção empírica da “boa prática”, a partir de baixo, como é evidencia- 
do, por exemplo, em procedimentos e critérios para publicações, 
em orientações editoriais e em pesquisa qualitativa (ver Medicai So- 
ciology Group, 1987, em Seale, 1999). No que segue, tentaremos 
uma conjugação entre desenvolvimento de critérios a partir de 
cima, e observações a partir de baixo. O resultado é um conjunto de 
critérios que nós consideramos serem funcionalmente equivalentes 
aos critérios tradicionais de pesquisa quantitativa no que diz respei- 



— 480 — 



1 9. Para uma prestação de contas pública... 



to a conquistar a confiança dos pares, demonstrando a relevância da 
pesquisa e, desse modo, assegurando uma credibilidade pública ao 
processo de investigação. 

Consideramos a formulação de proposições e a prestação de 
contas pública como sendo questões centrais no processo de investi- 
gação. As proposições baseadas na pesquisa empírica de qualquer 
tipo devem ir além da mera conjetura ou intuição. É necessária uma 
evidência que dê garantia às proposições que são feitas em uma are- 
na pública em nome da ciência social. Mas que significa prestação de 
contas pública no contexto da pesquisa social? 

A prestação de contas pública não é uma questão de prestar con- 
tas dos custos e benefícios, nem é a idéia de que a boa pesquisa ne- 
cessita de apoio público para suas conclusões. O que queremos subli- 
nhar é a idéia de que a ciência opera em um espaço público. Não é 
um empreendimento privado. Suas proposições e garantias, a fim 
de se qualificarem como conhecimento público, são “objetificadas” e 
tornadas públicas, e por isso estão abertos ao escrutínio público. Esta 
não é uma característica específica da pesquisa qualitativa, mas se 
aplica a qualquer forma de ciência, que nós consideramos como uma 
produção de conhecimento metodologicamente fundamentada. 

Na Tabela 19.2, são sugeridos os critérios de equivalência funcio- 
nal para as tradições quantitativas e qualitativas. Dentro da prestação 
de contas pública nós vemos duas amplas categorias que fornecem a 
base para garantia de qualidade. Estas são a confiabilidade e a rele- 
vância, que captam a essência da avaliação de qualidade e se aplicam 
igualmente às tradições de pesquisa qualitativa e quantitativa. 

Tabela 19.2 - Equivalentes funcionais para avaliação de qualidade com referência à 
prestação de contas pública 



Tradição quantitativa 



Fidedignidade das mensurações Confiabilidade (c) 
(c) 

Validade interna (c) 

Tamanho da amostra (c) 

Amostragem representativa (r) Relevância (r) 
Validade externa (r) 

Validade das mensurações (r) 



Tradição qualitativa 

Triangulação e reflexividade 

(c) 

Transparência e clareza nos 
procedimentos (c) 

Construção do co rpus (c, r) 

Descrição detalhada (c, r) 

Surpresa pessoal (r) 

Validação comunicativa (r) 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Os indicadores de confiabilidade permitem ao leitor e ao recep- 
tor da pesquisa estarem “confiantes” de que os resultados da investi- 
gação representam a “realidade” e são mais que o produto da imagi- 
nação fértil do pesquisador. Em outras palavras, os indicadores de 
confiabilidade mostram que os resultados não são construídos ou 
falsificados com objetivos externos à pesquisa. Eles são o resultado 
de um encontro empírico com o mundo, especificado pelo tempo e 
espaço, que foi organizado pelos pesquisadores de maneira transpa- 
rente. Para a pesquisa qualitativa, a confiabilidade é indicada pela a) 
triangulação e compreensão reflexiva através de inconsistências; b) 
pela clareza nos procedimentos; c) pela construção do corpus e d) 
pela descrição detalhada. 

Os indicadores de relevância, por outro lado, se referem ao 
quanto a pesquisa é viável, no sentido de que ela se liga à teoria in- 
ternamente ou, externamente, se apresenta como uma surpresa em 
confronto a algum senso comum. A relevância incorpora tanto a uti- 
lidade, quanto a importância. Nem tudo o que é útil é também im- 
portante, e coisas importantes podem não ser imediatamente ou po- 
dem não ser nunca úteis. O inesperado e a surpresa devem ser um 
critério tanto para a pesquisa quantitativa, como para a qualitativa. 
As duas tradições, contudo, podem estruturar a surpresa de diferen- 
tes maneiras: o teste de hipótese, por um lado, e novas compreen- 
sões e representações, por outro. A relevância é indicada por a) 
construção do corpus', b) descrição detalhada; c) valor surpresa e d) 
em alguns casos, pela validação comunicativa. 

Nos parágrafos que se seguem, descreveremos seis critérios de 
qualidade que, de diferentes maneiras, contribuem para a confiabi- 
lidade e a relevância da pesquisa qualitativa. 

Triangulação e reflexividade (indicador de confiabilidade) 

O entendimento das outras pessoas e também de materiais tex- 
tuais se inspira na experiência da diversidade. O pesquisador social 
está sempre em uma posição de tentar descobrir sentidos em outras 
pessoas, a partir de outros ambientes sociais mas, inevitavelmente, 
tendo como base o autoconhecimento. O entendimento de nós mes- 
mos e de outros pode ser uma busca interminável, mas ele tem seu 
ponto de partida na consciência de perspectivas diferentes, que le- 
vam à reflexividade, à descentração de nossa própria posição. A re- 
flexividade implica que, antes e depois do acontecimento, o pesqui- 



— 482 — 




1 9. Para uma prestação de contas pública... 



sador não é mais a mesma pessoa. Apelar para a triangulação de 
perspectivas e métodos teóricos (Flick, 1992) é um modo de institu- 
cionalização do processo de reflexão em um projeto de pesquisa. 
Em outras palavras, o delineamento força o pesquisador a conside- 
rar as inconsistências como uma parte de um processo contínuo do 
projeto de pesquisa. A aproximação do problema a partir de duas 
perspectivas ou com dois métodos irá, inevitavelmente, levar a in- 
consistências e contradições. Estas diferenças irão exigir a atenção 
do pesquisador a fim de poder ponderar sua origem e sua interpre- 
tação. E evidente que algumas inconsistências podem ser fruto de li- 
mitações metodológicas, mas elas podem também demonstrar que 
os fenômenos sociais se apresentam diferentes na medida em que 
eles são enfocados de diferentes ângulos. Do mesmo modo que uma 
montanha, que tem uma configuração e uma aparência diferentes se 
vista do norte, do sul, ou de cima, mas que continua ainda sendo 
sempre a mesma montanha. Na pesquisa qualitativa procuramos 
descobrir evidência de um trabalho com inconsistências, lutando 
com as inconsistências, tanto dentro de nós mesmos, quanto entre 
colegas, gerando assim novas compreensões, através da fusão de ho- 
rizontes, onde cada horizonte depende de uma perspectiva (Gada- 
mer, 1989: 306). A idéia de se levar em conta a reflexividade não 
deve, contudo, ser entendida equivocadamente, como se fosse um 
convite para se relatar a autobiografia do pesquisador, em vez de ser 
um relatório de pesquisa. O foco da pesquisa permanece o mundo e 
não o pesquisador. 

Transparência e clareza nos procedimentos (indicador de confiabilidade) 

Nem seria necessário dizer que a boa documentação, a transpa- 
rência e clareza nos procedimentos na busca e na análise dos dados 
são uma parte essencial da qualidade do trabalho de pesquisa. A fun- 
ção central da documentação deve ser capacitar outros pesquisado- 
res para reconstruir o que foi feito, a fim de testá-lo, ou imitá-lo, 
para registro histórico (Lazarsfeld, 1951). A função de memória da 
documentação é importante. Por mais óbvia que ela seja, existem fa- 
tores estruturais que se contrapõem a essa exigência. Os trabalhos 
de pesquisa são, na maioria das vezes, muito curtos para incluir des- 
crições metodológicas detalhadas. A recente tendência de algumas 
revistas de abrir um espaço em uma rede eletrônica, com apêndices 
de publicações correntes, é apenas uma solução parcial, pois não 
está claro por quanto tempo esses espaços em rede permanecerão 



— 483 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



acessíveis depois da data de publicação. Até mesmo editores de li- 
vros estão cada vez mais relutantes em produzir publicações que in- 
cluam uma ampla seção metodológica. A primeira exigência desses 
editores é, muitas vezes, a de encurtar o registro dos métodos e pro- 
cedimentos. E difícil imaginar como um livro como Authoritanan 
Personality poderia ter provocado tanta atenção analítica secundária 
sem que ele tivesse documentado originalmente o processo de pes- 
quisa com amplos detalhes. O que necessitamos são exigências míni- 
mas para documentação em pesquisa qualitativa, como as que exis- 
tem, por exemplo, para a pesquisa de levantamento, na revista Pu- 
blic Opinion Quarterly. A clareza na descrição dos procedimentos é 
necessária em todas as formas de investigação científica. 

A transparência desempenha para a pesquisa qualitativa funções 
semelhantes à validade interna e externa na pesquisa quantitativa. 
Ela pode ser avaliada a partir de uma descrição detalhada, por exem- 
plo, da seleção e das características dos respondentes e/ou dos mate- 
riais; do tópico-guia das entrevistas e/ou do referencial de codifica- 
ção para uma análise de conteúdo; do método de coleta de dados, 
do tipo de entrevista, ou do tipo de análise de conteúdo. 

A análise com auxílio de computador que emprega CAQDAS 
pode ser considerada como uma iniciativa bem-vinda que traz trans- 
parência e disciplina para a análise qualitativa, embora a partir de 
pressupostos tecnológicos. Na verdade, a codificação flexível e a in- 
dexação, a análise lógica de conexões de textos na forma de buscas 
booleanas, e o acompanhamento de idéias para interpretação atra- 
vés de “memorandos”, são qualidades inovadoras desses novos de- 
senvolvimentos (ver Kelle, cap. 16, neste volume). Essas não são, 
contudo, ferramentas mágicas; pelo contrário, elas trazem consigo 
ciladas disfuncionais, que são conhecidas como “patologias de codi- 
ficação” (Fielding 8c Lee, 1998; Seidel, 1991). Muitos estudantes e 
pesquisadores incorrem no perigo de perder de vista seu tópico de 
pesquisa, emaranhados em uma gama infindável de ordenamentos 
e reordenamentos de centenas, e até mesmo milhares de códigos 
que, supostamente, deveriam oferecer garantias a uma teoria funda- 
mentada. Além do mais, há uma tendência de usar essas ferramentas 
como indicadores retóricos, onde a mera menção de tais pacotes de 
software supostamente daria garantia de qualidade, como se fosse 
um tipo de proeza tecnológica. 



— 484 — 




19. Para uma prestação de contas pública... 



A construção do corpus (indicador de confiabilidade e relevância ) 

Na maioria da pesquisa social a opção por uma amostragem sis- 
temática simplesmente não é possível, e por isso reivindicações de 
representatividade ou validez externa são uma questão de argumen- 
tação. A construção do corpus é funcionalmente equivalente à amos- 
tra representativa e ao tamanho da amostra, mas com o objetivo di- 
verso de maximizar a variedade de representações desconhecidas. 
Os pesquisadores querem mapear as representações de uma popu- 
lação e não medir sua distribuição relativa na população (ver Bauer 
& Aarts, cap. 2, nesse volume). O tamanho da amostra não interessa 
na construção do corpus, contanto que haja certa evidência de satura- 
ção. A construção do corpus é um processo iterativo, onde camadas 
adicionais de pessoas, ou textos, são adicionados à análise, até que se 
chegue a uma saturação e dados posteriores não trazem novas obser- 
vações. Uma boa distribuição de poucas entrevistas ou textos ao lon- 
go de um amplo espectro de estratos tem prioridade sobre o núme- 
ro absoluto de entrevistas ou textos no corpus. Alguns poucos exem- 
plares de cada estrato ou função social têm prioridade sobre uma se- 
leção aleatória entre estratos ou dentro dos estratos. Ambos os crité- 
rios, construção do corpus e amostragem representativa, trazem con- 
fiabilidade, bem como dão garantia à relevância dos resultados. 

Descrição detalhada (indicador de confiabilidade e relevância ) 

De modo geral, a pesquisa qualitativa deve fazer uso extenso de 
registros literais das fontes. O registro do texto literal feito com acu- 
rada fidelidade é semelhante ao uso de notas de rodapé para o histo- 
riador: é a referência da origem de uma afirmação. O leitor pode 
aceitar a interpretação oferecida ou chegar a um ponto de vista dife- 
rente. O que deve ser evitado é a prática ou a aparência de seleção 
cuidadosa e edição de pequenos extratos significativos com a finali- 
dade de legitimar os preconceitos do escritor. É claro que se deve 
atingir um equilíbrio nesse caso. Uma compilação de 20 transcrições 
de entrevistas, ou de 200 recortes de jornais, não constituem uma 
obra de ciência social. No outro extremo, um pequeno parágrafo rei- 
vindicando condensar tais materiais em alguns poucos pontos, sem 
apresentar as fontes, deixaria o leitor imaginando como teriam sur- 
gido estas heróicas generalizações e interpretações. Neste sentido, a 
fonte é um indicador de confiabilidade. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Um registro cuidadosamente indexado é também um indicador 
de relevância, no sentido de que ele fornece ao leitor intuições a res- 
peito do colorido local, da linguagem e do mundo da vida dos atores 
sociais. Um relatório bem escrito, do mesmo modo que um bom tea- 
tro, traz o leitor para o meio dos atores sociais. Eles começam a to- 
mar sentido para ele, e à medida que tal sentido vai surgindo, assim 
também as afirmações e generalizações vão conseguindo credibili- 
dade (Geertz, 1983). 

A surpresa como uma contribuição à teoria e/ou ao senso comum 
( indicador de relevância ) 

Um indicador de relevância de qualquer pesquisa deve ser seu 
valor de surpresa. A evidência pode trazer surpresa de duas manei- 
ras: tanto com respeito a algum ponto de vista do senso comum, 
como com respeito a alguma expectativa teórica. Na pesquisa quan- 
titativa, isso é formalizado nos procedimentos de teste de hipótese e 
de falsificação. 

A pesquisa qualitativa exige uma demonstração similar de valor 
de surpresa, a fim de evitar a falácia da evidência seletiva na inter- 
pretação (ver Boyce, cap. 18, neste volume). Por conseguinte, para 
pesquisa textual, poder-se-ia esperar encontrar evidência de intui- 
ções reveladoras, de abertura diante de evidência contrária ou uma 
mudança de mentalidade que pudesse ter ocorrido durante o pro- 
cesso de pesquisa (Gadamer, 1989: 353). A fim de evitar o uso de en- 
trevistas qualitativas, ou análise de texto, como geradores de cita- 
ções que possam ser empregadas para apoiar idéias preconcebidas, 
toda pesquisa necessita documentar a evidência com uma discussão 
sobre as expectativas confirmadas ou não. Apenas uma evidência 
que leva à confirmação irá provavelmente levantar dúvidas e suspei- 
ta sobre a qualidade da pesquisa e da análise. 

A validação comunicativa (indicador de relevância) 

A validação da análise de entrevista ou dos materiais de texto 
através da confrontação com as fontes e obtenção de sua concordân- 
cia e consentimento, foi proposta como um critério de qualidade, o 
assim chamado critério de validação comunicativa dos participantes, 
ou dos entrevistados. Este é um procedimento básico de validação 
do projeto de “teorias subjetivas” de Groeben et al. (1988; ver Stein- 



486 — 



1 9. Para uma prestação de contas pública... 



ke, 1998). Há semelhanças entre este critério e o levantamento com 
retroalimentação, que na literatura organizacional da década de 
1960 foi considerado uma alavanca na mudança organizacional pla- 
nejada na pesquisa-ação (Miles et al . , 1969). Em muitas situações de 
validação consensual, e discussões sobre discordâncias que surgem na 
interpretação, podem ser de valor para o pesquisador e para os parti- 
cipantes. Isto mostra respeito para a perspectiva do ator social e é 
consistente com o interesse do conhecimento do “empoderamento”. 

Contudo, isso não poder ser uma condição sine qua non da rele- 
vância da pesquisa. Tomemos um exemplo extremo: confrontando 
o abuso do poder por parte de um ator social, o pesquisador qualita- 
tivo iria seguramente procurar evitar uma validação comunicativa. E 
provável que o ator social interessado recusará aceitar o ponto de 
vista do pesquisador. Se o pesquisador sucumbir à “censura” do ator 
social, isso iria ameaçar a independência da pesquisa. O ator não 
pode se constituir em autoridade última na descrição e interpreta- 
ção de suas próprias ações. O observador tem diferentes vantagens 
sobre o observado e isso pode ser de valor intrínseco, independente- 
mente do consentimento do ator observado. Por exemplo, o conhe- 
cimento implícito ou os pontos cegos da auto-observação muitas ve- 
zes escapam à consciência imediata do ator social. O observador está 
em uma situação privilegiada quanto a isso. Em primeiro lugar, o 
observador vê o que o ator não pode ver sobre si mesmo, como o co- 
nhecimento implícito ou rotinas comportamentais e práticas cultu- 
rais aceitas sem discussão. Em segundo lugar, o observador vê todo o 
quadro, o que inclui o ator e seu meio social e físico. Isto se estende 
para além do olhar habitual do ator. Em terceiro lugar, o observa- 
dor, como cientista social, emprega abstrações com respeito às práti- 
cas ou representações que o ator observado pode não aceitar ou en- 
tender. Um caso clássico é o conceito de “falsa consciência”, ou o de 
“inconsciente”. Mas isso não é afirmar que o observador produz des- 
crições objetivas e válidas, significa antes que ele pode ter a vanta- 
gem de estar em uma perspectiva diferente com respeito ao ator. 
Tomar o ator como autoridade última na estrutura e função de suas 
representações é perder a oportunidade de aprender e criticar a 
partir de diferentes perspectivas. 

Síntese e conclusão 

Argumentamos que uma prestação de contas pública, na pesqui- 
sa qualitativa, se fundamenta em reivindicações a partir de dois am- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



pios critérios, o da confiabilidade e o da relevância. Para fundamen- 
tar tais reivindicações, o delineamento, os métodos e procedimen- 
tos, e a análise e relatório, devem dar conta, e devem ser percebidos 
como dando conta, de certos critérios de qualidade. Trouxemos à 
discussão, neste capítulo, os indicadores clássicos de fidedignidade, 
validade e amostra representativa da tradição quantitativa. Através 
da idéia de se abstrair uma equivalência funcional dos critérios da 
pesquisa quantitativa, oferecemos seis critérios de boa prática para 
guiar uma pesquisa qualitativa. Estes são a triangulação e reflexivi- 
dade de perspectivas, a documentação transparente de procedi- 
mentos, os detalhes da construção do corpus, a descrição detalhada 
dos resultados, a evidência de surpresa pessoal, e em algumas cir- 
cunstâncias, a validação comunicativa. Sob alguns aspectos, esta é 
uma lista, ou fórmula, com dois objetivos relacionados. Ela tem a in- 
tenção de funcionar como um conjunto de orientações, embora não 
especificadas, para dar forma ao delineamento, à análise e ao relató- 
rio da investigação qualitativa. Paralelamente, ela é uma síntese da- 
quilo que o revisor crítico deve perguntar com respeito a um traba- 
lho de pesquisa, e um lembrete ao pesquisador sobre que passos 
apropriados devem ser tomados para oferecer a garantia necessária. 

Para concluir, este volume tentou apresentar aos leitores tanto os 
conceitos subjacentes aos vários procedimentos da pesquisa qualita- 
tiva, como as maneiras práticas de usá-los. Mas, juntamente com 
nossos colaboradores, esperamos ter conseguido um pouco mais 
que isso. A tradição da pesquisa qualitativa necessita desenvolver um 
corpo de experiência e de perícia comprovada a fim de prestar in- 
formações sobre escolhas entre diferentes métodos (a indicação do 
método), e sobre como avaliar a adequação de um estudo quando 
emprega determinado método (critério de qualidade). É necessário 
um compromisso coletivo na elaboração de tais critérios de qualida- 
de tanto para o ensino como para a pesquisa. Ignorar ou rejeitar o 
desafio irá, a longo prazo, condenar a pesquisa qualitativa à estagna- 
ção nas ciências sociais. Se a pesquisa qualitativa quiser competir 
dentro do cenário mais amplo deverá justificar seus métodos e pro- 
posições e responder às exigências de credibilidade pública, confia- 
bilidade e relevância. Não consideramos nossas propostas como a 
solução definitiva de algo que é essencialmente um problema de 
prática. Pelo contrário, esperamos que essas sugestões venham esti- 
mular um debate crítico e construtivo com respeito a uma preocupa- 
ção emergente de muitos com referência à pesquisa qualitativa. 



— 488 — 




1 9. Para uma prestação de contas pública... 



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— 490 — 




Glossário 



Acomodação: processo de mudança de um discurso feito para uma 
comunidade, de tal modo que ele seja relevante e compreensível 
por outra comunidade. Uma acomodação científica é feita quando 
um trabalho técnico para um periódico de pesquisa é transforma- 
do para um público leigo. 

Agregação: refere-se à aglomeração de dados, acontecimentos ou 
processos. A aglomeração de dados é chamada de agregação artifi- 
cial. A aglomeração de acontecimentos e processos é chamada de 
agregação natural. Por exemplo, a agregação artificial é realizada 
calculando-se estatísticas, isto é, médias; a agregação natural é rea- 
lizada pela ação conjunta de grandes quantidades de eventos ou 
processos. A agregação natural, bem como artificial, é vista como o 
mecanismo básico para a emergência de leis. 

ALCESTE: programa de computador para pesquisa qualitativa que 
distingue diferentes tipos de discurso em textos naturais, através 
da realização de uma análise estatística automática. 

Meio social: grupo de pessoas que pensam e sentem de maneira dis- 
tinta. Na pesquisa qualitativa, as pessoas podem ser tipificadas 
pela combinação de estrato e função social por um lado, e pelas re- 
presentações características de um tema, por outro. 

Ambiguidade: característica básica da linguagem que causa as mai- 
ores dificuldades para se fazer análise de conteúdo computadori- 
zada; também chamada de polissemia. As palavras significam coi- 
sas diferentes em diferentes contextos. Não há uma relação entre 
palavras e conceitos. Por exemplo, homônimos são palavras com o 
mesmo som ou a mesma grafia, mas com diferentes significados 
referenciais. A mesma palavra pode ser apreendida em sentidos 
diferentes, ou pode ter diferentes conotações. Através do uso me- 
tafórico, nós movemos as palavras através de contextos, a fim de 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



estruturar uma compreensão específica do mundo. Na ironia ou 
sarcasmo, nós dizemos uma coisa, mas significamos o oposto. A 
ambigüidade na linguagem privilegia o codificador humano na 
análise de conteúdo, que pode lidar com essas dificuldades inter- 
pretativas com eficiência. 

Amostragem: selecionar aleatoriamente unidades de análise de um 
referencial de amostragem, de tal modo que as estimativas da po- 
pulação sejam obtidas com margens de erro conhecidas. 

Amostragem aleatória: na análise de conteúdo e na pesquisa de le- 
vantamento, este é o princípio-chave para selecionar unidades de 
análise. O referencial de amostragem lista todas as unidades de 
uma população e dá a elas uma probabilidade conhecida de pode- 
rem ser selecionadas. Isto permite ao pesquisador determinar um 
parâmetro, dentro do limite de confiança conhecido. A amostra- 
gem aleatória substitui pelo erro conhecido. Em contraste, a cons- 
trução do corpus é um princípio de seleção em situações onde o re- 
ferencial de amostragem é impensável. A seleção por acaso, ou por 
conveniência, é procedimento não sistemático, em contraste tanto 
com a amostragem, quanto com a construção do corpus. 

Amostra representativa: seleção aleatória de unidades de análise da 
população, de tal maneira que as estimativas das características de- 
rivadas da amostra são iguais às da população, dentro de limites de 
confiabilidade conhecidos. A amostra representativa não produz e 
a margem de erro é conhecida. 

Análise com auxílio de computador: o uso de software de computa- 
dor para o tratamento de dados qualitativos, a fim de automatizar 
tarefas mecânicas que estão envolvidas na análise interpretativa 
desses dados. 

Análise de dados: qualquer abordagem qualitativa ou quantitativa, 
P 313 reduzir ã complexidade no material dos dados, e para chegar a 
uma interpretação coerente do que é pertinente e do que não é. 

Análise interpretativa: processo hermenêutico (e não-algorítmico), 
através do qual um interpretador humano tenta descobrir sentido 
(1 Verstehen ) nos dados qualitativos. 

Analogia: na retórica, uma comparação feita para mostrar seme- 
lhança. A analogia pode também ser uma forma de raciocínio, em 



— 492 — 




Glossário 



que a semelhança entre duas ou mais coisas é inferida de uma se- 
melhança conhecida entre elas em outros aspectos. 

Ancoragem: na semiologia, quando uma imagem é acompanhada 
pelo texto que serve para tirar a ambigüidade da imagem, diz-se 
que o texto ancora a imagem. Deve ser distinguida de revezamento. 

Apoio: uma premissa que fundamenta a garantia no argumento. 

Argumento: a unidade básica da análise retórica. Normalmente, um 
argumento prático é um ponto, ou uma série de razões usadas 
para apoiar uma proposição específica. Os elementos básicos são 
proposição, dados, garantia, apoio e refutação. 

Argumentação: a) atividade verbal ou escrita que consiste em uma 
série de afirmações com o objetivo de justificar, ou refutar deter- 
minada opinião e persuadir um público; b) nas entrevistas narrati- 
vas, aqueles elementos não-narrativos do texto, que justificam 
ações com a apresentação de razões, explicam regras, ou mencio- 
nam relações entre coisas, ou conceitos. 

Associação de palavras: variante da técnica de perguntas abertas, 
que solicita aos respondentes que escrevam quaisquer palavras que 
eles associem com o objeto em foco. 

Avaliação: nas conversações, um turno que envolve apreciação, se- 
guido normalmente por um segundo turno em que se concorda, 
ou se melhora, a avaliação. 

Bemetologia (em inglês, bemetology): acrônimo para representar “me- 
teorologia comportamental” (fohavioral meteorology). Refere-se à 
exigência metodológica de juntar continuamente dados compor- 
tamentais e experimentais, como é feito na meteorologia. 

Cânones retóricos (partes da retórica): as cinco divisões do estudo 
da retórica nos tempos clássicos: invenção, disposição, estilo, me- 
mória e apresentação. 

Cantométrica: procedimento complexo, que inclui 37 dimensões 
analíticas, desenvolvido por Alan Lomax, para comparar e tipifi- 
car cantos populares em todas as culturas humanas. 

CAQDAS: significa Computer-Assisted Qualitative Data Analysis 
Software - software para análise de dados qualitativos com auxílio 
de computador -, uma tradição recente de desenvolvimentos de 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



software para auxiliar a análise de dados qualitativos. Estes pacotes 
de software auxiliam indexação e conexão de unidades de análise; 
permitem que se façam memorandos em tais conexões, na forma 
de comentários ad hoc; permitem operações complexas de procu- 
ra-e-recuperação com índices; fornecem ferramentas gráficas para 
representar as ligações entre os textos; e oferecem interfaces nu- 
méricas para análise estatística de freqüências de códigos em um 
corpus de materiais. 

Cenário sonoro: termo criado pelo compositor canadense Murray 
Schafer, para analisar e melhorar a ecologia acústica humana. Um 
projeto de âmbito mundial reconstrói, registra e descreve sons da 
vida cotidiana, passada e presente. O projeto é descritivo, bem 
como prescritivo, com a missão de diminuir o ruído para melhorar 
a qualidade da vida moderna. Técnicas como perfil de sonoridade, 
caminhadas de escuta e diário de som, foram desenvolvidas para 
avaliar a qualidade de alta, ou baixa fidelidade, ou a proporção na- 
tural/artificial de um cenário sonoro específico. 

Códigos de tempo: em vídeos, os segundos, minutos e horas que re- 
gistram o tempo concreto de registro durante uma filmagem. 

Codificação: a aplicação de um procedimento conceptualmente 
construído a um conjunto de materiais. A anexação de palavras 
indexadas (códigos) aos segmentos da unidade de um registro 
(por exemplo, a transcrição de uma entrevista, ou um protocolo 
de campo). 

Coerência: critério de boa prática na análise de conteúdo. Um refe- 
rencial de codificação é coerente se os códigos derivam de um 
princípio conceptual superior trazendo, desse modo, complexida- 
de de uma maneira organizada. Pode ser considerado como um 
critério estético: referenciais de codificação coerentes contribuem 
para uma análise de conteúdo bela. 

Complexidade melódica: série de tentativas para construir indica- 
dores culturais a partir da estrutura melódica de peças musicais, 
tais como hinos nacionais ou músicas campeãs de audiência em pa- 
radas de sucesso. Esses indicadores normalmente levam em consi- 
deração a freqüência e a magnitude das mudanças de tom, a dire- 
ção da progressão tonal e a combinação entre música e texto. 



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Glossário 



Concordância: procedimento computadorizado que lista todos os 
co-textos de uma palavra-chave, dentro de um determinado corpus 
de texto. Normalmente, o tamanho do co-texto pode ser especifi- 
cado pelo número de palavras antes e depois de uma palavra-cha- 
ve, pela frase ou pelo parágrafo, dentro do qual uma palavra-chave 
ocorre. Considerada anteriormente como uma atividade manual 
de intenso trabalho, é agora disponível em questão de segundos, 
servindo para avaliar os sentidos das palavras ou para conferir a 
qualidade de uma consulta de um texto on-line. 

Conotação: na semiologia, tipo de significação de segunda ordem. 
Um sentido adicional de um signo, além de sua denotação: o signo 
denotativo se torna o significante do significado conotativo. A fim 
de apreender a conotação de um signo, é necessário um conheci- 
mento cultural ou convencional suplementar. 

Construção: termo que realça o papel que a linguagem desempe- 
nha na criação de nossos mundos sociais, em oposição a meramen- 
te refleti-los ou descrevê-los. 

Co-ocorrência: análise computadorizada que avalia o número de 
vezes em que duas palavras aparecem juntas, dentro de uma unida- 
de específica de texto. A distribuição de frequência destas co-ocor- 
rências é modelada estatisticamente, a fim de se conseguir uma re- 
presentação gráfica da estrutura associativa, em um determinado 
corpus de texto. 

Construção de confiabilidade: característica da pesquisa de boa 
qualidade. A fidedignidade e o tamanho da amostra na pesquisa 
quantitativa e a triangulação, a transparência, a construção do cor- 
pus e a descrição detalhada, na pesquisa qualitativa, são ‘medidas 
para construir confiabilidade junto ao público, em relação aos re- 
sultados da pesquisa. 

Construção de corpus : processo de coletar materiais, na pesquisa 
qualitativa. Não está baseado em princípios aleatórios, mas é, con- 
tudo, sistemático, levando em consideração a relevância, homoge- 
neidade, sincronicidade e saturação. Implica a ampliação de fun- 
ções e de estratos (variáveis externas), até que o espectro das repre- 
sentações focais (variáveis internas) de um tema esteja saturado. 

Construção de teoria: na análise de texto computadorizada, a com- 
paração de segmentos de texto codificados através da análise in- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



terpretativa, a fim de desenvolver uma rede complexa de concei- 
tos, categorias ou tipos gerais. 

Corpus: conjunto limitado de materiais determinado de antemão 
pelo analista, com certa arbitrariedade, e sobre o qual o trabalho é 
feito. Podem-se distinguir corpora com objetivos gerais, tais como 
corpora lingüísticos, de corpora tópicos, tais como um conjunto de 
entrevistas qualitativas em um projeto de pesquisa social. 

Dados: fatos ou evidência que estão à disposição do proponente de 
um argumento. 

Dados qualitativos: dados não estruturados, por exemplo, transcri- 
ções de entrevistas abertas, anotações de campo, fotografias, docu- 
mentos ou outros registros. 

Dados visuais como indicadores de disposições psicológicas cole- 
tivas: um filme, um comercial de Tv, uma pintura popular, uma 
fotografia famosa, podem ter ressonância geral para um grande 
número de pessoas. Tais materiais podem nos dizer algo sobre 
seus gostos, desejos, fantasias ou opiniões. 

Definição subjetiva: o sentido subjetivo de determinada palavra, fe- 
nômeno ou coisa, empregado por um entrevistado. 

Delineamento de pesquisa: várias estratégias para pesquisa, que in- 
cluem negociações entre os custos para implementá-las e os resul- 
tados a serem esperados. Os princípios do delineamento incluem 
o levantamento social, experimentação, estudos de painel, estudos 
de caso, observação participante e etnografia. 

Delineamento paralelo: essa idéia sugere que o estudo do mundo 
vivido de uma comunidade é conseguido de maneira mais apro- 
priada através da análise longitudinal coordenada, tanto dos da- 
dos da mídia, como através de entrevistas diretas. A interpretação 
de ambos os dados é favorecida pelo contexto recíproco. Por exem- 
plo, nem os levantamentos, nem as entrevistas qualitativas são au- 
to-explicativos; sua interpretação é favorecida analisando-se o 
processo de cultivação do ambiente simbólico pelos meios de co- 
municação de massa de uma comunidade. 

Denotação: na semiologia, a significação de primeira ordem. O sig- 
nificado literal, ou primário, de um signo. Para apreender esse 
sentido é suficiente apenas o conhecimento cotidiano. 



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Glossário 



Descrição detalhada: indicador de boa prática da pesquisa qualita- 
dva. A pesquisa é, muitas vezes, relatada com descrições detalha- 
das de situações, acontecimentos e experiências, como mostradas 
nas entrevistas, observações ou documentos, que fazem uso exten- 
so de citações literais. Isso aumenta a relevância da evidência e fa- 
vorece a confiabilidade do público em relação aos dados. 

Dicionário: ferramenta na análise de conteúdo computadorizada. 
Ele define uma lista de conceitos, através de uma lista específica de 
palavras-símbolo. Uma palavra-símbolo é atribuída a um conceito 
singular. O computador identifica palavras-símbolo como seqüên- 
cias e as atribui automaticamente ao conceito predefinido. A cons- 
trução de um dicionário para um corpus de texto específico consti- 
tui uma interpretação do pesquisador. O procedimento é limitado 
pela ambigüidade de palavras isoladas com relação a conceitos. 

Dilema fidedignidade-validade: definição psicométrica de fidedigni- 
dade e validade implica que fidedignidade é o limite superior de vali- 
dade. Este não é o caso nos procedimentos interpretativos. Na avalia- 
ção da boa prática de análise de conteúdo, pode surgir um dilema. A 
validade de uma análise complexa é muitas vezes conseguida através 
da redução da fidedignidade do codificador. Interpretações válidas 
não são, necessariamente, consensuais; a divergência, por si mesma, 
produz informação. O mapeamento estrito de critérios de qualidade 
entre pesquisa quantitativa e qualitativa é inadequado. 

Dinâmica de grupo: as características emergentes de várias pessoas 
em interação, por exemplo, no contexto de uma entrevista com 
grupo focal. 

Discurso: a) falas e textos lingüísticos de todo tipo, incluindo a con- 
versação que ocorre naturalmente, artigos de jornal on dados de 
entrevista; b) na lingüística, todo agrupamento de palavras em 
unidades maiores que uma sentença. 

Eliciação (evocação) de dados: termo genérico para todo método 
de extração de dados de qualquer tipo, falando com as pessoas, ob- 
servando as pessoas, ou coletando registros materiais. 

Entrevista com grupo focal: um pequeno número de pessoas, nor- 
malmente de seis a oito, encontra-se para discutir um tema de in- 
teresse comum, liderado por um moderador, muitas vezes acom- 
panhado por um ou dois observadores. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Entrevistas individuais em profundidade: uma entrevista semi-es- 
truturada com um único respondente, em contraste com a entre- 
vista estruturada de pesquisa de levantamento e as conversações 
mais longas da observação participante. 

Entrevista narrativa: método específico de entrevista que consiste 
em pedir às pessoas que contem sua vida, tanto como um todo, ou 
focando, por exemplo, em uma doença, ou em sua biografia pro- 
fissional. A parte principal da entrevista é uma narrativa espontâ- 
nea mais longa da história de vida do indivíduo, durante a qual o 
entrevistador se abstém de intervenções diretivas. 

Episódio: pequeno evento, com uma estrutura narrativa que pode 
ser parte de uma narrativa, ou de uma história maior. 

Episódio repetido (“repisode”): episódio que acontece repetida- 
mente (por exemplo, “toda vez que eu vou à escola, eu primeiro 
encontro meu vizinho e depois meu amigo”). 

Erro de amostragem: o erro conhecido, associado a uma estratégia 
de amostragem específica. O erro de amostragem é expresso à 
margem de uma estimativa da média, ou da variância, de uma ob- 
servação. 

Esquema autogerador: a entrevista narrativa faz uso de uma com- 
petência universal de se contar histórias. Uma vez iniciada a nar- 
ração, ela conduz o narrador a detalhar a estruturação, atribuir 
relevâncias a um ponto de vista particular e a levar a história a um 
final. Outros termos são “esquema da história”, “lógica narrati- 
va”, “exigências inerentes”, “convenção narrativa” e “gramática 
da história”. 

Estratégia de amostragem: procedimento para selecionar aleatoria- 
mente itens, ou pessoas, de um referencial de amostragem, em- 
pregando práticas já existentes, tais como amostragem sistemáti- 
ca, estratificação ou agrupamentos, ou combinações complexas de 
tais estratégias. 

Estratos e funções: na construção do corpus, o espectro de variáveis 
externas, que são controláveis para a seleção de materiais, ou pes- 
soas. Estratos adicionais e funções sociais acrescentam variedade 
de representações, até que a saturação seja alcançada. Estrato se 
refere à diferenciação hierárquica e função à diferenciação de pa- 
pel entre grupos sociais. 



498 — 




Glossário 



Ethos : uma das três provas de Aristóteles (juntamente com pathos e 
logos). Essas provas estruturam o argumento. Ethos é o argumento 
que apela para a credibilidade pessoal como evidência de uma po- 
sição particular. 

Evento musical total: concepção de música que vai além do mero 
evento sonoro, e inclui o comportamento e a experiência do músi- 
co, do público, a situação em que a música é executada e o discurso 
sobre música entre os participantes. 

Evidência de vídeo: a qualidade do som e da imagem como variá- 
veis de evidência; o ângulo de registro, como implicando, possivel- 
mente, representação distorcida ou viés. 

Exame de hipótese: o emprego de complexas técnicas de consulta 
(de materiais) na análise computadorizada, a fim de descobrir seg- 
mentos de texto que podem ser considerados como evidência, ou 
contra-evidência, de certos pressupostos (mais ou menos precisos). 

Expressão indéxica: expressão como, por exemplo, “aqui”, ou “ago- 
ra”, que muda de sentido conforme a situação concreta em que ela 
é dita. Os analistas da conversação defendem que todas as expres- 
sões são indéxicas. 

Fala conclusiva: a fase final de uma entrevista narrativa. Depois que 
o gravador foi desligado, a conversação provavelmente continua, 
informalmente, e com um sentimento de relaxamento. Esses “co- 
mentários” revelam pistas importantes para a interpretação con- 
textuai da narrativa registrada. As falas conclusivas devem ser re- 
gistradas em um protocolo de memória, imediatamente após a en- 
trevista. 

Falácia da autovalidação, da evidência seletiva: consiste na tentati- 
va sincera de aplicar um modelo, ou provar uma teoria, que leva a 
subverter a evidência de qualquer fato, ou dado, que possa servir a 
esse objetivo. 

Falácia da causa mecanicista: consiste em fragmentar os compo- 
nentes de um complexo causal e analisá-los separadamente, e até 
mesmo avaliar sua influência causal separadamente, como se eles 
fossem elementos discretos, determinados por forças discretas, e 
não como sendo dinamicamente relacionados um com o outro. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Falácia da causa supérflua: consiste em explicar um acontecimento 
a partir da ação de um ou outro agente, que se pode provar ter 
existido, mas que teve pouca ou nenhuma influência sobre os re- 
sultados. 

Falácia das causas necessárias e suficientes: postura analítica que 
consiste em fragmentar explicações de acontecimentos em fatores 
discretos, qualificando-os como causas necessárias e suficientes ou, 
às vezes, como causas subjacentes e imediatas. 

Falácia da evidência desproporcional: distorções que podem ocor- 
rer, pois diferentes atores não levam em consideração grande quan- 
tidade de informações. A informação disponível pode tornar rele- 
vante o que tinha menos significação. 

Falácia da evidência relativizada: consiste em considerar os textos, 
tanto como a base de nossa compreensão do passado, mas também 
como construções mais ou menos opacas, através das quais nenhum 
passado “real” pode ser recuperado e cujo sentido, por conseguin- 
te, depende essencialmente do prejulgamento do leitor individual. 
Também conhecida como a falácia do pós-modernismo. 

Falácia da falsa dicotomia: consiste em sugerir uma dicotomia en- 
tre dois termos, que na verdade não são nem mutuamente exclusi- 
vos, nem coletivamente exaustivos. 

Falácia da narrativa anacrônica: consiste em ler o passado como se 
não fosse mais que um palco para o presente. Conhecida também 
como a falácia Whig da história. É a analogia temporal do etnocen- 
trismo: o entendimento de outra cultura, ou de outro tempo, em 
termos de sua própria cultura, ou de seu próprio tempo presente. 

Falácia do fato secreto: consiste na crença de que fatos ocultos pos- 
suem um significado específico e que, se descobertos, teriam papel 
importante na explicação dos acontecimentos em questão. 

Falácia da posição adversária: pressuposição de que a verdade é 
mais rapidamente alcançada se cada historiador, ou cientista so- 
cial, adotar uma posição adversária. 

Falácia da redução: consiste em identificar um elemento singular 
na explicação apresentada e reivindicar, sem razões fundamenta- 
das, que ele é o elemento-chave de toda a história. A distorção re- 
sultante é disfuncional para a explicação. 



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Glossário 



Fala/texto contextualizados: na análise de discurso, a proposição 
básica que afirma que toda fala e texto têm a ver com contextos es- 
pecíficos. 

Fase de questionamento: a terceira fase da entrevista narrativa. De- 
pois da fase da narrativa principal, o entrevistador faz as perguntas 
imanentes, traduzindo livremente perguntas exmanentes para os 
referenciais e o vocabulário do informante. Regras de procedi- 
mento excluem perguntas do tipo “por quê?”, ou mostram contra- 
dições na narrativa. 

Fidedignidade: indicador de qualidade na pesquisa social quantita- 
tiva. Um instrumento mede um fenômeno consistentemente se 
aplicado repetidas vezes, ou por diferentes pessoas. Por exemplo, 
um teste de inteligência deveria apresentar o mesmo número no 
QI, em repetidas aplicações para a mesma pessoa. 

Folha de codificação: na análise de conteúdo feita manualmente, os 
codificadores assinalam seus julgamentos para cada unidade de 
texto em uma folha de codificação - uma folha de codificação para 
cada unidade de codificação. A folha de codificação traduz as uni- 
dades de texto para um formato adaptado à análise estatística - 
um valor para cada código, para cada unidade de texto, para 
cada codificador. Estes registros são posteriormente inseridos no 
computador como dados em números brutos. As folhas de codifi- 
cação podem ser diretamente construídas no próprio computa- 
dor, semelhantes às que se tem à mão evitando, desse modo, que 
a entrada de dados possa ser uma fonte de erros no processo. 
Uma folha de codificação é sempre apoiada por um livro de codi- 
ficação explicativo. 

Formulação: na conversação, um turno oferecido como uma reafir- 
mação, com palavras diferentes, da essência daquilo que falou um 
locutor anterior. 

Garantia: na argumentação, uma premissa que consiste em razões, 
fundamentações ou regras, empregada para assegurar que os da- 
dos são legitimamente utilizados para apoiar a proposição. 

Gênero: tipo de discurso com características distintas, por exemplo, 
os “filmes de cow-boys”, como um gênero de filme, ou reporta- 
gens, como um gênero jornalístico. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Gostos musicais: associação empírica entre preferências musicais e 
categorias sociais de pessoas. Os gostos musicais são parte do capital 
cultural e das distinções sociais. Os gostos podem ser usados como 
indicadores culturais da posição das pessoas no espaço social. 

Homogeneidade: princípio da construção de corpus. Os textos, ou 
outros materiais, devem se constituir de um material constitutivo 
único, e não de uma mistura de diferentes materiais. Por exemplo, 
não é aconselhável misturar transcrições de entrevistas individuais 
com transcrições de entrevistas com grupos focais, ou textos de 
jornal com transcrições de entrevistas, dentro de um único corpus. 
Estes materiais precisam ser analisados separadamente. 

ícone: na semiótica, um tipo de signo em que a relação entre o signi- 
ficante e o significado é de semelhança, representação pictórica ou 
reprodução, por exemplo, uma fotografia. Este é o tipo de signo 
menos arbitrário/convencional na semiótica de Peirce. 

Indicação de qualidade: cada método de pesquisa possui sua “boa 
prática”, que é indicada por alguns critérios. Para a pesquisa quan- 
titativa, normalmente são conferidos a representatividade da amos- 
tra, o tamanho da amostra e a fidedignidade e validade das medi- 
das numéricas. Na pesquisa qualitativa, critérios equivalentes es- 
tão menos claramente desenvolvidos. Eles podem incluir triangu- 
lação, transparência, construção de corpus, surpresa pessoal, des- 
crição detalhada e, algumas vezes, validação comunicativa. 

Indicação de um método: no delineamento da pesquisa, o proble- 
ma de escolher o método de pesquisa apropriado ao problema em 
questão. Por exemplo, para objetivos diferentes, o pesquisador irá 
preferir a observação à entrevista, ou um levantamento baseado 
em questionários a entrevistas com grupos focais. A contra-indica- 
ção se refere ao conhecimento de quando não empregar um deter- 
minando método. 

Indicadores culturais: análise de séries temporais de um texto, 
imagem ou materiais sonoros, a fim de mapear as flutuações no 
uso de aspectos simbólicos, referências e ícones, em uma comuni- 
dade. Presume-se que essas mudanças no uso de aspectos e ima- 
gens, indiquem as mudanças nos valores culturais, nas idéias e re- 
presentações, do mesmo modo que a fumaça indica o fogo oculto. 
Os indicadores são muitas vezes mais fáceis de observar do que os 



502 — 




Glossário 



valores culturais que eles representam; desse modo, eles são medi- 
das eficientes do ponto de vista da pesquisa. 

índice: a) na semiótica, um tipo de signo em que a relação entre o 
significante e o significado é de contiguidade, ou causalidade, por 
exemplo, a fumaça significa fogo. O conhecimento convencional é 
mais importante para um índice do que para um ícone; b) na análi- 
se computadorizada, qualquer etiqueta, ou marcador, anexado a 
uma unidade de texto, com fins de consulta. 

Informante: o entrevistado, em uma entrevista narrativa. 

Interesses do conhecimento: refere-se à tipificação de Habermas 
das três tradições de conhecimento - empírico-analítico, herme- 
nêutico e crítico -, cada um deles associado a um interesse do co- 
nhecimento específico: controle, construção de consenso e eman- 
cipação, ou “empoderamento”. Não devem ser confundidos com 
um método específico de pesquisa, ou com os interesses indivi- 
duais de uma pessoa. 

KWIC (keyword in context — palavra-chave em contexto): termo 
genérico para procedimentos computadorizados, que auxilia na 
análise dos textos, identificando palavras singulares juntamente 
com seu co-texto, por exemplo, nas análises de concordância ou 
de co-ocorrência. 

KWOC (keyword out of context - palavra-chave fora de contexto): 

termo genérico para procedimentos computadorizados, que con- 
tribui para análise de textos, focando na ocorrência de palavras 
isoladas. Tal prática inclui listagens de vocabulário, contagem de 
palavras e análises baseadas em dicionário. 

Lematização: o tratamento preparatório do texto, exigido para efi- 
cientes análises de KWIC e KWOC. Estas análises computadoriza- 
das exigem rotinas que reduzem diferentes formas gramaticais das 
palavras a um sentido único da raiz. Por exemplo, para fins de uma 
análise específica, as formas da palavrajogar, jogo, joga, jogou, jo- 
gando, etc. são equivalentes ao radical * jog”, que pode ser tomado 
como símbolo do conceito “atividade de lazer” (KWOC), ou em es- 
treita associação com a palavra “criança” (KWIC). 

Lei e chance: lei se refere a toda regularidade que permite predi- 
ções de qualquer sorte. Chance se refere a eventos aleatórios, ou 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



processos, que não podem ser preditos. Lei e chance não devem 
ser confundidos com determinismo e indeterminismo. 

Lei do instrumento: refere-se à observação de que a capacidade hu- 
mana para definir e resolver problemas depende das habilidades e 
instrumentos disponíveis; também conhecida como dependência 
funcional do pensamento. Em outras palavras: dê a uma criança 
um martelo e ela verá tudo como tendo necessidade de ser batido. 
A lei enfatiza a importância de um pluralismo metodológico para a 
pesquisa social. 

Leitura cética: na análise de discurso, um modo de ler um texto, 
que implica questionar sua organização e pressupostos, pergun- 
tando-se continuamente quais características do texto estão fazen- 
do com que alguém o leia desse modo. É o oposto da leitura acadê- 
mica de se ler um texto buscando os pontos essenciais. 

Léxico: na semiologia, um corpo de conhecimento cultural conven- 
cional, exigido para se compreender uma significação de segunda 
ordem, como conotação, ou mito (ver também sistema referente). 

Livro de codificação: instrumento básico de toda análise de conteú- 
do, que apresenta a ordem do sistema de categorização/codifica- 
ção e as definições de cada código, com exemplos. É uma prática 
excelente em toda análise de conteúdo que fundamenta uma codi- 
ficação fidedigna; e também documenta o processo de codificação 
para escrutínio público. 

Logos: uma das três provas de Aristóteles, que estruturam um argu- 
mento (juntamente com ethos epathos: os três mosqueteiros). Logos 
é o apelo à razão. Cada argumento segue uma determinada lógica, 
um determinado logos, um apelo-padrão específico àquilo que é 
razoável, ou racional. 

Materiais de estímulo: técnicas, tais como associação livre, monta- 
gens de fotografias, categorizações com cartões e tarefas de desem- 
penho de papel, planejadas para eliciar idéias que podem ser difí- 
ceis de serem articuladas, e para promover a discussão em entre- 
vistas com grupos focais. 

Memória e conhecimento episódicos: a parte da memória humana 
e do conhecimento em que eventos concretos são armazenados, 
inseridos em seu contexto com uma estrutura temporal, ligados a 



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Glossário 



circunstâncias e a pessoas específicas (por exemplo, “minha pri- 
meira aula na escola”). 

Memória semântica: as partes da memória humana que consistem 
em conceitos, definições e suas inter-relações, regras e esquemas 
de acontecimentos. Estes são generalizados e descontextualizados 
de circunstâncias concretas, de pessoas ou acontecimentos. 

Metáfora: uma figura de retórica. Comparação implícita entre duas 
coisas de natureza diferente, mas que têm assim mesmo algo em 
comum. 

Metonímia: uma figura de retórica. É a substituição de alguma pala- 
vra atributiva ou sugestiva, por aquilo que é realmente significado. 

Métrica: na análise de conteúdo, os códigos têm uma qualidade mé- 
trica, ou de escala, diferentes. Podem ser escalas categoriais, ordi- 
nais, de intervalo ou de razão. Escalas categoriais classificam uni- 
dades; escalas ordinais as ordenam em graus; escalas de intervalo, 
além disso, estabelecem as distâncias com relação a uma escala de 
unidade igual; e escalas de razão, avaliam a distância de um ponto 
zero. Dependendo da qualidade da escala, procedimentos estatís- 
ticos diferentes podem ser aplicados para redução dos dados. 

Mídia como um fato social: implica que nós temos que tratar as 
apresentações na mídia como tendo sujeições e influências no mun- 
do social, do mesmo modo que o mercado de ações, as Nações 
Unidas ou a indústria nuclear. 

Mito: na semiologia, um tipo de significação de segunda ordem. O 
processo pelo qual o sentido cultural e ideológico se torna natural, 
invisível e sem tempo, ou “dado”. Os semiólogos tentam desmisti- 
ficar esse processo, através do desmascaramento da construção do 
signo e através da reintegração de sua motivação histórica e ideo- 
lógica. 

Modelo estacionário e rotativo: os termos se referem ao enfoque de 
pesquisa de campo da bemetologia. Em vez de aplicar questionários 
e inventários, a bemetologia apela para registros de dados que ocor- 
rem naturalmente, tais como o estudo do comportamento concre- 
to, como a base da avaliação da personalidade. O modelo estacio- 
nário recolhe dados em situações como hospitais, escolas e jardins 
de infância, onde muitas pessoas permanecem por certo tempo. O 
modelo rotativo acompanha os movimentos, ou registra as expe- 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



riências de uma pessoa, através de situações diferentes. Os mode- 
los estacionário e rotativo de avaliação da personalidade tor- 
nam-se possíveis com recursos técnicos, tais como computadores 
portáteis, ou registradores de eventos especialmente construídos 
para esse fim. 

Moderador: papel do entrevistador na condução da entrevista de 
grupo focal. 

Modo e meio de representação: a fim de distinguir tipos de materi- 
ais de dados, é útil considerar duas dimensões básicas de represen- 
tar o mundo. O modo refere-se ao comportamento e à comunica- 
ção formais ou informais; o meio se refere ao movimento, ao texto 
escrito, à imagem visual ou ao som. Este esquema permite a al- 
guém distinguir diversos tipos de dados e avaliar a adequação de 
métodos específicos de pesquisa. 

Modularidade: princípio de eficiência para a construção de refe- 
renciais de codificação, na análise de conteúdo. O mesmo código é 
usado para diferentes funções no processo de codificação, o que 
aumenta a complexidade da codificação, sem acrescentar esforço 
de aprendizagem. 

Monitoramento contínuo do comportamento ou da experiência: 

uma exigência metodológica que a bemetologia supre: como o com- 
portamento, ou a experiência, é um processo incessante, ele deve, 
por conseqüência, ser também registrado continuamente. 

Música: sons intencionalmente organizados, que constituem uma 
atividade multifuncional elaborada, na maioria das culturas. A mú- 
sica é produzida pela voz humana, como canto, por instrumentos 
especialmente fabricados e pela combinação dos dois. 

Narração principal: a segunda fase da entrevista narrativa. A narra- 
ção principal não deve ser interrompida. O entrevistador se enga- 
ja numa escuta ativa, fazendo anotações, se conveniente, e encora- 
jamentos periódicos verbais e não-verbais, para que o narrador 
continue. A coda marca o fim dessa fase, com a qual o informante 
indica claramente, depois de repetidas sondagens, que não há 
mais nada a ser dito. 

Narrativa: alguns textos são narrativas. Em uma narrativa, o conta- 
dor de histórias coloca várias ações e experiências em uma seqüên- 
cia. Elas são as ações e experiências de muitos personagens. Esses 



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Glossário 



personagens tanto influem em situações, como reagem a situações. 
As mudanças trazem à luz novos elementos das situações e dos per- 
sonagens que previamente estavam implícitos. Ao proceder assim, 
elas ensejam o pensamento, a ação, ou ambos. Todos estes ele- 
mentos revelam a trama da narrativa. 

Narrativa biográfica: a história de vida de uma pessoa é recontada: 
a vida como um todo, ou certos períodos de uma vida, como nas 
narrativas de doenças, ou de mudanças de profissão. 

Narrativa e representação: a distinção entre narrativa e representa- 
ção chama a atenção do pesquisador sobre as incertezas epistêmi- 
cas das narrativas. Embora a técnica da entrevista narrativa seja 
justificada pela forte afinidade entre a experiência e o contar his- 
tórias, o elo entre narração e experiência vivida é muitas vezes tê- 
nue: o contador de histórias neurótico nos conta o que pensa que 
nós queremos ouvir e não necessariamente sua experiência; o con- 
tador de histórias político nos conta o que deveria ter acontecido; e 
a pessoa sob efeito de trauma nos conta menos do que aquilo pode- 
ría ter sido experimentado. 

Notação e transcrição: a) eventos musicais podem ser representa- 
dos em forma escrita como notação ou transcrição, fazendo uso de 
convenções de signos elaboradas. A notação serve principalmente 
à memória do artista; as transcrições ajudam a análise de eventos 
musicais; b) toda translação de materiais de qualquer formato para 
um formato escrito, baseada em notação convencional. As conven- 
ções definem o nível de detalhe que deve ser mantido. 

Número de entrevistas qualitativas: existem dois aspectos a serem 
considerados: a quantidade de texto que pode ser conveniente- 
mente analisado e a saturação de sentido, significando que não se- 
rão esperadas novas surpresas com entrevistas adicionais. O objeti- 
vo é maximizar o espectro de opiniões e experiências, com um pe- 
queno número de entrevistas. 

Objeto: na bemetologia , um objeto pode ser tudo o que é referido por 
um predicador da observação, ou da experiência. Como tal, ele é 
definido pela posição mais à esquerda, no esquema de predicação: 
objeto <r- predicado <— valor do predicado <— valor de tempo. 

Organização retórica: refere-se à questão de que a maioria dos dis- 
cursos é construída para ser persuasiva, para conseguir aprovação 



— 507 




Pesquisa qualitativa com texto, iaaagem e som 



diante de versões diferentes do acontecimento, do fenômeno, ou 
do grupo que é o objeto do discurso. 

Orientação da ação: na análise de discurso, quando se realça o pon- 
to de que o discurso não é apenas sobre coisas, mas que ele implica 
também em fazer coisas. 

Par adjacente: em conversações, dois turnos em que o segundo é, 
até certo ponto, predizível a partir do primeiro, como, por exem- 
plo, pergunta e resposta, ou convite e resposta. 

Paradigma ou conjunto associativo: na semiologia, o grupo de sig- 
nos alternativos que podem ser substituídos pelo signo escolhido. 
Os membros desse conjunto são, em certo sentido, similares ao sig- 
no escolhido (por exemplo, tipos de chapéus, diferentes cores), mas 
suas diferenças do signo escolhido ajudam a delimitar o sentido. 

Paradoxo do corpus teórico: um corpus seleto de opiniões, atitudes e 
cosmovisÕes representa um universo de tais representações se o es- 
pectro de variedade estiver incluído; contudo, o corpus é necessário 
antes que alguém possa determinar essas subdivisões de varieda- 
de. A forma de sair desse paradoxo é construindo corpora passo a 
passo e iterativamente. 

Patologias de codificação: práticas disfuncionais que surgem do 
uso de CAQDAS. Por exemplo, dá-se ênfase à construção de exten- 
sos sistemas de índices hierárquicos para algumas poucas transcri- 
ções de entrevistas. Este procedimento pode se tornar um obstácu- 
lo para a interpretação dos dados, pois o pesquisador vai se con- 
centrar no sistema de índices e perde de vista seu problema de pes- 
quisa, que necessita uma redução de complexidade. O resultado 
pode ser uma crise no processo de pesquisa. 

Pathos : uma das três provas de Aristóteles, que estrutura o argu- 
mento (juntamente com ethos e logos: os três mosqueteiros). Pathos 
é o apelo à emoção do público, a fim de persuadir. 

Percepção, percepção distorcida, percepção informada: na aná- 
lise de materiais visuais, a diferença entre “apenas ver” e “ver por 
dentro”, isto é, ver o detalhe e o sentido dentro de uma imagem 
referenciada. 



— 508 — 



Glossário 



Pergunta aberta: pergunta colocada em um questionário, que for- 
nece dados qualitativos, para investigar a estrutura natural das res- 
postas, com respeito a um tópico específico. 

Perguntas exmanentes e imanentes: na entrevista narrativa, distin- 
guem-se dois tipos de perguntas. Perguntas exmanentes são aque- 
las nas quais o entrevistador está interessado; essas perguntas, con- 
tudo, devem ser traduzidas para o vocabulário e referências do in- 
formante, isto é, para perguntas imanentes. Nem todas as pergun- 
tas exmanentes são traduzíveis, pois a narrativa do informante 
pode não oferecer um ponto de ancoragem para a tradução. 

População: o conjunto completo de itens, ou pessoas, que são o alvo 
da inferência estatística, baseada na amostragem aleatória. Uma 
população é definida com objetivos práticos por um referencial de 
amostragem. 

Predicador: na bemetologia, todo termo que não possa ser uma descri- 
ção definitiva, ou um nome próprio, e que é atribuído a um objeto 
(físico ou não-físico) é chamado de predicador. Por exemplo, em 
“João <— agressivo”, o termo “agressivo” é um predicador. A expres- 
são completa “João <— agressivo” é chamada de uma predicação. 

Predicação em cascata: na bemetologia, uma expressão metafórica 
introduzida para designar dados comportamentais ou experienci- 
ais, como uma seqüência complexa de referências: objeto <— predi- 
cador <— valor do predicador <— valor de tempo. 

Preparação: consiste em concentrar a atenção de um respondente 
no tópico (estímulo) de interesse, fazendo uma pergunta inicial ge- 
ral, ou apresentando um ícone. 

Prestação de contas pública: característica da boa pesquisa social e 
a função de indicação de qualidade na pesquisa social. Critérios 
explícitos de boa prática garantem sua natureza pública. A pesqui- 
sa social é uma atividade de conhecimento público. A credibilida- 
de pública é garantida através da construção da confiabilidade e 
da relevância. 

Proposição: nos argumentos, uma afirmação que contém estrutura e 
é apresentada como o resultado do argumento, apoiada por fatos. 

Reapresentação complexa (“complex retrieval”): a busca de seg- 
mentos de texto codificados, que está restrita por certas limitações, 



— 509 — 




Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



por exemplo, a consulta de documentos com um atributo comum, 
ou a busca de co-ocorrência de segmentos de texto aos quais deter- 
minados códigos foram atribuídos. 

Reapresentação comum (“ordinary retrieval”): a busca computa- 
dorizada de todos os segmentos de texto em um determinado do- 
cumento ou em um conjunto de documentos, aos quais foi atribuí- 
do o mesmo código, ou índice. 

Recuperação: na semiologia, o processo pelo qual os construtores 
de mitos reagem à desmistificação, assimilando e neutralizando a 
crítica. 

Referencial de amostragem: operacionalização de uma população 
de itens, ou de pessoas, expressa em uma listagem. Um referencial 
de amostragem expressa uma população imperfeitamente e pode 
resultar em uma não-cobertura de partes da população. 

Referencial de codificação: a ordenação sistemática de códigos em 
uma análise de conteúdo. Um bom referencial de codificação é in- 
ternamente coerente, no sentido de que cada código deriva de 
uma concepção analítica mais abrangente. 

Reflexividade: a) uma característica da pesquisa, na tradição crítica. 
As maneiras pelas quais os pesquisadores devem refletir sobre suas 
próprias práticas; b) na análise de discurso, a atenção dada à refle- 
xividade provém do simples fato de que o discurso do analista não 
é menos construtivo, orientado para a ação e retórico, do que o dis- 
curso que está sendo analisado. 

Refutação: em um argumento, a premissa que limita a generalidade 
da garantia através de considerações ulteriores, por exemplo, com 
“a não ser que”. 

Registros visuais: toda imagem que contém dados sobre um estado 
passado do mundo pode ser tratada como um registro. Isso pode 
incluir impressos, registros sísmicos, fotografias de construções, de 
cenários, fotos de passaportes ou registros de emprego. 

Relevância: a) um dos quatro princípios da construção do corpus, de 
acordo com o qual os textos e outros materiais devem ser coletados 
para um objetivo único. Ela serve como um lembrete para ser leva- 
do em consideração na seleção dos materiais; b) uma característica 
de boa qualidade na pesquisa. A importância da evidência da pes- 



— 510 — 




Glossário 



quisa para as pessoas envolvidas, para a teoria e os conceitos em 
questão, ou para os objetivos do projeto de pesquisa. Os indicado- 
res, na pesquisa quantitativa, são a representatividade e a validade; 
na pesquisa qualitativa, são a construção do corpus, a surpresa e a 
validação comunicativa. 

Representação: a) um conjunto socialmente construído e estrutura- 
do de sentidos e técnicas corporificados em diferentes modos (for- 
mais ou informais) e em diferentes meios (movimento, texto, ima- 
gem e som); b) modelo de segunda ordem, de dimensão inferior, 
dos acontecimentos do mundo real de primeira ordem, de três ou 
quatro dimensões; c) o espectro de opiniões, atitudes, pontos de 
vista, idéias, que devem ser saturadas no processo de construção 
do corpus. As representações são variedades de sentido reveladas 
através da pesquisa qualitativa. 

Resolução: todo o instrumento de mensuração representa a “reali- 
dade” em termos de unidades de resolução, mais ou menos apri- 
moradas. Na bemetologia, o nível de resolução comportamental, ou 
experiencial, é o conjunto de valores do predicador, por exemplo, 
o esquema de codificação empregado para observar o comporta- 
mento, ou a experiência. 

Retórica: as três definições padrão de retórica são: a) o ato de persu- 
asão; b) a análise do ato de persuasão, o estudo da técnica e das re- 
gras para empregar a linguagem com eficiência (especialmente no 
discurso público); c) uma cosmovisão sobre o poder da linguagem 
para estruturar a ação e a crença humanas. 

Retórica da pesquisa: a pesquisa é considerada como sendo uma 
atividade pública, que implica persuadir outros do valor das obser- 
vações de alguém. Nesse contexto, a função da metodologia é re- 
distribuir o esforço do pesquisador para reforçar o logos de um ar- 
gumento, em lugar do seu pathos, ou do seu ethos. 

Retroalimentação por vídeo/foto: consiste no uso de vídeo, ou ima- 
gem fotográfica, para estimular os informantes a comentar sobre 
imagens e, desse modo, tanto explicar o que está acontecendo, 
como ajudar na evocação de memórias, opiniões e comentários va- 
lora ti vos. 

Revezamento (relais, fr.; relay, ingl.): na semiologia, onde tanto a 
imagem, como o texto, contribuem reciprocamente para o sentido 



— 511 — 



Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



geral, diz-se que eles estão numa relação de revezamento. Deve ser 
distinguido de ancoragem. 

Ruído: sons desagradáveis que são produzidos como efeitos colate- 
rais da atividade humana e a maioria das vezes sem intenção. O 
espectro de sons pode ser separado em ruído e música, e suas 
fronteiras variam histórica e culturalmente. Mudanças nessa 
fronteira podem servir como um primeiro indicador de tendên- 
cias culturais. 

Saturação: princípio da construção do corpus usado para selecionar 
entrevistados OU textos. O processo de seleção é interrompido 
quando se torna claro que esforços adicionais não irão trazer mais 
nenhuma variedade. Unidades adicionais dão lugar a retornos de- 
crescentes. 

Scitexing: manipulação eletrônica de imagens. 

Significado musical: capacidade da música de conter significação, 
como referência interna ou externa, é controvertida. Uma refe- 
rência interna aponta para outra música através da citação, imita- 
ção ou similaridade. Referências externas são miméticas, através 
da imitação de movimento ou emoções, através dos meios musi- 
cais, como na música programática; ou são simbólicas, como nas 
associações arbitrárias a acontecimentos coletivos, ou a experiên- 
cias de emoção privadas. 

Signo: unidade básica de análise para a semiologia. O signo é a con- 
junção arbitrária de um significante e um significado. 

Significado: na semiologia, o componente mental de um signo. O 
conceito, ou idéia, ao qual o significante se refere. 

Significante: na semiologia, o componente material de um signo 
que se refere a um significado. Na fala, é a imagem acústica. 

Símbolo: na semiótica, um tipo de signo em que a relação entre o 
significante e o significado é puramente arbitrária, ou convencio- 
nal, por exemplo, uma rosa vermelha significando amor. 

Sincronicidade: princípio da construção do corpus de acordo com o 
qual textos e outros materiais devem ser selecionados dentro de 
um ciclo único de mudança. Materiais diferentes possuem ciclos 
“naturais” de mudança diferentes. O período selecionado não 



— 512 — 




Glossário 



deve exceder a mais de um desses ciclos. A pesquisa diacrônica im- 
plica a comparação de dois corpora através de ciclos de mudança. 

Sinédoque: figura retórica da fala na qual a parte está pelo todo, por 
exemplo, a coroa representa a monarquia. 

Sintagma: na semiologia, as relações entre os signos escolhidos em 
um texto, ou imagem. Para o texto, as relações sintagmáticas são 
temporais ou lineares. Para as imagens, as relações sintagmáticas 
são espaciais. 

Sistema referente: na semiologia, aquilo que é referido pelo signifi- 
cante das conotações: um recurso socialmente partilhado, que pos- 
sibilita a um intérprete fazer uma interpretação. 

Situação ideal de pesquisa: tipo ideal de delineamento de pesquisa 
que combina dados de a) auto-observações de atores no campo; b) 
observações de observadores ingênuos dentro do mesmo mundo 
vivencial; c) observação sistemática do campo de ação, e d) trian- 
gulação de todos os três tipos de dados. 

Som: termo genérico para dados auditivos que são tomados como 
uma expressão da atividade humana e como uma forma de comu- 
nicação humana. Os sons se distinguem em ruído, muitas vezes 
não desejado, caótico e desagradável, e em música, em geral dese- 
jada, organizada e agradável. 

Surpresa: critério de qualidade na pesquisa qualitativa. Para evitar a 
falácia da evidência seletiva, os pesquisadores qualitativos devem 
documentar suas próprias surpresas durante um projeto de pes- 
quisa. Nova evidência, no sentido de novas intuições, só pode ter 
credibilidade se ela estiver fundamentada em surpresas locais ex- 
perienciadas pelo pesquisador. 

Tamanho da amostra: indicador de qualidade na pesquisa social 
quantitativa. O poder de uma inferência estatística depende do ta- 
manho da amostra, entre outras coisas. Quanto maior o tamanho 
da amostra, menor é o erro de amostragem. Mais precisamente: 
duplicar a amostra reduz o erro pela raiz quadrada de 2; ou, para 
reduzir o erro pela metade, será necessário um quarto do tamanho 
da amostra. Essa lógica não se aplica à construção do corpus na se- 
leção qualitativa. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Técnica do incidente crítico: técnica de entrevista para explorar as 
circunstâncias de acontecimentos em que uma crise, ou um proble- 
ma, surge em uma organização, por exemplo, um acidente. 

Teorias pessoais (eigentheory): a análise de entrevistas narrativas 
reconstrói os acontecimentos (o que aconteceu e como aconteceu), 
bem como as teorias pessoais do informante sobre os acontecimen- 
tos (por que isso aconteceu, por que agi assim, ou experimentei 
isso dessa maneira). As teorias pessoais tipificam as próprias expli- 
cações dos informantes, as justificações e como é conferido sentido 
às experiências e aos acontecimentos. 

Texto indexado e não-indexado: análise de entrevistas narrativas 
distingue dois tipos de texto na transcrição. Texto indexado se re- 
fere a acontecimentos, pessoas, tempos e localizações, fornecendo 
a base para reconstruir a estrutura dos acontecimentos. Texto 
não-indexado é o residual, que pode incluir descrições de expe- 
riências, de atribuições de motivos e proposições gerais e argu- 
mentos legitimadores. Os últimos são indicadores para teoria pes- 
soal ( eigentheory ) do informante. 

Tópico: os analistas da conversação questionam a idéia de um tópi- 
co único de discurso, sobre o qual a conversa gira, uma vez que di- 
ferentes participantes podem estar interessados em diferentes tó- 
picos. Mas eles podem mostrar como os participantes apresentam 
a relevância (ou irrelevância) de sua contribuição concreta com 
respeito àquilo que eles assumem ser o tópico. 

Tópico guia: conjunto de questões/temas amplos, baseado nas fina- 
lidades e objetivos da pesquisa e usado para estruturar a conversa- 
ção, no decurso de uma entrevista. 

Tópico inicial: primeira frase de uma entrevista narrativa inclui a 
formulação do tópico inicial feita pelo entrevistador. Sua função é 
estimular uma narração continuada. Várias regras são sugeridas a 
fim de conseguir tal objetivo. 

Trajetórias, individuais e coletivas: análise de entrevistas narrati- 
vas, especialmente em investigações biográficas, reconstrói, atra- 
vés de uma série de passos analíticos, as trajetórias profissionais in- 
dividuais e coletivas de acontecimentos e experiências. Através da 
comparação sistemática das narrativas individuais, o analista tipifi- 



— 514 — 




Glossário 



ca as experiências coletivas, com transições características e se- 
qüências de acontecimentos. 

Translação: todo passo, na análise empírica, implica uma transla- 
ção do material, de um contexto a outro. 

Transparência: critério de boa prática, na pesquisa qualitativa. A se- 
leção dos dados, o tempo e a localização da coleta, e os procedi- 
mentos de análise, devem ser suficientemente documentados, de 
tal modo que eles possam ser imitados. Isso aumenta a confiabili- 
dade pública nos dados. 

Triangulação: critério de boa prática, na pesquisa qualitativa, que 
emprega diversos métodos, ou teorizações, do mesmo problema. 
Isso conduz, muitas vezes, à evidência contraditória, que repercute 
no processo de pesquisa. A resolução dessas contradições necessita 
ser documentada. 

Turno: nas conversações, toda a fala de um participante entre aque- 
la do locutor anterior e a do seguinte. O turno, e não a frase, é a 
unidade básica da análise de conversação. Equivale a uma frase, 
mas enfatiza a maneira como essa fala é situada dentro de uma in- 
teração. 

Turno preferido: nas conversações, a segunda parte de um par ad- 
jacente, que é o mais predizível, e é, em geral, dito diretamente. 
Um turno não-preferido é, em geral, apresentado com alguma he- 
sitação, prefácio ou modificação. O conceito não implica que o lo- 
cutor prefira psicologicamente o tipo de resposta dada; é uma afir- 
mação sobre a regularidade, e não sobre o afeto. 

Unidade de codificação: unidade de texto que é ligada a um códi- 
go, tanto automaticamente por computador, como por um intér- 
prete humano. As unidades podem ser definidas fisicamente, sin- 
taticamente, proposicionalmente ou tematicamente. 

Validação comunicativa: critério de qualidade que pode, às vezes, 
ser aplicado à pesquisa qualitativa. Os resultados são levados de 
volta aos entrevistados que forneceram a informação e é solicitado 
a eles que concordem ou discordem, para assegurar que sua situa- 
ção não está sendo mal interpretada. Porém, na pesquisa investi- 
gativa sobre atores poderosos, o convite para “censurar” a versão 
do pesquisador pode não ser apropriada. 



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Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som 



Validade: indicador de qualidade da pesquisa social quantitativa. 
Um instrumento mede o fenômeno para cuja mensuração ele foi 
construído. Por exemplo, para um teste que reivindica medir “in- 
teligência”, exige-se uma prova que mostre que ele executa aquilo 
a que ele se propôs. Há vários tipos de validade: concorrente, pre- 
dicativa, de construto e validade natural (suposta). 

Valor de código: na análise de conteúdo, um código é uma catego- 
ria com dois ou mais valores. Cada unidade de texto é classificada 
em categorias, ligando, desse modo, cada unidade com apenas um 
valor de código para cada categoria. Em princípio, os valores de 
código são mutuamente exclusivos, exaustivos, derivam de um 
único conceito, e não têm conexão lógica com os valores de outros 
códigos. 

Valor de predicador: se o próprio predicador é tomado como um ob- 
jeto, o que se atribui a esse objeto é chamado de um valor de predi- 
cador. Na bemetologia, o termo foi introduzido para caracterizar da- 
dos comportamentais, ou experienciais, como afirmações. Exem- 
plo: João <- agressivo <- físico <- ontem. O termo “físico”, atribuído 
a agressivo , é considerado como sendo o valor de predicador. 

Variáveis passivas: variáveis que descrevem atributos de um locu- 
tor, ou características de uma unidade de texto, que estão ligadas 
aos padrões semânticos revelados pela análise de co-ocorrência. 

Vídeo participativo: um vídeo em que as pessoas filmadas têm uma 
participação efetiva no conteúdo, estilo, edição e distribuição. 

Viés da amostra: as diferenças não conhecidas entre uma amostra e 
sua população. Amostras distorcidas não são representativas, devi- 
do a sua não cobertura pelo referencial da amostra, ou pela inad- 
vertida seleção demasiado numerosa de subgrupos da população. 



— 516 — 




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Fax: (Oxxl 1) 6693-7355 
Varejo 

(01006-000) Rua Senador Feijó, 168 
Tel.: (Oxxl 1) 3105-7144 
Fax: (Oxxll ) 3107-7948 

Vare/o 

(01414-000) Rua haddock Lobo, 360 
Tel.: (Oxxll) 3256-0611 
Fax: (Oxxll) 3258-2841 



PARCERIAS 

CAMPOS DOS GOITACAZES, RJ 

Varejo 

W.T. Castro Livraria e Papelaria Ltda 
(28027-140) Rua Viscande de Itaboraí, 169 - 
Parque Rosário 

Tel.: (0xx22) 2735-0003 e 2733-0967 
Fax: (0xx22) 2733-0807 

SÃO LUÍS, MA 

Varejo 

J.M.F. de Lira Comércio e Representações de Livros e 
Artigos Religiosos 

(65010-440) Rua da Palma, 502 - Centro 
Tel.: (0xx98) 221-0715 
Fax: (0xx98) 231-0641 



xx - CÓDIGO DAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS TELEFÔNICOS PARA LONGA DISTÂNCIA. 



Desafortunados 

David Snow e leon Anderson 

Desorganizando o consenso 

Fernando Haddad (org.) 

Diccionario de bolso do almanaque philosophico zero à esquerda 

Paulo Eduardo Arantes 

Os direitos do Antivaior 

Francisco de Oliveira 

Em defesa do socialismo 

Fernando Haddad 

Estados e moedas no desenvolvimento das nações 

José Luís Fio ri (org.) 

Geopolítica do caos 

Ignacio Ramonet 

Globalização em questão 

Paul Hirst e Grahame Thompson 

Guy Debord 

Ahselm Jappe • ■ 

A ilusão do desenvolvimento 

Giovanni Arrighi 

Herbert AAarcuse - A grande recusa hoje 

Isabel Loureiro (org.) 

As metamorfoses da questão social - ~C 

Robe d Gastei 

O método Brecht 

Fredrich Jameson 

Os moedeiros falsos 

José Luís Flori 

Os novos cães de guarda 

Serge Halimí 

Poder e dinheiro - Uma economia política da globalização 

Maria da Conceição Tavares e José Luís Flori (orgs.) 

Os sentidos da Democracia - Políticas do dissenso e a hegemonia 

Equipe de Pesquisadores do Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania - Nedic 

Sinta o drama 

Iná Camargo Costa 

Os últimos combates 

Robert Kurz 

Uma utopia militante - Repensando o socialismo 

Paul Singer 

A cidade do pensamento único - Desmanchando consensos 
Otíiia Arantes, Carlos Vainer e Ermínia Maricato 

Nem tudo que é sólido desmancha no ar - Ensaios de peso 






Jorge Miguei Marinho 

Brasil no espaço 
José Luís Fiori 
Biopirataria 

Vandana Shiva 

A cultura do dinheiro 




Fredric Jameson 

Polarização rgúndi 

José Luís^iori (d 

A teoria da fevolpt 

Michaelt^vy/ i 

A des-ordejn ha pj 

Andreqs Iwvy / 



te cresci, ^ o 



teria 





E ste é um livro de que necessitávamos e que até 
certo ponto merecíamos. Necessitávamos pois o 
número de pesquisadores (as) que atualmente 
trabalham com métodos qualitativos é enorme. 

De ponta a ponta, no Brasil e na América Latina, 
pode-se já afirmar que a maior parte das 
investigações nas ciências humanas e sociais 
emprega, ao menos como uma dimensão importante, 
métodos qualitativos de diferentes tipos. Não 
tínhamos um referencial claro, coerente, seguro, 
abrangente e, por assim dizer, amadurecido, para 
servir de parâmetro. Finalmente, ele está aqui. 
Merecíamos, pois, um pouco como conseqüência do 
que acabamos de dizer. O esforço investigativo que 
está sendo empregado em nossas diferentes 
instituições merece que se volva o olhar para esses 
grupos de trabalho e lhes ofereça um apoio seguro, 
aprofundado, que sirva como retribuição do esforço 
empenhado, por um lado, e como um impulso para 
maiores e mais aprofundados empreendimentos, por 
outro. Este livro chegou, portanto, em boa hora. 

Pedrinho A. Gmreschi 
PUCRS 



www.vozes.com.br 

At EDITORA 
▼ VOZES 

Uma vida peio bom iivro 

E-mail: vendas@vozes.com.br 



ISBN 85.326.2727-7 



6272781 



788532 



capa: André Gross